Sempre traduzo o soneto de Hérédia,
que coloquei no texto anterior, na versão original, para saborear em plenitude
a magia do poema, na sua temática da conquista, do esforço e da ambição, retocados
pelo colorido do descritivo exótico. Mas a tradução também faz, afinal, sentir,
embora parcialmente, a força explosiva dos homens de outrora – espanhóis,
estes, os homens de Cristóvão Colombo, a quem Hérédia, de origem cubana, de
ascendência espanhola, rende homenagem. Por isso a coloco, para um paralelo de contraste,
naturalmente, os nossos gerifaltes de trazer por casa, bem longe de se
assemelharem aos gloriosos descobridores das Américas, figuras que Maria João
Avillez, uma vez mais, primorosamente explora, na mascarada ridícula que impõem a
este país “a entristecer”, conquanto só parcialmente.
Os Conquistadores
Como um voo de gerifaltes fora do
ossário natal
Cansados de transportar as suas
altivas misérias
De Palos de Moguer, soldados e
capitães
Partiam ébrios de um sonho
heróico e brutal.
Eles iam conquistar o fabuloso
metal
Que Cipango amadurece nas suas
minas longínquas,
E os ventos alísios inclinavam as
antenas
Para as margens misteriosas do
mundo ocidental.
Cada entardecer, esperando os
amanhãs épicos
O azul fosforescente dos mares
tropicais
Encantavam o seu sonho de douradas
miragens;
Ou debruçados sobre a proa das brancas
caravelas
Viam subir no céu desconhecido
Do fundo do Oceano, desconhecidas
estrelas.
PRESIDENTE
MARCELO Contribuintes com
número /premium
OBSERVADOR,26/9/2018
Marcelo selfizou o país, Costa “descontraiu-o” (disse ele) do
“passismo”. A questão é se se faz um país que valha a pena só com gente
descontraída e selfizada. E saber como e quem o paga, claro.
1. Eu não sei se já aconteceu ao leitor abrir um dia um frasco de
doce que tenha em casa e observar uma espessa e suspeita camada de bolor à
superfície. Sem vontade de o provar e reticente quanto à cor e textura, hesita
entre deitá-lo fora; ressuscitá-lo, dando-lhe uma segunda oportunidade; voltar,
sem dramatismo, a pôr o doce na torrada, continuando a sua vida (e a do doce)
como se nada fosse. O PSD está igual
a um frasco de doce com bolor: transformado numa memória, tornou se uma miragem
do que era, não está apetecível nem comestível, hesita- e no que fazer com
ele, avalia-se o seu prazo de validade, conjectura-se sobre o seu destino ou
sequer se ele vale o empenho num destino. Se vale o combate novo –
culturalmente novo, entenda-se — que isso exigiria, se vale a vontade da
ruptura para produzir, consubstanciar e liderar esse combate, se vale o
confronto com os continuam a comer o doce, esteja ele como estiver.
2. Falta qualquer coisa no ar
político. Entre outras coisas não de somenos (seriedade e decência pelo menos),
falta sentido e falta propósito: a quantas andamos e para quê? Que projecto
estratégico norteia o país, que grande deia mobiliza os portugueses em Setembro
de 2018? Como se pensa neles para além de se pensar neles como contribuintes
com número?
Pouco: Marcelo
garante-lhes selfies presidenciais (uma selfie, um voto) o que não é bem o
mesmo que pensar neles a sério, e Costa governa para um sector, assegurando a
suposta felicidade do funcionalismo público (um funcionário público feliz é um
voto geringonçal). Enquanto isto, o Governo (com Belém sorrindo sempre) tudo
faz para evitar que se perceba demasiado bem que a austeridade se chama hoje
roubo fiscal e que Centeno usa as caras conforme os fóruns, sedes ou
geografias onde actua, chapéus há muitos. Como destino parece pouco
ambicioso.
Ninguém acredita em nada, os
políticos não são capazes de motivação ou interpelação. Um destes dias, o
malabarismo político, as cumplicidades indesejáveis, a proximidade que se
esgota em si mesma e o uso de uma considerável quantidade de manha,
transformarão o actual fastio político em repugnância. Os partidos estão
gastos, muitos dos seus chefes envelhecidos e estas coisas contam e estas
coisas pesam. Em Espanha os líderes do PP, Ciudadanos e Podemos têm trinta e
tal anos e Pedro Sanchez tem pouco mais, mas sabe Deus como a idade também pode
ser um fonte de sedução e estímulo de ruptura. Entre nós, porém, até esse
combustível está em falta.
