Já em tempos aqui se tratou da Líbia, de Kadhafi, que acampou no forte
de Caxias, quando nos governava José Sócrates, que encontrou nele parceiro
ideal para as negociatas do seu poder. O certo é que não se passou disso, um
passeio breve por cá, de Kadhafi, que até foi personagem fundamental no seu
país. Como tudo é efémero, a começar pelo bem-estar, também Kadhafi foi vítima
de um país tribal, pese embora a sua política de visão social que beneficiou o
seu povo, pelo menos durante uns tempos, aos comandos do petróleo descoberto.
Mas são dois os governos na Líbia, hoje, segundo conta Jorge Almeida Fernandes, e a luta continua, tudo por conta do
petróleo, que atrai os povos importantes do mundo, nos seus interesses de
águias, indiferentes aos estragos que semeiam. Outros analistas o acompanham e
precisam os seus argumentos, que coloco aqui. Nós gostamos de aprender, e até vamos
seguindo no mapa, para melhor compreendermos as tais “surpresas” de que trata o
texto de JAS, prometendo permanecer no alerta vermelho do nosso medo de joguetes,
em tempos idos, de idênticas ambições, mascaradas de altruísmos. Ça ira. E a
Europa pagará por isso, também.
OPINIÃO: As surpresas que a Líbia ainda nos reserva
A Líbia já mostrou o impacto das
suas guerras civis sobre a Europa. A crise migratória é um dos mais fortes
factores da viragem política e ideológica que varre o Continente.
PÚBLICO, 8 de Setembro de 2018, 6:27
Anuncia-se um novo período de
tempestades na Líbia — se tal é possível conceber. Que importa a Líbia? Os
europeus desaprenderam a geografia. O Mediterrâneo não é um “muro que nos
separa e defende”. É o mar que une a Europa ao Grande Magrebe. A Líbia é uma
ponte, não é uma barreira. Demonstração:
a Líbia foi o epicentro de uma “migração bíblica” cujo impacto é muito maior do
que a crise migratória. É um dos factores desencadearam a actual viragem
política e ideológica na Europa. Os ocidentais também pouco aprendem com a
História. Quase tudo o que fizeram na Líbia desde 2011 revela ignorância
histórica. É evidente a dificuldade de resolver a crise líbia, um puzzle quase
insolúvel. Mas tal não justifica que
líderes europeus procedam como “bombeiros pirómanos”.
Previnem analistas: as múltiplas guerras civis líbias, que
nunca se apagaram, podem reacender-se em grande escala se for avante a ideia de
fazer eleições presidenciais e legislativas em Dezembro, na completa ausência
de instituições — da polícia aos tribunais — no meio de muitas armas e num
clima de instabilidade e insegurança. Não há ainda lei eleitoral e deveria haver
um referendo prévio sobre a Constituição. A França é o maior defensor de “eleições
já” e a Itália o seu principal adversário. Ninguém é inocente: estão em jogo o
petróleo e a geopolítica do Norte de África.
Há sinais de que as centenas de milícias, que detêm o poder real, se
preparam para uma corrida à conquista de posições: os últimos combates em Trípoli, com “apenas” 50
mortos, são o mais recente aviso (ver PÚBLICO de 5 de Setembro).
A lógica tribal
“Em circunstâncias normais, a
convocação de eleições seria sinal de uma pujante democracia”, escreve o analista líbio Emadeddin Zahri
Muntasser. “A razão desta corrida às
eleições é simples. As actuais elites políticas desejam manter a sua vantagem
sobre os outros candidatos.” E não só: “A maioria dos políticos líbios que
apelam a eleições tem ligações a poderes estrangeiros como o Egipto, a Rússia
ou os Emirados Árabes Unidos. (...) Paradoxalmente, fazer eleições neste
momento ajudará a consolidar as instituições antidemocráticas.”
Os que detêm poder e controlam os recursos tudo farão para manter as
suas vantagens. Os outros tudo farão para armadilhar o processo eleitoral e
mudar o statu quo, “já que lhes será mais fácil conquistar mais poder e
recursos num clima de instabilidade”, escrevem Rhiannon Smith e Jason Pack,
do grupo britânico Libya Analysis. Resumem assim a equação: “Para os líbios, a questão-chave não é
‘quem deverá ser o nosso Presidente’ mas saber ‘como irão ser distribuídos os
vastos recursos do país’.”
É inevitável uma pergunta: quem
manda na Líbia? Não há um governo, há dois, em Trípoli (Oeste) e em Tobruk (Leste). E nenhum deles governa.
