Foi o Anjo que veio explicar à Alma, prestes a soçobrar nas tentações
da carne e do espírito, que o “Amar a
Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos” estava acima de
todas as nossas veleidades libertárias de uma condição humana joguete das
manipulações moralistas, mas que esse Deus nos dera também um “livre alvedrio”
próprio, e poderíamos sempre optar por outras vias de gozo pessoal, como estava
a Alma prestes a fazer, a pobrezinha. De facto, a Alma do nosso Gil Vicente, no Auto do mesmo nome, estava a precisar
dum reforço de coragem, manipulada que era pelas seduções do Diabo, que eram especificamente as do Mundo, mas o Anjo
não perdeu tempo, para vir impor-lhe juízo, embora lhe assegurasse um livre arbítrio dignificador da condição
humana, conquanto joguete do prémio ou o castigo estatuídos para o final da caminhada
terrena: «Vosso livre alvedrio,
isento, forro, poderoso vos é dado polo divinal poderio e senhorio, que possais
fazer glorioso vosso estado. Deu-vos livre entendimento, e vontade libertada e
a memória, que tenhais em vosso tento fundamento, que sois por Ele criada pera
a glória…» (Gil Vicente, AUTO DA ALMA)
Como vivemos em liberdade
democrática, já não existem as subtilezas nem sempre justificadas do traço azul
de uma Censura condenatória em tempos idos, e todos nós, os dos computadores da
liberdade, vamos chafurdando nas razões do nosso entendimento, por vezes a
merecer traço azul. José Pacheco Pereira
debruça-se sobre o assunto, num pensamento que pretende “isento, forro, poderoso” e que alguns comentadores esclarecem e até enaltecem. Por
mim, eu poria traço azul nas grosserias do nosso grotesco gratuito, tal como
penso que os pais e os professores deviam sempre impor as regras de uma
liberdade sempre limitada por princípios de educação, aos seus filhos ou alunos
que a indisciplina resolutamente condena à futilidade e ao ridículo, para não
falar do crime de que trata também o artigo de Pacheco Pereira: «O admirável
mundo novo e a sua companheira a censura»
OPINIÃO - O admirável mundo novo e a sua
companheira a censura
É preciso separar as coisas:
tratar os crimes como crimes e deixar o resto para a liberdade de expressão,
insisto, mesmo que a consideremos repugnante.
JOSÉ PACHECO PEREIRA
PÚBLICO, 1 de Setembro de 2018
O incremento da censura na Internet, em particular nas redes sociais, é
uma tendência perigosa, que vai a par com legislação destinada a “proteger-nos”
do racismo, do ódio nacionalista, da violência verbal, que desde a
Constituição, aos surtos de indignação com apelos censórios, é tudo destinado a
criar um mundo fofinho e higiénico que não existe na realidade.
Há muita coisa que se pode fazer
para combater o problema combinado das fake news – teorias conspirativas – boatos perigosos -
boatos atentatórios da personalidade – linguagem de ódio – uso da Internet para
fins de manipulação profissionalizada por serviços de informação e agências de
comunicação, etc., e
tudo é melhor do que a censura que começa a generalizar-se e depois a
normalizar-se. Censura essa que
merece o aplauso da multidão do “politicamente correcto”, que preza pouco a
liberdade. A liberdade que existe para os outros poderem dizer as coisas que
mais me repugnam.
Em primeiro lugar, é preciso
separar as coisas: separar
os crimes das opiniões, por afrontosas que sejam; as acções bélicas de “propaganda negra” ou
outras usadas pelos servições de informação, que são também crimes, do uso de linguagem violenta e odiosa;
a incitação ao crime, que é
também um crime, das obscenidades
racistas e outras. Ou seja, simplificando, - tratar os crimes como crimes e deixar o resto
para a liberdade de expressão, insisto,
mesmo que a consideremos repugnante.
No plano do crime, a legislação precisa de evoluir e adaptar-se
a esta nova realidade, mas a regra é sempre a mesma: o que é crime cá fora é crime lá dentro.
Deve-se facilitar a identificação dos autores mesmo anónimos em casos de
investigação de crimes, e perceber que os crimes de abuso de liberdade de expressão, calúnia, ataques
insultuosos, devem ter legislação expedita e exemplar. As fornecedoras de serviços de redes
sociais devem assumir a responsabilidade por não permitir a manipulação
de identidades, e devem ser capazes de identificar com clareza junto das
autoridades quem esteja a cometer
crimes em linha.
O uso de anonimato deve manter-se na base do princípio de que alguém
está a denunciar (whistleblowing)
algo que pode ser um crime, ou uma malfeitoria ou uma prática inaceitável
e deve ser protegido de retaliações, mas não é justificado para a cobardia da
opinião. Já
o uso de pseudónimos é legítimo e deve ser protegido, desde que, quando haja
crimes, seja possível aceder ao nome verdadeiro.
Eu sei que tudo isto é complicado e há meios eficazes de dar a volta ao
anonimato, mas quem o sabe fazer é um número pequeno dos habitantes que pululam
as redes sociais e que, na maioria dos casos, são muito rudimentares na
protecção da sua identidade. E
deviam perceber que há consequências para as brincadeiras que colocam em linha.
Do mesmo modo, é perigoso instituir, como cada vez mais
acontece, formas de policiamento da linguagem.
