“O cidadão médio”, alheio soezmente
a tudo o que não seja emoção em torno do que lhe cai no goto da sua pretensão
democrática, qual a deste caso de uma mulher extremamente rica e negra e mal-educada:
o tema-pretexto desta crónica de Alberto Gonçalves, faiscante de
causticidade contra um povo de inércia racional, dono do “coitadinho” e dos
inhos de uma “sensibilite” explosiva de ternura babada e incentivadora de
mândria, ou dos aumentativos aviltantes expressivos de idêntico descontrolo emotivo
e irracional, em caso de oposição de pareceres. E a troça apensa ao próprio
título da crónica de Alberto Gonçalves – “Acontecimentos que mudaram a história: a
tenista zangada - na desconformidade entre a dimensão hiperbólica do
efeito (mudança da História) e a perversa nulidade da causa (zanga de uma
tenista rica e negra, e mal educada), capaz de gerar contenda verbal, com as
razões da nossa democratização recente, ligadas às causas do nacionalismo, do
racismo e do feminismo. Bagatelas geradoras de emoção e conflito, que poderia criar
sketches de caricatura e paródia pelos nossos comediantes DDT, ou mesmo outro
género literário - tal como fez, três séculos antes, António Dinis da Cruz e
Silva, ao criar o seu poema herói-cómico “O
Hissope”, sobre vaidades feridas clericais e outros traços da nossa
idiossincrasia pacóvia. Fá-lo hoje, com mão de mestre, Alberto Gonçalves, sobre essa
nossa tacanhez sem remédio.
SERENA
WILLIAMS Acontecimentos
que mudaram a História: a tenista zangada /premium
OBSERVADOR, 15/9/2018
Descendentes de gente
maravilhosa, os cidadãos decidiram sentir, sentir muito, sentir imenso, sentir
sempre – desde que, vale acrescentar, o sentimento verse matérias que não lhe
dizem respeito.
Soube só vagamente que, há
dias, uma tenista qualquer reclamou com um árbitro qualquer durante um jogo
qualquer. Na América. Dito assim, ou dito assado, o facto é tão irrelevante
quanto o meu jantar de anteontem. Sucede que os tempos são propensos a pegar em
irrelevâncias, agitá-las imenso e servi-las a título de “assunto”. Assunto ou,
na linguagem e na acção contemporâneas, motivo de indignação. Hoje, quase tudo
é pretexto para as pessoas se indignarem e exibirem o resultado na internet, um
palco de furiosos que tornou anacrónicos o Speaker’s Corner no Hyde Park, a
terapia do grito e os desfiles da CGTP. Porque é que um “match-point” remoto
não deveria enfurecer multidões?
Primeiro, vieram os patriotas. Pelos vistos, o árbitro em
questão é português e, naturalmente, “um dos melhores do mundo”. Entre
parêntesis, começa a ser redundante acrescentar a expressão “melhor do mundo” à
palavra “português”. Num movimento estimulado pelos comentadores da bola e pelo
prof. Marcelo (outra redundância), é praticamente obrigatório notar que, dos
treinadores às rolhas, dos chocos grelhados às solas de borracha, aquilo que
Portugal produz constitui uma bênção para a humanidade, no fundo pasmada ante a
nossa grandeza. Fora de parêntesis, no caso em questão, os patriotas nunca
permitiriam que a afronta a um árbitro de que nunca ouviram falar passasse sem
resposta. Milhares de “posts” no Facebook convidaram a tal tenista, e o público
boçal que a aplaudiu no mau perder, a respeitar a nossa nação superior, ali
representada por um senhor empoleirado.
Depois, vieram as – ou os, não quero ofender ninguém – feministas.
Para estas, ou estes, as críticas posteriores à birra da tenista apenas
existiram porque a tenista é mulher e, como tal, vítima de discriminação.
Fui ver. A mencionada atleta, Serena
Williams de seu nome e 16ª no “ranking” da modalidade, detém um pé-de-meia
de meros 170 milhões de dólares, além de mansões humildes em Los Angeles e Palm
Beach. A fortuna do actual primeiro classificado da tabela masculina, Rafael
Nadal, anda pelos 160 milhões. Fica
claro que a sra. Williams agoniza às mãos do sexismo vigente. E fica claríssimo
o ócio mental de quem aproveita cada ocasião para protestar em nome dos demais
sócios de uma agremiação imaginária, cuja vasta maioria não lhe encomendou o
serviço. Milhares de “tweets” revoltados voltaram a demonstrar que os campeões
das “identidades” carecem urgentemente de uma.