Por trás deles estão duas coligações militares: a do general Khalifa Haftar,
que domina a Cirenaica (Oeste), e a coligação Alba Líbia, que domina o
eixo Trípoli-Misurata. Sem negar o poderio de Haftar ou a “legitimidade
internacional” do primeiro-ministro Fayez al-Sarraj em Trípoli, a verdadeira força está nas milícias locais
que compõem as duas coligações de geometria variável.
A política tribal assenta no
controlo dos recursos. O domínio dos ministérios da Defesa e do Interior, do
banco nacional, da empresa pública petrolífera (NOC), dos portos e aeroportos
ou dos terminais petrolíferos é fonte de poder e riqueza e motivo de sucessivos
combates.
Por trás do fenómeno não está
apenas a anarquia. Está uma cultura secular. As tribos “fazem pela vida”, lutam
pela sobrevivência. A queda abrupta da renda do petróleo devida ao caos abalou
os compromissos tradicionais, tornando-se um novo factor de guerra civil.
E para lá do papel de plataforma
das migrações africanas, a Líbia encerra sempre a ameaça de base terrorista e
de abjecto mercado de tráfico de vidas humanas.
Um país sem Estado
A Líbia nunca foi um país unificado: a Tripolitânia e a Cirenaica têm histórias divergentes. E nunca foi um Estado. É um vasto mosaico de tribos, mais de uma
centena. A identidade tribal prevalece sobre a débil consciência nacional. Observa
o diplomata e jornalista italiano Sergio Romano: “Nem o império otomano, nem a administração colonial italiana, nem o
reino desejado pelos britânicos em 1951, nem a extravagante ‘terceira via’ de
Khadafi conseguiram unificar uma constelação de tribos que jamais renunciaram à
sua identidade e às suas prerrogativas.”
A primeira “revolução”
aconteceu em 1958-59 com a descoberta do petróleo no Golfo de Sidra e na
Cirenaica. Um dos países
mais pobres de África passa a poder viver da renda petrolífera. A distribuição da renda será, ao lado do
aparelho repressivo, o melhor instrumento do domínio absoluto de Khadafi, o
meio de “dividir para reinar”, favorecendo ou punindo tribos e regiões através
da distribuição das benesses. Ele conhecia o país. Na incapacidade de o
unificar, decretou a “extinção
do estado”, inventando um “estado das massas”, a Jamahiriya. As
embrionárias instituições estatais herdadas da monarquia foram apagadas.
Previu em Fevereiro de 2011 o americano Dirk Vandewalle, historiador
da Líbia contemporânea: “Se Khadafi
desaparecer, haverá um enorme vácuo, não apenas político mas económico e
social. Não há quaisquer grupos organizados na sociedade líbia.” A queda de
Khadafi foi definida como um “sucesso catastrófico”.
A anarquia reinante leva a que
a Líbia seja uma virtual base terrorista e um abjecto mercado de tráfico de
vidas humanas.
Tudo passa pelo petróleo
O puzzle líbio tem outros actores. Se a Tunísia e a Argélia apostam no
diálogo, o Egipto, os Emirados
Árabes Unidos, a Rússia e a França apoiam e armam o general Hatfar. A
Turquia, o Qatar e a Itália apoiam Trípoli e Al-Sarraj. Os americanos bombardeiam o Daesh. A UE é a “grande ausente”. A Europa está paralisada pelo conflito
entre Roma e Paris. Os franceses da Total e da GDF-Suez querem dominar o
petróleo e o gás líbios. Para os italianos, manter a hegemonia da ENI é uma
prioridade nacional. Paris olha ainda para a posição fulcral da Líbia junto da
sua área de influência no Mali ou no Chade.
Negociar apenas com Haftar e
Al-Sarraj, sem ao mesmo tempo obter um acordo com tribos e cidades, é tempo
perdido, pois estas têm interesses próprios e as milícias mudam de campo com
facilidade. Nenhum acordo terá sucesso sem o envolvimento da realidade tribal,
a base da sociedade líbia. Resta o quebra-cabeças: a estabilização — e não
eleições — é a condição necessária para um acordo de distribuição equitativa da
renda petrolífera, o que, por sua vez, é condição para a retomada da plena
exploração do petróleo. Não depende só dos líbios. Enquanto as potências
estrangeiras persistirem nas suas “guerras por procuração”, prosseguirá a luta
entre facções pelo controlo das jazidas e dos terminais, numa engrenagem sem
fim. Na Líbia, o futuro passa pelo petróleo.
