terça-feira, 2 de outubro de 2018

I – Os poderosos, os poderes, o mar como alternativa



1ª Parte da extensa crónica de Gonçalo Magalhães Collaço, do Observador - “Trump, Portugal e a Europa na transição para uma nova era /Premium”, para um delirium tremens de aflição.
Trump, Portugal e a Europa na transição para uma nova era /premium
OBSERVADOR,24/9/2018
Estranhos dias. Estamos a entrar numa nova era e os Europeus parece terem apenas uma só e uma só preocupação: distinguir e dividirem-se entre quem gosta e quem não gosta de Donald Trump.
Numa época presidida e dominada pelos afectos, gostar ou não gostar, afigura-se ser, de facto, tudo quanto importa, senão mesmo tudo quanto mais importa. Não parece muito saudável. Dir-se-á que, em política, a forma, por vezes, conta tanto ou mais do que o conteúdo, mas confundir uma e outro não deixa ser um erro a poder ter, por vezes, não apenas as mais nefastas como, eventualmente mesmo, as mais catastróficas consequências.
Que o modo de agir do actual Presidente dos Estados Unidos desencadeia sempre as mais passionais reacções é tão patente que já nem vale a pena sequer referi-lo. Todavia, importa perceber igualmente se o seu modo de agir não poderá ser propositado, mesmo estudado, como, mais importante ainda, se por detrás de uma aparente inconsequência de actuação, por vezes até aparentemente demasiado histriónica, não poderá haver algo mais a que nem sempre estaremos a dar, em resultado da mesma imediata reacção emocional, a devida atenção. Ou seja, numa formulação simples, se a estratégia é a arte de conduzirmos terceiros a agirem em nosso benefício, mesmo sem consciência disso, o que importa não será perceber se a actuação de Donald Trump, enquanto Presidente dos Estados Unidos, legítimo representante dos Norte-Americanos, não beneficia, em última instância e acima de tudo, os interesses dos mesmos Norte-Americanos, levando terceiros a reagirem, com ou sem consciência disso, em prol dos mesmos Estados Unidos e, consequentemente, a conferir a Donald Trump popularidade que Donald Trump, goste-se ou não da figura de Donald Trump, congrega entre os seus conterrâneos?
Se nos colocarmos do outro lado do Atlântico e calçarmos os sapatos de um Norte-Americano, como se costuma dizer, talvez não se afigura muito difícil percebermos alguns factores determinantes da sua visão, perspectiva e atitude perante o mundo actual e da correlativa popularidade de Donald Trump.
Em primeiro lugar, temos a dimensão, a extensão territorial, recursos e uma consequente capacidade de os Estados Unidos se fecharem ao mundo como talvez pouco outras nações o poderão alguma vez fazer, ou sonhar sequer poderem fazê-lo, e mais a mais num momento em que têm vindo a ultrapassar, quase em absoluto, como também é sabido, o seu mais tradicional calcanhar de Aquiles como era a conhecida dependência energética, não apenas pela decisiva revolução do gás de xisto, que não respeita apenas ao gás mas também ao petróleo, bem como pelos avanços que, pouco a pouco, vão estabelecendo nas energias renováveis e que a prazo não deixarão de ter, evidentemente, igualmente a devida repercussão
Praticamente autónomos em termos energéticos, exportando já, inclusive, gás natural liquefeito um pouco para todo o mundo, a posição dos Estados Unidos é hoje, evidentemente, muito distinta da que era há alguns anos, permitindo que a sempre latente divisão entre os mais isolacionistas e os mais mundialistas, ou internacionalistas e intervencionistas, se assim podemos dizer, eventualmente mais se acentue também, cedendo os primeiros, em relação aos segundos, apenas e enquanto, nos tempos de novo realismos e pragmatismos que estamos vivendo, tal posição conduza a ganhos e vantagens políticas, económicas e geoestratégicas patentemente tangíveis e mensuráveis.
Numa época tão dominada por um novo realismo político e por um não menor e até quase extremo pragmatismo, como referido, não é natural que se vá deixando passar à História os dias de assunção de uma espécie de divina missão de levar a liberdade e a justiça ao mundo, como anteriormente, em prol de outras mais imediatas razões, eventualmente menos nobres e até possivelmente mais egoístas, como sejam a afirmação de uma tão ampla quanto possível garantia de Segurança e Defesa do seu próprio território, assim como de uma igual protecção dos respectivos interesses próprios espalhados um pouco por todo o mundo, a par, evidentemente, do reforço de uma prosperidade económica o mais visível e robusta possível? Assim se afigura. Nada de novo, dir-se-á, com toda a razão.
