sábado, 29 de setembro de 2018

Somos do Vira


Por isso nos contorcemos. E gememos. E saltamos. E rodamos. Ora aqui e ora ali. E quanto mais se apontam os dislates do rodar, mais felizes nos sentimos porque os avisos não colam quando as vaidades sobram na pequenez do pensar. Três actos, define Alberto, não são actos mas são cenas na tragédia do ridículo de um país pequenino que só podia redundar em velhaco ou dançarino. E as cenas vão continuar, porque os avisos não colam na pequenez do pensar, na tragédia do ridículo que não deixa sossegar, na farsa que julgo ímpar, num mundo bem variado que pretendemos amar, quando nem o nosso amamos, na pequenez do pensar…
ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA      Uma semana em três actos /premium
29/9/2018
A fotografia é um mimo. Dentro de São Bento algumas deputadas exibem o rosto fechado (porque a hora é grave). Outras riem desalmadamente (porque a gravidade é descontraída). Eu agradeço-lhes a coragem
Acto I
O momento redentor da semana foi a fotografia, ampla e merecidamente divulgada, de um conjunto de deputadas caseiras em protesto. Dado que o protesto de parlamentares de partidos que ou estão no governo ou influenciam o governo não faz muito sentido, as deputadas resolveram protestar contra os acontecimentos internos de um país estrangeiro. No caso, o Brasil. O facto de isso fazer ainda menos sentido não perturbou as senhoras, que interromperam o expediente para posar para o boneco com slogans a recusar a candidatura de um sujeito às presidenciais de lá, ao que sei legalíssima. Ou seja, enquanto as autoridades brasileiras aceitam o sujeito, dúzia e meia de ociosas portuguesas não pactuam com tamanho escândalo e desabafam através de “hashtags” (uns gatafunhos precedidos por um “#”). Ignoro se, de agora em diante, as ociosas tencionam emitir sentenças acerca de todas as eleições a realizar no planeta. Se tencionarem, avisem que tem piada.
Aliás, tem imensa piada. A fotografia, a que vale a pena regressar e que vale a pena contemplar, é um mimo. Dentro de São Bento, presume-se, algumas deputadas exibem o rosto fechado (porque a hora é grave). Outras riem desalmadamente (porque a gravidade é descontraída). Algumas levantam cartazes. Outras não tiveram direito a cópia. Quase todas parecem vestidas pelo costureiro dos UHF. Todas parecem estar ali de livre vontade. E eu agradeço-lhes a coragem.
Uma pessoa dotada de compaixão perderia uns minutos a imaginar a série de tragédias e equívocos que corroeram a vida de uma infeliz a ponto de a deixar, aos 30, 40 ou 60 anos, naqueles preparos, convencida da sua própria importância e de que segurar um papelinho com a frase “#EleNão” é uma actividade compatível com a idade adulta. Mesmo para deputados, a infantilidade é excessiva. À semelhança do que sucede nos acidentes aéreos, é necessário que demasiadas coisas corram mal para se acabar assim. Dramas familiares? Más companhias? Problemas clínicos? Cabe aos especialistas decidir.
Por sorte, não sou especialista. Donde prefiro usufruir da fotografia do que lamentá-la. Numa época em que, à conta de proibições e susceptibilidade, o “politicamente correcto”, ou, mais exactamente, a cruzada moralista ameaça exterminar a comédia, exemplos de humor involuntário como o referido não se devem desperdiçar. Se não as tomarmos a sério, leia-se se não formos maluquinhos, a falta de noção de ridículo que as tais deputadas demonstram é genuinamente engraçada, daquela escola do burlesco que uma ocasião levou o falecido comentador Luís Delgado a exigir numa crónica: “Basta, senhor Clinton. Demita-se!”. Só não são impagáveis na medida em que lhes pagamos os salários.
Acto II
O sr. Trump discursou nas Nações Unidas e lançou uma bazófia que motivou alguns risos na sala – inclusive o do próprio –, seguidos de alguns aplausos. As rotativas, figuradas, pararam num ápice: segundo a generalidade dos “media”, o mundo riu convulsivamente do sr. Trump. Não importa que, no caso, “o mundo” se resuma a umas dúzias de diplomatas obscuros. O que importa é mostrar que “o mundo” partilha o exacto desprezo pelo sr. Trump que leva certos jornalistas com agenda e comediantes sem talento a torcer impecavelmente a informação até obter o efeito desejado (os engajados não gostam de se engajar sozinhos).
De qualquer modo, a verdade é que a assembleia-geral da ONU se encheu para assistir ao sr. Trump e, no dia seguinte, se esvaziou para não assistir ao prof. Marcelo. Talvez os diplomatas receassem, em vez da galhofa anterior, ser esmagados pela densidade intelectual do nosso estimado presidente e arranjarem, no mínimo, uma hérnia. Fizeram bem. Como nós sabemos e os estrangeiros pelos vistos suspeitam, o prof. Marcelo já costuma exibir uma retórica riquíssima em clichés e vacuidades. Em Nova Iorque, então, a solenidade do momento e a sala repleta de moscas inspiraram-no a reforçar a dose, numa lengalenga profunda a que não faltaram o “multilateralismo”, a paz, as “alterações climáticas”, os refugiados, o eng. Guterres, a igualdade de género, o sr. Mandela e os oceanos. Foi muito bonito. E um aperitivo para o encontro ao mais alto nível com o presidente do Palau, que o mundo não pára, leia-se não pára de rir do sr. Trump. E os portugueses riem ainda mais, mesmo que não saibam do quê.
Acto III
Um sorteio, como nas rifas, enxotou o juiz Carlos Alexandre do processo do “eng.” Sócrates. Convinha que a Justiça definisse um rumo, a bem dos cidadãos. Falo, em particular, dos cidadãos que, ainda há meses, julgaram que o caso estava perdido e desataram a confessar na imprensa a traição que o “eng.” Sócrates lhes infligiu. É verdade que, após longos anos a defender a seriedade do homem contra as “cabalas” da praxe, a mudança estratégica caiu um nadinha aos trambolhões. Entretanto, porém, já nos habituáramos à ideia de que as namoradas, as viúvas, os discípulos, os simpatizantes e outros companheiros de luta do Menino que Sonhava com Ventoinhas haviam de facto sido iludidos e nunca sonharam nem com ventoinhas nem com as incontáveis falcatruas de que o Menino é alegado autor. Agora, lá terão essas pobres almas que rever novamente o texto e provar à humanidade que sempre estiveram ao lado do Menino, um génio, um santo e o maior estadista a alguma vez ter frequentado um apartamento do amigo Carlos. Ao trabalho, minha gente.

COMENTÁRIO:
José Carlos Lourenço: Esta é uma crónica de antologia que vale a pena gravar para mais tarde ler...e ler...e ler. Ironia cáustica e exemplarmente colocada, tanto na forma como no conteúdo e oportunidade. A frase "E os portugueses riem ainda mais, mesmo que não saibam do quê" é um portento em termos de profundidade e de síntese do estado actual a que isto chegou (Estado incluído). Embora tal possa não ser percebido / aceite pelos mais "distraídos", engajados ou pela massa inepta e ignorante que aceita de modo acrítico e idiota todas as patranhas e clichés propagados pelo "politicamente correcto". E no caso das patranhas e clichés atascados de vacuidade, o Marcelo é um mestre consumado...



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