domingo, 16 de setembro de 2018

O Hissope do nosso alheamento


“O cidadão médio”, alheio soezmente a tudo o que não seja emoção em torno do que lhe cai no goto da sua pretensão democrática, qual a deste caso de uma mulher extremamente rica e negra e mal-educada: o tema-pretexto desta crónica de Alberto Gonçalves, faiscante de causticidade contra um povo de inércia racional, dono do “coitadinho” e dos inhos de uma “sensibilite” explosiva de ternura babada e incentivadora de mândria, ou dos aumentativos aviltantes expressivos de idêntico descontrolo emotivo e irracional, em caso de oposição de pareceres. E a troça apensa ao próprio título da crónica de Alberto Gonçalves – “Acontecimentos que mudaram a história: a tenista zangada - na desconformidade entre a dimensão hiperbólica do efeito (mudança da História) e a perversa nulidade da causa (zanga de uma tenista rica e negra, e mal educada), capaz de gerar contenda verbal, com as razões da nossa democratização recente, ligadas às causas do nacionalismo, do racismo e do feminismo. Bagatelas geradoras de emoção e conflito, que poderia criar sketches de caricatura e paródia pelos nossos comediantes DDT, ou mesmo outro género literário - tal como fez, três séculos antes, António Dinis da Cruz e Silva, ao criar o seu poema herói-cómico “O Hissope”, sobre vaidades feridas clericais e outros traços da nossa idiossincrasia pacóvia. Fá-lo hoje, com mão de mestre, Alberto Gonçalves, sobre essa nossa tacanhez sem remédio.     
SERENA WILLIAMS            Acontecimentos que mudaram a História: a tenista zangada /premium
OBSERVADOR, 15/9/2018
Descendentes de gente maravilhosa, os cidadãos decidiram sentir, sentir muito, sentir imenso, sentir sempre – desde que, vale acrescentar, o sentimento verse matérias que não lhe dizem respeito.
Soube só vagamente que, há dias, uma tenista qualquer reclamou com um árbitro qualquer durante um jogo qualquer. Na América. Dito assim, ou dito assado, o facto é tão irrelevante quanto o meu jantar de anteontem. Sucede que os tempos são propensos a pegar em irrelevâncias, agitá-las imenso e servi-las a título de “assunto”. Assunto ou, na linguagem e na acção contemporâneas, motivo de indignação. Hoje, quase tudo é pretexto para as pessoas se indignarem e exibirem o resultado na internet, um palco de furiosos que tornou anacrónicos o Speaker’s Corner no Hyde Park, a terapia do grito e os desfiles da CGTP. Porque é que um “match-point” remoto não deveria enfurecer multidões?
Primeiro, vieram os patriotas. Pelos vistos, o árbitro em questão é português e, naturalmente, “um dos melhores do mundo”. Entre parêntesis, começa a ser redundante acrescentar a expressão “melhor do mundo” à palavra “português”. Num movimento estimulado pelos comentadores da bola e pelo prof. Marcelo (outra redundância), é praticamente obrigatório notar que, dos treinadores às rolhas, dos chocos grelhados às solas de borracha, aquilo que Portugal produz constitui uma bênção para a humanidade, no fundo pasmada ante a nossa grandeza. Fora de parêntesis, no caso em questão, os patriotas nunca permitiriam que a afronta a um árbitro de que nunca ouviram falar passasse sem resposta. Milhares de “posts” no Facebook convidaram a tal tenista, e o público boçal que a aplaudiu no mau perder, a respeitar a nossa nação superior, ali representada por um senhor empoleirado.
Depois, vieram as – ou os, não quero ofender ninguém – feministas. Para estas, ou estes, as críticas posteriores à birra da tenista apenas existiram porque a tenista é mulher e, como tal, vítima de discriminação. Fui ver. A mencionada atleta, Serena Williams de seu nome e 16ª no “ranking” da modalidade, detém um pé-de-meia de meros 170 milhões de dólares, além de mansões humildes em Los Angeles e Palm Beach. A fortuna do actual primeiro classificado da tabela masculina, Rafael Nadal, anda pelos 160 milhões. Fica claro que a sra. Williams agoniza às mãos do sexismo vigente. E fica claríssimo o ócio mental de quem aproveita cada ocasião para protestar em nome dos demais sócios de uma agremiação imaginária, cuja vasta maioria não lhe encomendou o serviço. Milhares de “tweets” revoltados voltaram a demonstrar que os campeões das “identidades” carecem urgentemente de uma.