A questão do maior ou menor isolacionismo, da maior ou menor preponderância para um mais efectivo internacionalismo e consequente intervencionismo no mundo, tem atravessado a História dos Estados Unidos e evoluído também de acordo com a visão mais pessoal ou institucional dos seus respectivos Presidentes, de acordo também com as circunstâncias do mundo, como sucedeu mais, por exemplo, mais recentemente com George Bush, tendencialmente defensor de um maior isolacionismo mas compreendendo, após o 11 de Setembro, não podendo os próprios Estados Unidos, na prossecução dos seus superiores interesses, isolar-se do mundo, ser então preferível ter as respectivas tropas a combaterem a milhares de quilómetros de distância de casa, evitando o risco de, em contrapartida, virem um dia, eventualmente, a terem de combater o inimigo dentro de portas.
A questão de um maior isolacionismo versus um maior internacionalismo ou intervencionismo dos Estados Unidos não é, porém, quanto mais nos importa aqui abordar mas, olhando com olhos de ver para o mundo actual, tentar perceber um pouco melhor a trama global quando é nítida a persistência de uma Potência Dominante, como ainda continuam a ser, apesar de tudo quanto se diz e se vai pouco a pouco alterando, os Estados Unidos, perante o repto de uma nova Potência Desafiante, como se afirma, indiscutivelmente, a China, e de uma Potência que hoje se dirá Expectante, como a actual Rússia após os dias de Grande Potência vividos nos idos da velha União Soviética e depois do descalabro vivido na sequência da queda do Muro de Berlim. Neste panorama, a Europa já não exerce senão um papel relativamente Crepuscular, ainda com valor sobretudo em termos económicos mas pouco mais.
Sobre os Estados Unidos, Potência Dominante, não se afigura haver muitas dúvidas sobre a sua real e efectiva capacidade económica, tecnológica e militar, superando ainda, e de longe, as restantes nações do mundo sem que se preveja por enquanto e a breve prazo, a possibilidade de qualquer inversão da actual situação. Haverá, por certo, o desafio da Potência Desafiante, passe a redundância, entre outros? Com certeza, mas é ainda larga a distância e se é previsível uma redução relativa dessa mesma larga distância, não é, de facto, previsível, a breve prazo, uma completa inversão da actual situação.
Em termos económico, dir-se-á ser exactamente o que se está a verificar, por exemplo, em relação à China.
Assim é, de facto, mas apenas muito relativamente, ou seja, as assimetrias e os problemas internos persistentes no Império do Meio ainda levarão muitos anos a superar para que se possa colocar em verdadeiro paralelo a sua evolução com a dos Estados Unidos, para já nem referirmos os problemas políticos a que essas mesmas assimetrias, por um lado, e a própria natural evolução económica e superação, por outro, não deixarão de tender, mais cedo ou mais tarde, a conduzir também.
Apesar de toda a aparente defesa de um certo liberalismo económico e da liberdade do comércio, não é possível esquecer nunca a profunda contradição de um regime ainda hoje estruturalmente Marxista-Leninista, profundamente estatista e com práticas de mercado tudo menos claras, não podendo tudo isto augurar nada de bom a prazo.
Com certeza, num mundo crescentemente globalizado é natural haver um progressivo esbatimento das diferenças tanto económicas como tecnológicas, sobretudo em relação às grandes Potências, mas, mesmo nesse caso, necessitando a evolução e desenvolvimento económico e tecnológico de um ecossistema que não se cria de uma dia para o outro, e menos ainda por simples decreto, também não se vê como possam os Estados Unidos ser rapidamente superados por terceiros, nomeadamente pela China, que, apesar de todos os seus inegáveis e enormes avanços, ainda está muito dependente para a sua efectiva concretização de práticas tão aparentemente condenáveis e contraprodutivas como seja, por exemplo e tanto quanto é amplamente referido, o total desrespeito pela propriedade intelectual.
Para além disso, em termos puramente militares, onde mais directamente se compara o efectivo poder das grandes Potências, o avanço dos Estados Unidos, mesmo contando apenas com as suas actuais capacidades, como reconhecem os principais especialistas, não deixa de lhes garantir uma supremacia dificilmente igualável num horizonte entre 10 a 15 anos, seja pela China, seja pela Rússia. Não pode a situação alterar-se? Pode. E porque a situação pode sempre alterar-se, importa sempre ter igualmente em conta outro importante factor como seja o interesse dos próprios norte-americanos em que tal supremacia, de um modo ou outro, persista, não deixando assim de aplaudir os anunciados incrementos nos investimentos dedicados às Forças Armadas em geral e à Marinha muito em especial, pela actual Administração.
