quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Um país da nossa ignorância



Já em tempos aqui se tratou da Líbia, de Kadhafi, que acampou no forte de Caxias, quando nos governava José Sócrates, que encontrou nele parceiro ideal para as negociatas do seu poder. O certo é que não se passou disso, um passeio breve por cá, de Kadhafi, que até foi personagem fundamental no seu país. Como tudo é efémero, a começar pelo bem-estar, também Kadhafi foi vítima de um país tribal, pese embora a sua política de visão social que beneficiou o seu povo, pelo menos durante uns tempos, aos comandos do petróleo descoberto. Mas são dois os governos na Líbia, hoje, segundo conta Jorge Almeida Fernandes, e a luta continua, tudo por conta do petróleo, que atrai os povos importantes do mundo, nos seus interesses de águias, indiferentes aos estragos que semeiam. Outros analistas o acompanham e precisam os seus argumentos, que coloco aqui. Nós gostamos de aprender, e até vamos seguindo no mapa, para melhor compreendermos as tais “surpresas” de que trata o texto de JAS, prometendo permanecer no alerta vermelho do nosso medo de joguetes, em tempos idos, de idênticas ambições, mascaradas de altruísmos. Ça ira. E a Europa pagará por isso, também.

OPINIÃO: As surpresas que a Líbia ainda nos reserva
A Líbia já mostrou o impacto das suas guerras civis sobre a Europa. A crise migratória é um dos mais fortes factores da viragem política e ideológica que varre o Continente.
PÚBLICO, 8 de Setembro de 2018, 6:27
Anuncia-se um novo período de tempestades na Líbia — se tal é possível conceber. Que importa a Líbia? Os europeus desaprenderam a geografia. O Mediterrâneo não é um “muro que nos separa e defende”. É o mar que une a Europa ao Grande Magrebe. A Líbia é uma ponte, não é uma barreira. Demonstração: a Líbia foi o epicentro de uma “migração bíblica” cujo impacto é muito maior do que a crise migratória. É um dos factores desencadearam a actual viragem política e ideológica na Europa. Os ocidentais também pouco aprendem com a História. Quase tudo o que fizeram na Líbia desde 2011 revela ignorância histórica. É evidente a dificuldade de resolver a crise líbia, um puzzle quase insolúvel. Mas tal não justifica que líderes europeus procedam como “bombeiros pirómanos”.
Previnem analistas: as múltiplas guerras civis líbias, que nunca se apagaram, podem reacender-se em grande escala se for avante a ideia de fazer eleições presidenciais e legislativas em Dezembro, na completa ausência de instituições — da polícia aos tribunais — no meio de muitas armas e num clima de instabilidade e insegurança. Não há ainda lei eleitoral e deveria haver um referendo prévio sobre a Constituição. A França é o maior defensor de “eleições já” e a Itália o seu principal adversário. Ninguém é inocente: estão em jogo o petróleo e a geopolítica do Norte de África.
Há sinais de que as centenas de milícias, que detêm o poder real, se preparam para uma corrida à conquista de posições: os últimos combates em Trípoli, com “apenas” 50 mortos, são o mais recente aviso (ver PÚBLICO de 5 de Setembro).
A lógica tribal
“Em circunstâncias normais, a convocação de eleições seria sinal de uma pujante democracia”, escreve o analista líbio Emadeddin Zahri Muntasser. “A razão desta corrida às eleições é simples. As actuais elites políticas desejam manter a sua vantagem sobre os outros candidatos.” E não só: “A maioria dos políticos líbios que apelam a eleições tem ligações a poderes estrangeiros como o Egipto, a Rússia ou os Emirados Árabes Unidos. (...) Paradoxalmente, fazer eleições neste momento ajudará a consolidar as instituições antidemocráticas.”
Os que detêm poder e controlam os recursos tudo farão para manter as suas vantagens. Os outros tudo farão para armadilhar o processo eleitoral e mudar o statu quo, “já que lhes será mais fácil conquistar mais poder e recursos num clima de instabilidade”, escrevem Rhiannon Smith e Jason Pack, do grupo britânico Libya Analysis. Resumem assim a equação: “Para os líbios, a questão-chave não é ‘quem deverá ser o nosso Presidente’ mas saber ‘como irão ser distribuídos os vastos recursos do país’.”