COMENTÁRIOS
Joao,
Portugal 10.09.2018:
Vá lá, até é claro quando diz “Tudo passa pelo petróleo”. Claro que os
trauliteiros belicistas e predadores virão repetir a narrativa da “intervenção
humanitária” para “instaurar a democracia” e outras tretas do género. Lembremos
a razão da “intervenção humanitária” … WP 10/6/2011 “Conflict in Libya: U.S.
oil companies sit on sidelines as Gaddafi maintains hold”. E passados sete anos
de “democracia” temos Público 4/9/2018 “Ninguém manda nas milícias que combatem
pelo controlo de Trípoli”, temos milhões de refugiados, temos a ruÍna dos
sistemas económicos dos países vizinhos, temos destruição sem fim. Responder
E claro temos saques sem fim … Vejamos só por onde andam os 67 mil
milhões líbios de 2011 …. Agora reduzidos a cerca de 30 mil milhões … Político
8/2/2018 “Millions flow from Gaddafi’s ‘frozen funds’ to unknown
beneficiaries”…
E temos mais saques sem fim … é sempre a bombar … Bloomberg 20/1/2018
“Libya Restarts Wintershall Oil Fields to Boost Nation Output”
Os líbios? Que tenham paciência ....
bento guerra
08.09.2018 :
Os da "esquerda" agradeçam à Hillary Clinton, o que ali
deixou e o que ainda virá
Jonas Almeida,
Stony Brook NY, Marialva Beira Alta 10.09.2018:
Bento, nem a brincar, a invasão da Líbia foi cozinhada por Tony Blair e
Nicolas Sarkozy com um plano estapafúrdio congeminado por um tal Bernard-Henri
Lévy. Obama foi contrariadíssimo a pagar uma conta do Bush. Diz que envolver os
mísseis americanos foi "o maior erro" da sua presidência e ainda
assim recusou-se a "boots on the ground". Não tem de acreditar em
mim, tem essa estória contada em tanto sítio. Há mesmo um filme, sumarizado no
artigo do Spiegel "The Philosophy of War - New Film Depicts Bernard-Henri
Lévy's Role in Libya". E olhe que não estou a representar mal os acusados,
ele gabam-se ainda hoje do que fizeram, incluindo no tal filme, "Le
serment de Tobrouk". Tony Blair está sob acusação de crimes de guerra no
UK e a Sarkozy cabe na ONU ter sido quem pediu a invasão.
Correcção embaraçada - o UK foi pela mão de David Cameron, não Tony
Blair. A acusação de crimes de guerra deste último deriva da invasão do Iraque,
não da Líbia.
manuelserra72,
08.09.2018:
De facto há um padrão constante nas intervenções ocidentais. Trata-se
de impedir um massacre de populações por parte de um líder autoritário e
malévolo. A genial retórica de "guerra preventiva" e motivos
humanitários iniciada por Clinton e Blair. Neste caso um possível massacre em
Benghazi por parte de Khadafi. Mas é interessante ver as conclusões do
relatório parlamentar britânico que diz isso mesmo: "House of Commons
Libya: Examination of intervention and collapse and the UK’s future policy
option - Third Report of Session 2016-17" Tudo em nome da democracia e dos
direitos do homem. Responder
Parabéns pelo artigo.
Mas ainda se vai descobrir que afinal foi o Putin que depois de pôr o
Trump no poder, fazer o Brexit e manipular a opinião na Catalunha é também
responsável pelo caos na Líbia .... Responder
É curioso como os líderes ocidentais que são os comanditários destas
guerras não têm que prestar contas. Seria útil fazer o histórico destas
guerras. Podia-se começar com o ataque à Sérvia em 1999. Quais eram os
objectivos da guerra e qual foi o resultado a seguir? O "diagnóstico"
era correcto ? As situações que levam às intervenções militares confirmam-se
posteriormente ? E que autoridade moral nos resta? No caso da Líbia temos os
Sarkozy e o Cameron. O Khadafi financiou ou não a campanha eleitoral do Sarkozy
? Tudo envolto num certo fumo, propício para teorias da conspiração. E claro
está o Bernard Henri-Levy, o "filósofo" palhaço que defende o
intervencionismo por razões humanitárias. De
facto fazemos tudo por "razões humanitárias" à diferença dos outros
"maus". É simples.
Jonas Almeida, Stony
Brook NY, Marialva Beira Alta 10.09.2018:
depois admirem-se que as pessoas percam o respeito pela ONU e pelo
tribunal internacional de Haia. Pergunta bem, ao Ocidente "que autoridade
moral nos resta?" - obviamente zero. Basta viajar pelo resto do mundo para
o ouvir na cara. As pessoas não são parvas - os principais conflitos violentos
no mundo derivam de guerras voluntarizadas pelo ocidente (as tais "wars of
choice")
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