Enviei-o para a Chiado Editora, em resposta a um desafio
para uma Antologia – “Natal em Palavras” – exactamente 500 – conto que foi aceite. Por isso o transcrevo para
o meu blog, para não se perder no mutismo geral:
A combinação das cores
Vivera
solitária, após a morte do marido, que ela tratou na doença prolongada, com o
desvelo das mulheres educadas no respeito pelo seu mundo familiar, de caminhada
cansativa embora, esgotados os meios de atracção que os unira, o marido iludido
sofregamente na engrenagem do seu mundo de trabalho e dispersão, a mulher
sentindo a monotonia de uma domesticidade que se arrastara, brutal, sem lógica,
na sua configuração de apuramento e impecabilidade nas limpezas e alimento
caseiros, na educação dos filhos que cedo enveredaram pelos seus próprios
trilhos, em disparidade e ausência. Em jovem, contudo, fora esbelta e sedutora,
revia-se, já velha, nas fotos da sua mocidade alegremente vaidosa,
desaproveitadas as suas características de garridice no casamento imposto, de
alvo vestido comprido, convenientemente simbólico de uma tradição de pureza
virginal que o progresso eliminara. E foi na cidade que seguiu o destino
natural das mulheres sujeitas ao macho dominador, que impôs as regras do viver
comum, segundo o preceito ancestral de raiz bíblica, numa sociedade, contudo,
em mudança reivindicativa de género e de conceito.
Os
filhos dispersos, morto o marido, ela continuava presa à sua casa, à
coscuvilhice com as amigas, ao espaço empedrado da sua rua, onde caminhava
cautelosa, no temor das quedas, conhecedora do desgaste ósseo que vitimara
conhecidos seus, por falha do cóccix, apesar do Calcitrin publicitário, tomado
escrupulosamente, como prevenção dogmática, que todavia falhou também consigo,
que tanto receara a cadeira de rodas e as canadianas, marco pontual da sua
mudança de espaço.
E
a mudança chegou, no falhanço do cóccix, auxiliado pelo tal empedrado
esburacado, a cadeira de rodas tornou-se imprescindível, e bem assim o lar de
idosos da sua comodidade e segurança, do seu desterro e marginalização finais,
junto de companheiros e companheiras dormindo nos cadeirões em fila, encostados
às paredes da sala ampla, na tristeza ou acrimónia de um destino sem retorno.
Saudades
da sua casa onde vivera no caleidoscópio das suas vivências e das suas
recordações, na antevisão desse futuro que também a ela apanhara e que a
família impusera como solução de comodidade para todos.
Inútil
estrebuchar. Teria que sujeitar-se e acomodar-se ao seu definitivo irremediável.
Definitivo,
não totalmente ainda. Havia os Natais de família, dantes orientados por si e
pelo marido, e que competia à neta, que ocupara a sua casa, continuar, na
tradição natalícia intocável, o progresso e a abundância como manutenção
inestimável desse preconceito simbólico de união familiar com festejo de riso e
muitos presentes, uma vez por ano. Talvez nesse Natal recebesse mais livrinhos
de pinturas, com desenhos preestabelecidos, como os que se dão aos meninos do
pré-escolar, e que ela recebia carinhosamente dos seus, para estimular as suas
capacidades intelectuais e artísticas, na combinação das cores e na correcção
do esbatido cromático, desenhos que no Natal seguinte ofereceria de presente de
amizade a cada um dos seus, que jamais se esquivavam a apreciar-lhe o jeito
desse esbatido e dessa combinação das cores, específicos para cada modelo
pictórico – esbeltas figuras, gatinhos, flores …
31/10/2018
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