É inevitável uma pergunta: quem manda na Líbia? Não há um governo, há dois, em Trípoli (Oeste) e em Tobruk (Leste). E nenhum deles governa. Por trás deles estão duas coligações militares: a do general Khalifa Haftar, que domina a Cirenaica (Oeste), e a coligação Alba Líbia, que domina o eixo Trípoli-Misurata. Sem negar o poderio de Haftar ou a “legitimidade internacional” do primeiro-ministro Fayez al-Sarraj em Trípoli, a verdadeira força está nas milícias locais que compõem as duas coligações de geometria variável.
A política tribal assenta no controlo dos recursos. O domínio dos ministérios da Defesa e do Interior, do banco nacional, da empresa pública petrolífera (NOC), dos portos e aeroportos ou dos terminais petrolíferos é fonte de poder e riqueza e motivo de sucessivos combates.
Por trás do fenómeno não está apenas a anarquia. Está uma cultura secular. As tribos “fazem pela vida”, lutam pela sobrevivência. A queda abrupta da renda do petróleo devida ao caos abalou os compromissos tradicionais, tornando-se um novo factor de guerra civil.
E para lá do papel de plataforma das migrações africanas, a Líbia encerra sempre a ameaça de base terrorista e de abjecto mercado de tráfico de vidas humanas.
Um país sem Estado
A Líbia nunca foi um país unificado: a Tripolitânia e a Cirenaica têm histórias divergentes. E nunca foi um Estado. É um vasto mosaico de tribos, mais de uma centena. A identidade tribal prevalece sobre a débil consciência nacional. Observa o diplomata e jornalista italiano Sergio Romano: “Nem o império otomano, nem a administração colonial italiana, nem o reino desejado pelos britânicos em 1951, nem a extravagante ‘terceira via’ de Khadafi conseguiram unificar uma constelação de tribos que jamais renunciaram à sua identidade e às suas prerrogativas.”
A primeira “revolução” aconteceu em 1958-59 com a descoberta do petróleo no Golfo de Sidra e na Cirenaica. Um dos países mais pobres de África passa a poder viver da renda petrolífera. A distribuição da renda será, ao lado do aparelho repressivo, o melhor instrumento do domínio absoluto de Khadafi, o meio de “dividir para reinar”, favorecendo ou punindo tribos e regiões através da distribuição das benesses. Ele conhecia o país. Na incapacidade de o unificar, decretou a “extinção do estado”, inventando um “estado das massas”, a Jamahiriya. As embrionárias instituições estatais herdadas da monarquia foram apagadas.
Previu em Fevereiro de 2011 o americano Dirk Vandewalle, historiador da Líbia contemporânea: “Se Khadafi desaparecer, haverá um enorme vácuo, não apenas político mas económico e social. Não há quaisquer grupos organizados na sociedade líbia.” A queda de Khadafi foi definida como um “sucesso catastrófico”.
A anarquia reinante leva a que a Líbia seja uma virtual base terrorista e um abjecto mercado de tráfico de vidas humanas.
Tudo passa pelo petróleo
O puzzle líbio tem outros actores. Se a Tunísia e a Argélia apostam no diálogo, o Egipto, os Emirados Árabes Unidos, a Rússia e a França apoiam e armam o general Hatfar. A Turquia, o Qatar e a Itália apoiam Trípoli e Al-Sarraj. Os americanos bombardeiam o Daesh. A UE é a “grande ausente”. A Europa está paralisada pelo conflito entre Roma e Paris. Os franceses da Total e da GDF-Suez querem dominar o petróleo e o gás líbios. Para os italianos, manter a hegemonia da ENI é uma prioridade nacional. Paris olha ainda para a posição fulcral da Líbia junto da sua área de influência no Mali ou no Chade.
Negociar apenas com Haftar e Al-Sarraj, sem ao mesmo tempo obter um acordo com tribos e cidades, é tempo perdido, pois estas têm interesses próprios e as milícias mudam de campo com facilidade. Nenhum acordo terá sucesso sem o envolvimento da realidade tribal, a base da sociedade líbia. Resta o quebra-cabeças: a estabilização — e não eleições — é a condição necessária para um acordo de distribuição equitativa da renda petrolífera, o que, por sua vez, é condição para a retomada da plena exploração do petróleo. Não depende só dos líbios. Enquanto as potências estrangeiras persistirem nas suas “guerras por procuração”, prosseguirá a luta entre facções pelo controlo das jazidas e dos terminais, numa engrenagem sem fim. Na Líbia, o futuro passa pelo petróleo.
