quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Nosso livre alvedrio…



Foi o Anjo que veio explicar à Alma, prestes a soçobrar nas tentações da carne e do espírito, que o “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos” estava acima de todas as nossas veleidades libertárias de uma condição humana joguete das manipulações moralistas, mas que esse Deus nos dera também um “livre alvedrio” próprio, e poderíamos sempre optar por outras vias de gozo pessoal, como estava a Alma prestes a fazer, a pobrezinha. De facto, a Alma do nosso Gil Vicente, no Auto do mesmo nome, estava a precisar dum reforço de coragem, manipulada que era pelas seduções do Diabo, que eram especificamente as do Mundo, mas o Anjo não perdeu tempo, para vir impor-lhe juízo, embora lhe assegurasse um livre arbítrio dignificador da condição humana, conquanto joguete do prémio ou o castigo estatuídos para o final da caminhada terrena: «Vosso livre alvedrio, isento, forro, poderoso vos é dado polo divinal poderio e senhorio, que possais fazer glorioso vosso estado. Deu-vos livre entendimento, e vontade libertada e a memória, que tenhais em vosso tento fundamento, que sois por Ele criada pera a glória…» (Gil Vicente, AUTO DA ALMA)
Como vivemos em liberdade democrática, já não existem as subtilezas nem sempre justificadas do traço azul de uma Censura condenatória em tempos idos, e todos nós, os dos computadores da liberdade, vamos chafurdando nas razões do nosso entendimento, por vezes a merecer traço azul. José Pacheco Pereira debruça-se sobre o assunto, num pensamento que pretende “isento, forro, poderoso” e que alguns comentadores esclarecem e até enaltecem. Por mim, eu poria traço azul nas grosserias do nosso grotesco gratuito, tal como penso que os pais e os professores deviam sempre impor as regras de uma liberdade sempre limitada por princípios de educação, aos seus filhos ou alunos que a indisciplina resolutamente condena à futilidade e ao ridículo, para não falar do crime de que trata também o artigo de Pacheco Pereira: «O admirável mundo novo e a sua companheira a censura»
OPINIÃO - O admirável mundo novo e a sua companheira a censura
É preciso separar as coisas: tratar os crimes como crimes e deixar o resto para a liberdade de expressão, insisto, mesmo que a consideremos repugnante.
JOSÉ PACHECO PEREIRA
PÚBLICO, 1 de Setembro de 2018
O incremento da censura na Internet, em particular nas redes sociais, é uma tendência perigosa, que vai a par com legislação destinada a “proteger-nos” do racismo, do ódio nacionalista, da violência verbal, que desde a Constituição, aos surtos de indignação com apelos censórios, é tudo destinado a criar um mundo fofinho e higiénico que não existe na realidade.
Há muita coisa que se pode fazer para combater o problema combinado das fake news – teorias conspirativas – boatos perigosos - boatos atentatórios da personalidade – linguagem de ódio – uso da Internet para fins de manipulação profissionalizada por serviços de informação e agências de comunicação, etc., e tudo é melhor do que a censura que começa a generalizar-se e depois a normalizar-se. Censura essa que merece o aplauso da multidão do “politicamente correcto”, que preza pouco a liberdade. A liberdade que existe para os outros poderem dizer as coisas que mais me repugnam.
Em primeiro lugar, é preciso separar as coisas: separar os crimes das opiniões, por afrontosas que sejam; as acções bélicas de “propaganda negraou outras usadas pelos servições de informação, que são também crimes, do uso de linguagem violenta e odiosa; a incitação ao crime, que é também um crime, das obscenidades racistas e outras. Ou seja, simplificando, - tratar os crimes como crimes e deixar o resto para a liberdade de expressão, insisto, mesmo que a consideremos repugnante.
No plano do crime, a legislação precisa de evoluir e adaptar-se a esta nova realidade, mas a regra é sempre a mesma: o que é crime cá fora é crime lá dentro. Deve-se facilitar a identificação dos autores mesmo anónimos em casos de investigação de crimes, e perceber que os crimes de abuso de liberdade de expressão, calúnia, ataques insultuosos, devem ter legislação expedita e exemplar. As fornecedoras de serviços de redes sociais devem assumir a responsabilidade por não permitir a manipulação de identidades, e devem ser capazes de identificar com clareza junto das autoridades quem esteja a cometer crimes em linha.
O uso de anonimato deve manter-se na base do princípio de que alguém está a denunciar (whistleblowing) algo que pode ser um crime, ou uma malfeitoria ou uma prática inaceitável e deve ser protegido de retaliações, mas não é justificado para a cobardia da opinião. Já o uso de pseudónimos é legítimo e deve ser protegido, desde que, quando haja crimes, seja possível aceder ao nome verdadeiro. Eu sei que tudo isto é complicado e há meios eficazes de dar a volta ao anonimato, mas quem o sabe fazer é um número pequeno dos habitantes que pululam as redes sociais e que, na maioria dos casos, são muito rudimentares na protecção da sua identidade. E deviam perceber que há consequências para as brincadeiras que colocam em linha.
Do mesmo modo, é perigoso instituir, como cada vez mais acontece, formas de policiamento da linguagem. Usar, como se diz nos EUA, a n-word, nigger, chamar “macacos” aos jogadores negros, acompanhado os insultos, por gestos simiescos, chamar “monhé” ao primeiro-ministro, chamar “paneleiros” aos homossexuais e “fufas” às lésbicas, e por aí adiante, por muitas fúrias verbais que suscite, cabe no meu entendimento da liberdade de expressão. Nada tenho contra as tempestades de resposta - quem não se sente não é filho de boa gente - mas sou completamente contra a censura do Estado, do Facebook, do Google e do Twitter, que pretende criar um muro sanitário para as ofensas e, ao fazê-lo, entram num processo censório que sabemos como começa, mas não sabemos como acaba.
Já outra coisa é escrever que o “senhor A roubou o dinheiro da cooperativa B” quando se trata de uma falsidade. Ou quando, de forma organizada, as empresas de comunicação que fazem campanhas negras a favor de empresas ou pessoas denegrindo os seus adversários ou competidores. Infelizmente, isto é cada vez mais comum e “invisível” usando comentários dirigidos, manipulando os sites que avaliam restaurantes ou hotéis, ou disseminando falsa informação. Isto tem que ser tratado como fraude. A essas pessoas, eu levava-as a tribunal, e às empresas a mesma coisa e, em ambos os casos, pedia indemnizações vultuosas, que é o que mais os afecta.
O problema do que hoje se está a passar nas “redes sociais” e nas páginas de comentários não moderadas é o completo falhanço de várias instituições do Estado e da sociedade, a começar pela absoluta desadequação da educação e das escolas, ao mundo real em que desde crianças, aqueles que se pretende “educar” vivem. Depois, a sociedade, a comunicação social, deviam obrigar-se, primeiro a si próprias, e ao público em geral a dar prioridade à verificação dos factos. Se o Info-wars, ou Trump, ou a Fox News, ou um site racista português, ou um comentador do Facebook do PÚBLICO, disserem que Obama não é americano e é muçulmano, dupliquem o site com uma nota dizendo que é uma falsidade. A verificação sistemática, continuada e séria é a melhor maneira de combater as fake news. Dá trabalho, é difícil e o sucesso não está garantido, mas é melhor do que a censura.
Pode-se dizer que os mecanismos que garantem o sucesso da circulação de falsidades têm vantagem sobre a verdade porque o lubrificante que as faz circular tem a ver com outras coisas, com a polarização e radicalização política, com o ressentimento social, com o incremento nas redes sociais do tribalismo, com as iliteracias, a ignorância agressiva das redes e a propensão para as conspirações. É verdade, mas a censura não é resposta. A última coisa que quero é que o Estado ou as grandes empresas tecnológicas, que fazem o mal e a caramunha, me “protejam” do ruído do mundo e me tratem como uma criancinha. O que eu quero é que os adultos vão à luta, denunciem as falsidades, que os jornalistas façam investigações sobre as fileiras racistas, homofóbicas, violentas, que denunciem os seus mentores, que a escola não se ponha com deslumbramentos tecnológicos e ensine a “ler” a Internet e a televisão, que a “conversação” na sociedade e nos media não tenha um átomo de complacência com este admirável mundo novo. Mas tudo menos a censura.