3. Se não se tiver por adquirido (e iremos a tempo?) que se
consolida hoje uma larga soma de grupos que rejeitam a democracia como a
conhecemos e vivemos, não se perceberá que entrámos numa nova era e num novo
paradigma que embora ainda sem definição exacta, já não tem recuo. Face a ele,
os nossos instrumentos estão caducos, os valores que costumávamos praticar
caíram em desuso, as dantes confortáveis certezas que usávamos como guia de
princípios, sumiram-se do mapa político. Das certezas, o óbvio: são incertas.
Perante isto, não se têm visto avisos, ouvido alertas, testemunhado uma alusão
vindo do alto: Marcelo selfizou o
país, Costa “descontraiu-o” (disse ele) do “passismo”. A questão é saber se se
faz um país que valha a pena só com gente descontraída e selfizada. (E saber
como e quem o paga, claro.)
4. Exagero? Voltemos a nós: Marcelo
que é o combustível de si mesmo, impede permanentemente o mínimo de distância e
o quanto baste de reserva que tem de haver entre ele e o mundo, comentando até
ao limite, promovendo abracinhos compulsivos, infantilizando plateias, enquanto
incansavelmente aplaude, amplia e concorda a eito com tudo o resto – sempre
o conheci a preferir concordar do que a ser capaz de enfrentar. A verdade é que
é difícil descortinar o que de facto – e de sério – determina o Chefe de Estado
para além da distribuição do afecto ao domicílio (com o olhar posto numa urna
de voto).
Estando em “todas”
omnipresentemente, sem que se alcance o critério ou a escala de prioridades com
que o faz; beijando com o mesmíssimo afã uma idosa a quem roubaram o cão ou
alguém que perdeu os seus num incêndio, tendo intervenção comentada em tudo e
sobre tudo, o Presidente sinaliza-nos que fora do palco e da sua estonteante
mediatização, as coisas da vida do país talvez não sejam a maior prioridade.
Consumindo-se afinal muito mais “nisto” – mesmo que muito
legitimamente lhe importem os votos – do que “naquilo”. “Naquilo”? Nos
militares, por exemplo. Até quando veremos o Comandante supremo das Forças
Armadas continuar a adiar uma resposta sobre Tancos – humilhando assim um forte
sector do Exército – ou fazer de conta que não vê o já indisfarçável mal-estar
dessas mesmas Forças Armadas ou de grande parte delas? “Naquilo” que é o actual
estado dos hospitais que deixará automaticamente de ser exclusivo do titular da
Saúde quando prejudica assim milhares de pessoas, como tem sido o caso de norte
a sul, não havendo ninguém que o ignore; “naquilo” da degradação de alguns
serviços públicos quando ela se torna tão gritante que carece da “atenção”
presidencial por lesar a vida de incontáveis (e indefesos) portugueses;
“naquilo” que é a ficção de um crescimento económico, a medrar na árvore da
insustentabilidade. São exemplos. Bons, porque são reais (e feios.)
5. Tudo isto que é pesado,
passou porém a ser um pouco mais pesado nos últimos dias, quando subitamente
alguma coisa mudou: o Presidente da República saiu-se mal desta história da
substituição das senhoras procuradoras. Duplamente: tornou verosímeis algumas
dúvidas (reparem que não digo suspeitas mas sim dúvidas) de que poderia estar a
acautelar interesses ou circunstâncias pessoais. E saiu-se mal porque tudo,
desde o estranhíssimo processo que antecedeu a sua decisão até ao seu “sim”,
foi indisfarçável: ficou impresso no país.
6. Se acrescentarmos a este indigesto quadro interno a paisagem fora
de portas com tanto que nos aflige na “Europa” – da louca escalada do Brexit
aos diversos populismos, passando pela fictícia unidade dos 28 países que já
originaram as duas europas sem que ninguém o assuma – era melhor nascer outra
vez. Na lua preferivelmente, para onde começa agora aliás a haver viagens.
7. Pedro Passos Coelho,
ainda ele. Não direi sempre
ele, não sei, o futuro (felizmente) a Deus pertence, mas foi o
ex-primeiro-ministro quem ocupou politicamente e num ápice o imenso espaço que
não se viu representado na noite das senhoras procuradoras. Ocupou-o por
imperativo e não por impulso, alinhavando no telemóvel o texto que se conhece e
enviando-o para o Observador. O acolhimento que teve e as inúmeras citações
revelam um reconhecimento pela sua “diferença” na cena política actual, que vai
bem mais além do fundo e da forma do seu escrito
COMENTÁRIO:
Miguel Bergano: A crónica é brutal. As bestas vão espernear
e as outras bestas vão espernear de volta... pobres bestas que dentro do curral
julgam que são diferentes só porque o sol a uns ilumina as nádegas enquanto às
outras ilumina os cornos.
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