Por fim, entrou em cena a turba indistinta que, no meio de uma polémica
postiça, costuma recolher as pequenas polémicas postiças que sobram. No
caso, o “racismo”. É que a sra. Williams é “preta” ou, mil
perdões, “afro-americana”, e isso abre a porta a toda uma série de
possibilidades no sector da indignação. Pior do que a referência à “raça”, os anti-racistas abominam a
indiferença à “raça”: é necessário chamar incessantemente a atenção para
semelhante critério de modo a que o critério deixe de chamar incessantemente a
atenção, e o universo viva em harmonia – ou em guerra racial, o que para os
“anti-racistas” é ainda melhor. A concentração de melanina
no corpo da sra. Williams diminui a sua sensibilidade à luz solar e aumenta a
sensibilidade dos “anti-racistas” ao resto. O autor de um “cartoon” que ridicularizava a
ira da sra. Williams no “court” viu-se acusado de ridicularizar a “etnia” da
sra. Williams na vida. A pensar no desgraçado, milhares de publicações no
Instagram (liberdade poética, ignoro o que o Instagram faz) acenderam uma
fogueira “virtual”, lamentando unicamente a “virtualidade” da dita. O desgraçado esteve a um passo de perder o emprego, castigo mínimo por
beliscar a susceptibilidade de estranhos.
E eis o ponto a que chegamos
no ano da graça de 2018. Nas
sociedades democráticas, informadas, tecnológicas e instruídas, o cidadão médio
aceita com curiosa pacatez que o Estado o roube, que os partidos o gozem, que a
banca o humilhe, que o jornalismo o engane, que os sindicatos o manipulem, que
o poder, em suma, o atropele com testemunhas e despreocupação. Se, porém,
acontece algures uma patetice sem vestígio de influência no seu quotidiano,
saiam da frente do cidadão médio, cego de raiva e inchado de moralidade, em
corrida desenfreada até à “rede social” mais próxima para denunciar injustiças
e promover punições. Por cá, isto consistiu no desenvolvimento talvez lógico
desse ex-libris dos provérbios palermas: quem não se sente não é filho de boa
gente. Descendentes de gente maravilhosa, os cidadãos decidiram sentir, sentir
muito, sentir imenso, sentir sempre – desde que, vale acrescentar, o sentimento
verse matérias que não lhe dizem respeito. Com eles, ou elas ou o
que quiserem, ninguém brinca. Excepto os que brincam, e impunemente.
Notas
de rodapé:
1. O dr. Rio, portento
escolhido pela “direita” para consagrar o rumo socialista previsto na
Constituição, abençoou uma tentativa do Bloco de Esquerda em taxar
especialmente as “mais-valias rápidas” (?) no imobiliário, ideia tão grotesca
que é espantoso o PS não lhe ter pegado. Confirma-se que Pedro Passos Coelho era o derradeiro obstáculo ao
regime de partido único. Uma vasta maioria de portugueses, à sua maneira também
únicos, gosta assim.
2.
Grandes nomes da cultura internacional e caseira, de Brian Eno ao Padre “Na
Reserva” Fanhais, de Mike Leigh a António “Hífen” Pedro Vasconcelos, de Aki
Kaurismäki a José Mário “Inquietação” Branco, empenharam-se num projecto comum:
impedir a realização do Festival da
Eurovisão em Israel. Parece que não conseguiram, mas nem tudo está perdido.
É ridículo juntar tantos talentos sem os aproveitar para outras causas
humanitárias similares: a reabilitação póstuma de Adolf Eichmann, a atribuição
do Nobel da Paz (ou da Literatura) ao Estado Islâmico, o boicote a Jerry
Seinfeld, eu sei lá.
UM COMENTÁRIO:
Earl Woode: Excelente crónica. Os Portugueses aceitam
pacificamente tudo o que lhes faz o poder central (e são taxados até à medula a
troco de quase nada) mas indignam-se com coisas triviais e quanto mais ligadas ao
desporto, melhor.Então se for ligado ao futebol dá para andarem entretidos
durante meses a fio.Comecei por me rir no princípio da crónica mas, em chegando
ao fim, só dá vontade de chorar.
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