COMENTÁRIOS
Joao, Portugal 10.09.2018:
Vá lá, até é claro quando diz “Tudo passa pelo petróleo”. Claro que os trauliteiros belicistas e predadores virão repetir a narrativa da “intervenção humanitária” para “instaurar a democracia” e outras tretas do género. Lembremos a razão da “intervenção humanitária” … WP 10/6/2011 “Conflict in Libya: U.S. oil companies sit on sidelines as Gaddafi maintains hold”. E passados sete anos de “democracia” temos Público 4/9/2018 “Ninguém manda nas milícias que combatem pelo controlo de Trípoli”, temos milhões de refugiados, temos a ruÍna dos sistemas económicos dos países vizinhos, temos destruição sem fim. Responder
E claro temos saques sem fim … Vejamos só por onde andam os 67 mil milhões líbios de 2011 …. Agora reduzidos a cerca de 30 mil milhões … Político 8/2/2018 “Millions flow from Gaddafi’s ‘frozen funds’ to unknown beneficiaries”…
E temos mais saques sem fim … é sempre a bombar … Bloomberg 20/1/2018 “Libya Restarts Wintershall Oil Fields to Boost Nation Output”
Os líbios? Que tenham paciência ....
bento guerra 08.09.2018 :
Os da "esquerda" agradeçam à Hillary Clinton, o que ali deixou e o que ainda virá 
 Jonas Almeida, Stony Brook NY, Marialva Beira Alta 10.09.2018:
Bento, nem a brincar, a invasão da Líbia foi cozinhada por Tony Blair e Nicolas Sarkozy com um plano estapafúrdio congeminado por um tal Bernard-Henri Lévy. Obama foi contrariadíssimo a pagar uma conta do Bush. Diz que envolver os mísseis americanos foi "o maior erro" da sua presidência e ainda assim recusou-se a "boots on the ground". Não tem de acreditar em mim, tem essa estória contada em tanto sítio. Há mesmo um filme, sumarizado no artigo do Spiegel "The Philosophy of War - New Film Depicts Bernard-Henri Lévy's Role in Libya". E olhe que não estou a representar mal os acusados, ele gabam-se ainda hoje do que fizeram, incluindo no tal filme, "Le serment de Tobrouk". Tony Blair está sob acusação de crimes de guerra no UK e a Sarkozy cabe na ONU ter sido quem pediu a invasão.
Correcção embaraçada - o UK foi pela mão de David Cameron, não Tony Blair. A acusação de crimes de guerra deste último deriva da invasão do Iraque, não da Líbia.
manuelserra72, 08.09.2018:
De facto há um padrão constante nas intervenções ocidentais. Trata-se de impedir um massacre de populações por parte de um líder autoritário e malévolo. A genial retórica de "guerra preventiva" e motivos humanitários iniciada por Clinton e Blair. Neste caso um possível massacre em Benghazi por parte de Khadafi. Mas é interessante ver as conclusões do relatório parlamentar britânico que diz isso mesmo: "House of Commons Libya: Examination of intervention and collapse and the UK’s future policy option - Third Report of Session 2016-17" Tudo em nome da democracia e dos direitos do homem. Responder
Parabéns pelo artigo. 
Mas ainda se vai descobrir que afinal foi o Putin que depois de pôr o Trump no poder, fazer o Brexit e manipular a opinião na Catalunha é também responsável pelo caos na Líbia .... Responder
É curioso como os líderes ocidentais que são os comanditários destas guerras não têm que prestar contas. Seria útil fazer o histórico destas guerras. Podia-se começar com o ataque à Sérvia em 1999. Quais eram os objectivos da guerra e qual foi o resultado a seguir? O "diagnóstico" era correcto ? As situações que levam às intervenções militares confirmam-se posteriormente ? E que autoridade moral nos resta? No caso da Líbia temos os Sarkozy e o Cameron. O Khadafi financiou ou não a campanha eleitoral do Sarkozy ? Tudo envolto num certo fumo, propício para teorias da conspiração. E claro está o Bernard Henri-Levy, o "filósofo" palhaço que defende o intervencionismo por razões humanitárias. De facto fazemos tudo por "razões humanitárias" à diferença dos outros "maus". É simples. 
Jonas Almeida, Stony Brook NY, Marialva Beira Alta 10.09.2018:
depois admirem-se que as pessoas percam o respeito pela ONU e pelo tribunal internacional de Haia. Pergunta bem, ao Ocidente "que autoridade moral nos resta?" - obviamente zero. Basta viajar pelo resto do mundo para o ouvir na cara. As pessoas não são parvas - os principais conflitos violentos no mundo derivam de guerras voluntarizadas pelo ocidente (as tais "wars of choice")


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