Por fim, entrou em cena a turba indistinta que, no meio de uma polémica postiça, costuma recolher as pequenas polémicas postiças que sobram. No caso, o “racismo”. É que a sra. Williams é “preta” ou, mil perdões, “afro-americana”, e isso abre a porta a toda uma série de possibilidades no sector da indignação. Pior do que a referência à “raça”, os anti-racistas abominam a indiferença à “raça”: é necessário chamar incessantemente a atenção para semelhante critério de modo a que o critério deixe de chamar incessantemente a atenção, e o universo viva em harmonia – ou em guerra racial, o que para os “anti-racistas” é ainda melhor. A concentração de melanina no corpo da sra. Williams diminui a sua sensibilidade à luz solar e aumenta a sensibilidade dos “anti-racistas” ao resto. O autor de um “cartoon” que ridicularizava a ira da sra. Williams no “court” viu-se acusado de ridicularizar a “etnia” da sra. Williams na vida. A pensar no desgraçado, milhares de publicações no Instagram (liberdade poética, ignoro o que o Instagram faz) acenderam uma fogueira “virtual”, lamentando unicamente a “virtualidade” da dita. O desgraçado esteve a um passo de perder o emprego, castigo mínimo por beliscar a susceptibilidade de estranhos.
E eis o ponto a que chegamos no ano da graça de 2018. Nas sociedades democráticas, informadas, tecnológicas e instruídas, o cidadão médio aceita com curiosa pacatez que o Estado o roube, que os partidos o gozem, que a banca o humilhe, que o jornalismo o engane, que os sindicatos o manipulem, que o poder, em suma, o atropele com testemunhas e despreocupação. Se, porém, acontece algures uma patetice sem vestígio de influência no seu quotidiano, saiam da frente do cidadão médio, cego de raiva e inchado de moralidade, em corrida desenfreada até à “rede social” mais próxima para denunciar injustiças e promover punições. Por cá, isto consistiu no desenvolvimento talvez lógico desse ex-libris dos provérbios palermas: quem não se sente não é filho de boa gente. Descendentes de gente maravilhosa, os cidadãos decidiram sentir, sentir muito, sentir imenso, sentir sempre – desde que, vale acrescentar, o sentimento verse matérias que não lhe dizem respeito. Com eles, ou elas ou o que quiserem, ninguém brinca. Excepto os que brincam, e impunemente.
Notas de rodapé:
1. O dr. Rio, portento escolhido pela “direita” para consagrar o rumo socialista previsto na Constituição, abençoou uma tentativa do Bloco de Esquerda em taxar especialmente as “mais-valias rápidas” (?) no imobiliário, ideia tão grotesca que é espantoso o PS não lhe ter pegado. Confirma-se que Pedro Passos Coelho era o derradeiro obstáculo ao regime de partido único. Uma vasta maioria de portugueses, à sua maneira também únicos, gosta assim.
2. Grandes nomes da cultura internacional e caseira, de Brian Eno ao Padre “Na Reserva” Fanhais, de Mike Leigh a António “Hífen” Pedro Vasconcelos, de Aki Kaurismäki a José Mário “Inquietação” Branco, empenharam-se num projecto comum: impedir a realização do Festival da Eurovisão em Israel. Parece que não conseguiram, mas nem tudo está perdido. É ridículo juntar tantos talentos sem os aproveitar para outras causas humanitárias similares: a reabilitação póstuma de Adolf Eichmann, a atribuição do Nobel da Paz (ou da Literatura) ao Estado Islâmico, o boicote a Jerry Seinfeld, eu sei lá.

UM COMENTÁRIO:
Earl Woode: Excelente crónica.  Os Portugueses aceitam pacificamente tudo o que lhes faz o poder central (e são taxados até à medula a troco de quase nada) mas indignam-se com coisas triviais e quanto mais ligadas ao desporto, melhor.Então se for ligado ao futebol dá para andarem entretidos durante meses a fio.Comecei por me rir no princípio da crónica mas, em chegando ao fim, só dá vontade de chorar.

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