O mesmo que a Potência Desafiante também faz? Com certeza, não deixando de ser igualmente bem patentes os seus investimentos nas Forças Armadas em geral e na Marinha muito em particular, de tal forma que hoje se tornou capaz de construir desde sofisticados Navios Hidrográficos a Porta-Aviões, como Submarinos, tanto nucleares como convencionais, não deixando a sua frota de estar a expandir-se de forma gradual, sistemática e contínua desde há alguns anos e sendo exactamente nesta mesma área, i.e., na área militar, que os especialistas afirmam detectarem os mais significativos avanços tecnológicos do Império do Meio, não se limitando á reengenharia do material adquirido principalmente à Rússia, como anteriormente, mas indo mesmo muito além disso.
E facto, como é noticiado por vários meios de informação, a China neste momento não apenas tem já planos para construção de mais 3 a 4 Porta-Aviões, dispondo de tecnologia equiparável, segundo se comenta, ao USS Nimitz, para a construção de um novo Destroyer, eventualmente comparável ao Zumwalt, como de novos e igualmente sofisticados aviões furtivos conhecidos pela designação Chengdu J-20, sendo ainda reconhecidos importantes avanços na Inteligência Artificial e computação quântica.
A distância ainda será, porém, significativa, mas é, e facto, passível de ser encurtada e o poder efectivo de uma nação nunca respeita tão só estrita e exclusivamente à dimensão militar. Nesse sentido, a par do reforço da capacidade militar mais pura e dura, a China não tem deixado de procurar também ao longo dos últimos anos uma crescente influência económica e diplomática em todo o mundo, sendo o mais perfeito exemplo disso a conhecida e genericamente designada iniciativa «Uma Faixa, Uma Rota», não deixando emular, em parte, o que os Estados Unidos têm vindo a fazer desde há décadas, dispondo hoje, por exemplo, as mais de 700 Bases Militares que mantêm espalhadas por mais de 60 países em todo o mundo.
Apesar de haver quem preveja o fracasso da iniciativa «Uma Faixa, Uma Rota», em grande medida até pelos astronómicos investimentos envolvidos, o facto é que, até agora, se encontra ainda em expansão e tem permitido não só de acentuar a capacidade de influência de Pequim em termos económicos como servir, inclusive, em alguns casos, de instrumento de pressão política, ou político-económica, como sucedeu no caso do Sri Lanka, obrigado a ceder o controlo do porto de Hambantota por contrapartida de dívidas anteriormente contraídas a empresas chinesas, maioritariamente estatais, naturalmente.
Voltaremos à questão.
Entretanto, entre a Potência Actual e a Potência Desafiante, há sempre, naturalmente, a Rússia, Potência Expectante, em recuperação do seu pretérito poder mas ainda numa posição relativamente enfraquecida após a derrocada do Império Soviético e os dias em que disputava a supremacia mundial com os Estados Unidos, decaindo em seguida, a ponto de hoje ser ter visto já ultrapassada pela China como a segunda Potência Militar do mundo.
Apesar disso, i.e., apesar de economicamente mais débil, tanto em relação aos Estados Unidos como em relação à China, muito dependente das exportações de hidrocarbonetos, não tem deixado no entanto de perseguir uma consistente modernização das suas Forças Armadas e, uma vez mais, com especial enfâse na Marinha, desenvolvendo e construindo não apenas novos e submarinos, tanto sofisticados submarinos nucleares como não menos sofisticados e inovadores submarinos electrodiesel, assim como, em diferente mas correlato plano, os mais sofisticados navios quebra-gelos, incluindo navios quebra-gelos nucleares, únicos, afirmando também, por razões sobre as quais não valerá talvez a pena agora mais muito mais elaborar, uma supremacia no Árctico inimaginável ainda há um par de anos, aspecto ao qual regressaremos também mais adiante.