Usar, como se diz nos EUA, a n-word, nigger, chamar “macacos” aos jogadores negros,
acompanhado os insultos, por gestos simiescos, chamar “monhé” ao primeiro-ministro, chamar “paneleiros” aos
homossexuais e “fufas” às lésbicas, e por aí adiante, por muitas fúrias
verbais que suscite, cabe no meu
entendimento da liberdade de expressão. Nada tenho contra as tempestades
de resposta - quem não se sente não é filho de boa gente - mas sou completamente contra a censura
do Estado, do Facebook, do Google e do Twitter, que pretende criar um muro
sanitário para as ofensas e, ao fazê-lo, entram num processo censório que
sabemos como começa, mas não sabemos como acaba.
Já outra coisa é escrever que o “senhor A roubou o dinheiro da
cooperativa B” quando se trata de uma falsidade. Ou quando, de forma
organizada, as empresas de comunicação que fazem campanhas negras a favor de
empresas ou pessoas denegrindo os seus adversários ou competidores.
Infelizmente, isto é cada vez mais comum e “invisível” usando comentários
dirigidos, manipulando os sites que avaliam restaurantes ou hotéis, ou disseminando
falsa informação. Isto tem
que ser tratado como fraude. A essas pessoas, eu levava-as a tribunal, e às
empresas a mesma coisa e, em ambos os casos, pedia indemnizações vultuosas, que
é o que mais os afecta.
O problema do que hoje se
está a passar nas “redes sociais” e nas páginas de comentários não moderadas é
o completo falhanço de várias instituições do Estado e da sociedade, a começar pela absoluta desadequação da
educação e das escolas, ao mundo real em que desde crianças, aqueles que se
pretende “educar” vivem. Depois, a sociedade, a comunicação social,
deviam obrigar-se, primeiro a si próprias, e ao público em geral a dar prioridade à verificação dos factos.
Se o Info-wars, ou Trump, ou a Fox News, ou um site racista português, ou um
comentador do Facebook do PÚBLICO, disserem que Obama não é americano e é
muçulmano, dupliquem
o site com uma nota dizendo que é uma falsidade. A verificação sistemática,
continuada e séria é a melhor maneira de combater as fake news. Dá trabalho, é difícil e
o sucesso não está garantido, mas é melhor do que a censura.
Pode-se dizer que os mecanismos que garantem o sucesso da circulação de
falsidades têm vantagem sobre a verdade porque o lubrificante que as faz
circular tem a ver com outras coisas, com a polarização e radicalização
política, com o ressentimento social, com o incremento nas redes sociais do
tribalismo, com as iliteracias, a ignorância agressiva das redes e a propensão
para as conspirações. É verdade, mas a censura não é resposta. A última coisa que quero é que o
Estado ou as grandes empresas tecnológicas, que fazem o mal e a caramunha, me
“protejam” do ruído do mundo e me tratem como uma criancinha. O que eu quero é que os adultos vão à luta,
denunciem as falsidades, que os jornalistas façam investigações sobre as
fileiras racistas, homofóbicas, violentas, que denunciem os seus mentores, que
a escola não se ponha com deslumbramentos tecnológicos e ensine a “ler” a
Internet e a televisão, que a “conversação” na sociedade e nos media não tenha um átomo de
complacência com este admirável mundo novo. Mas tudo menos a censura.
COMENTÁRIOS
Joao, Portugal 02.09.2018: Revisitando
este notável alerta do caro Pacheco, fico satisfeito ao ler que muitos
comentadores são inequivocamente contra a censura, e fico satisfeito por ver
que os comentadores que têm ao longo dos anos e, especialmente na última semana,
têm defendido e praticado aqui a censura, estão em minoria. Como diz mais ou
menos o Pacheco não é mantendo uma criança num ambiente higiénico e asséptico
que ela fica resistente. Nem é com doses cavalares de vacinas. Nem ficar
viciado em drogas. Então é fatal se receber uma vacina ou droga estragada.
ana cristina, Lisboa et Orbi 02.09.2018
hipocrisia de um espalhador de fake news da rússia today. Neste fórum,
o papel dos moderadores não é censurar nem sequer têm margem para o fazer. Basta
ler as regras de funcionamento. Um moderador aprova ou rejeita comentários de
acordo com regras claras, e, caso não as siga, é penalizado. Um comentador que
considere que as regras não foram cumpridas pode reclamar junto de quem decide
sobre a publicação dos comentários, que não é em última instância o moderador.
O joão sabe isto de trás para a frente mas procura semear a confusão. Um
comentador-fingidor.
Joao, Portugal 02.09.2018:
Um problema é o status do media ou veículo de informação: se for
administrado por um doutor de bata branca com certificação "media de
referência" ou "rede social filtrada", engolimos tudo. Este é o
problema, eu quero lá saber se a revista cor-de-rosa ampliou um romance
inexistente, se a revista cor-de-rosa não se arvora em media de referência! Outro problema é a omissão logo a montante
por quem cozinha e caldeia a informação, omissão torpe e silenciosa.
Outros problemas aqui referidos
são a punição e a exclusão devido ao agravante de serem efectuados (as injúrias,
ofensas, incitamento de ódios) por organizações ou de forma planeada. A punição já está prevista e é
frequente, poderá decerto ser mais eficaz. A exclusão, acho que seria adequada, por exemplo no caso do nazismo,
mas lembro que os países europeus têm recusado proibir a propaganda nazi, abstendo-se
na ONU, e até a Ucrânia e os USA votam mesmo contra a proibição. Assim é difícil
quererem proibir ou excluir outra coisa qualquer.
Parabéns, disse tudo, cara,
é disto que o mundo todo precisa, de punição para os infratores, os criminosos,
mas não de Censura. Como dizíamos aqui em Pindorama quando do
fim da Ditadura, Censura Nunca Mais,
mas infelizmente saudosistas existem em toda parte, ainda há gente que em
nome do "bem comum" abre mão do direito de se defender sozinha.
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