quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Um conto em 500 palavras


Enviei-o para a Chiado Editora, em resposta a um desafio para uma Antologia – “Natal em Palavras”exactamente 500 – conto que foi aceite. Por isso o transcrevo para o meu blog, para não se perder no mutismo geral:

A combinação das cores
Vivera solitária, após a morte do marido, que ela tratou na doença prolongada, com o desvelo das mulheres educadas no respeito pelo seu mundo familiar, de caminhada cansativa embora, esgotados os meios de atracção que os unira, o marido iludido sofregamente na engrenagem do seu mundo de trabalho e dispersão, a mulher sentindo a monotonia de uma domesticidade que se arrastara, brutal, sem lógica, na sua configuração de apuramento e impecabilidade nas limpezas e alimento caseiros, na educação dos filhos que cedo enveredaram pelos seus próprios trilhos, em disparidade e ausência. Em jovem, contudo, fora esbelta e sedutora, revia-se, já velha, nas fotos da sua mocidade alegremente vaidosa, desaproveitadas as suas características de garridice no casamento imposto, de alvo vestido comprido, convenientemente simbólico de uma tradição de pureza virginal que o progresso eliminara. E foi na cidade que seguiu o destino natural das mulheres sujeitas ao macho dominador, que impôs as regras do viver comum, segundo o preceito ancestral de raiz bíblica, numa sociedade, contudo, em mudança reivindicativa de género e de conceito.
Os filhos dispersos, morto o marido, ela continuava presa à sua casa, à coscuvilhice com as amigas, ao espaço empedrado da sua rua, onde caminhava cautelosa, no temor das quedas, conhecedora do desgaste ósseo que vitimara conhecidos seus, por falha do cóccix, apesar do Calcitrin publicitário, tomado escrupulosamente, como prevenção dogmática, que todavia falhou também consigo, que tanto receara a cadeira de rodas e as canadianas, marco pontual da sua mudança de espaço.
E a mudança chegou, no falhanço do cóccix, auxiliado pelo tal empedrado esburacado, a cadeira de rodas tornou-se imprescindível, e bem assim o lar de idosos da sua comodidade e segurança, do seu desterro e marginalização finais, junto de companheiros e companheiras dormindo nos cadeirões em fila, encostados às paredes da sala ampla, na tristeza ou acrimónia de um destino sem retorno.
Saudades da sua casa onde vivera no caleidoscópio das suas vivências e das suas recordações, na antevisão desse futuro que também a ela apanhara e que a família impusera como solução de comodidade para todos.
Inútil estrebuchar. Teria que sujeitar-se e acomodar-se ao seu definitivo irremediável.
Definitivo, não totalmente ainda. Havia os Natais de família, dantes orientados por si e pelo marido, e que competia à neta, que ocupara a sua casa, continuar, na tradição natalícia intocável, o progresso e a abundância como manutenção inestimável desse preconceito simbólico de união familiar com festejo de riso e muitos presentes, uma vez por ano. Talvez nesse Natal recebesse mais livrinhos de pinturas, com desenhos preestabelecidos, como os que se dão aos meninos do pré-escolar, e que ela recebia carinhosamente dos seus, para estimular as suas capacidades intelectuais e artísticas, na combinação das cores e na correcção do esbatido cromático, desenhos que no Natal seguinte ofereceria de presente de amizade a cada um dos seus, que jamais se esquivavam a apreciar-lhe o jeito desse esbatido e dessa combinação das cores, específicos para cada modelo pictórico – esbeltas figuras, gatinhos, flores …

31/10/2018


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