COMENTÁRIOS
Joao, Portugal 02.09.2018: Revisitando este notável alerta do caro Pacheco, fico satisfeito ao ler que muitos comentadores são inequivocamente contra a censura, e fico satisfeito por ver que os comentadores que têm ao longo dos anos e, especialmente na última semana, têm defendido e praticado aqui a censura, estão em minoria. Como diz mais ou menos o Pacheco não é mantendo uma criança num ambiente higiénico e asséptico que ela fica resistente. Nem é com doses cavalares de vacinas. Nem ficar viciado em drogas. Então é fatal se receber uma vacina ou droga estragada.
ana cristina, Lisboa et Orbi 02.09.2018 hipocrisia de um espalhador de fake news da rússia today. Neste fórum, o papel dos moderadores não é censurar nem sequer têm margem para o fazer. Basta ler as regras de funcionamento. Um moderador aprova ou rejeita comentários de acordo com regras claras, e, caso não as siga, é penalizado. Um comentador que considere que as regras não foram cumpridas pode reclamar junto de quem decide sobre a publicação dos comentários, que não é em última instância o moderador. O joão sabe isto de trás para a frente mas procura semear a confusão. Um comentador-fingidor.
Joao, Portugal 02.09.2018: Um problema é o status do media ou veículo de informação: se for administrado por um doutor de bata branca com certificação "media de referência" ou "rede social filtrada", engolimos tudo. Este é o problema, eu quero lá saber se a revista cor-de-rosa ampliou um romance inexistente, se a revista cor-de-rosa não se arvora em media de referência! Outro problema é a omissão logo a montante por quem cozinha e caldeia a informação, omissão torpe e silenciosa.
Outros problemas aqui referidos são a punição e a exclusão devido ao agravante de serem efectuados (as injúrias, ofensas, incitamento de ódios) por organizações ou de forma planeada. A punição já está prevista e é frequente, poderá decerto ser mais eficaz. A exclusão, acho que seria adequada, por exemplo no caso do nazismo, mas lembro que os países europeus têm recusado proibir a propaganda nazi, abstendo-se na ONU, e até a Ucrânia e os USA votam mesmo contra a proibição. Assim é difícil quererem proibir ou excluir outra coisa qualquer.
Parabéns, disse tudo, cara, é disto que o mundo todo precisa, de punição para os infratores, os criminosos, mas não de Censura. Como dizíamos aqui em Pindorama quando do fim da Ditadura, Censura Nunca Mais, mas infelizmente saudosistas existem em toda parte, ainda há gente que em nome do "bem comum" abre mão do direito de se defender sozinha.




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