Para além disso, não deixando de continuar a possuir o maior arsenal atómico do mundo, a Rússia não deixa nunca de se ver, de querer ver-se e ser reconhecida como uma das Grandes Potências do mundo, como, de certo modo, até pela sua dimensão territorial, não deixa de ser compreensível, podendo assim suspender momentaneamente a produção e desenvolvimento dos novos tanques por razões de ordem económica, mas não de prosseguir o desenvolvimento e construção de novos e mais sofisticados caças furtivos como os SU-.57, bombardeiros TU-22M3M, novos submarinos, como já referido, e mísseis, dos SS-400 aos KH-32, anunciados por Putin como uma arma imbatível, a um ritmo que não só não tem diminuído como até tem mesmo vindo, segundo alguns entendidos, a acentuar-se.
Em brevíssima síntese, este é o panorama actual no que respeita aos desenvolvimentos mais significativos, sobretudo em termos militares, em relação às maiores Potências do mundo, sendo exactamente com estas Potências que o mundo de hoje conta e tem de contar, não nos podendo esquecer igualmente os seus principais e consequentes interesses estratégicos e geoestratégicos.
Tal não significa, evidentemente, serem tão só estas as nações relevantes na actualidade e que outros actores igualmente significativos, do Irão à Turquia, passando pelo Afeganistão e Paquistão, para não referir já o caso da Coreia do Norte que se coloca em diferente plano, não contem, bem ainda como uma Índia que não deixando de tender a poder vir a superar a China em quase todos os aspectos, da dimensão populacional à pujança económica, do desenvolvimento tecnológico até mesmo, se assim entender, à eventual capacidade militar, não manifestando efectiva pretensão, todavia, neste momento, pelo menos, de querer vir a transformar-se numa Potência Global, mantendo-se, por conseguinte, numa posição sempre um pouco mais recuada, na sombra, salvo, naturalmente, na sua mais directa área de influência, tanto de um ponto de vista territorial, seja em relação ao Paquistão, seja em relação à China, bem como, evidentemente, em termos marítimos, no que respeita ao Oceano Índico onde a mesma China não deixa de vir a afirmar tanto o seu crescente interesse, como a sua presença e marcada influência em muitos casos já.
De qualquer modo, o jogo, neste momento, é entre os Estados Unidos, a China e a Rússia,
Nessa perspectiva, regressando ao ponto de partida, se nos interrogarmos sobre qual poderá ser o maior pesadelo para quem olha para o Globo a partir dos Estados Unidos, talvez muito não erremos se admitirmos que o maior pesadelo será mesmo ver uma excessiva aproximação em conjugação de interesses, esforços e acção entre a Rússia e a China, tal como, em muitos aspectos tem vindo e está já a suceder.
De facto, olhando o mundo a partir dos Estados Unidos, a primeira grande preocupação deverá ser, sem sombra de dúvida, a militarização verificada no Mar do Sul da China onde Pequim não reconhece qualquer outro Direito, mesmo que se arrogue como Direito Internacional, sobre o que defende serem os seus prioritários Direitos Históricos nessa área, como ficou bem patente, de resto, na absoluta desconsideração votada à decisão do Tribunal Arbitral de Haia em relação à disputa mantida com as Filipas nessa questão, continuando a construir verdadeiras bases militares nas pequenas ilhas, ou mesmo apenas recifes, localizadas exactamente nas áreas marítimas em disputa com várias nações da região, como sucede nas Spratly, Paracels ou Woody Island, nem se coibindo de intensificar entretanto os avisos a toda a navegação aérea e marítima para abandonarem as respectivas rotas quando se entende estarem a ultrapassados os limites do que é unilateralmente determinado como zona marítima e aérea sob exclusivo jurídico do Império do Meio.
Defendendo o que consideram serem, ao abrigo do Direito Internacional, áreas internacionais e por conseguinte de livre navegação, os Estados Unidos têm vindo a marcar de forma veemente a sua posição, navegando livremente nas mesmas áreas mas não sem o risco de poderem vir a deparar-se com situações, no mínimo, mais equívocas.
A questão, porém, é complexa porque não está apenas em causa uma mera medição de forças bilateral mas também a necessidade de defesa das nações da região em disputa com Pequim, como o Brunei, Formosa, Malásia e Vietname, para além das já referidas Filipinas, sem qualquer possibilidade de confronto com o gigante vizinho, bem como, em diferente ângulo, tanto a Coreia do Sul como, muito especificamente, o Japão.
De facto, a mesma tendência hegemónica relativamente ao Mar do Sul da China tem vindo a ser também aplicada por Pequim, embora ainda em diferente escala, ao Mar do Japão, onde mantém igualmente a disputa sobre as Ilhas Senkaku/Diaoyu, mas não deixando de obrigar Tóquio a alterar a sua tradicional doutrina de Defesa e a acelerar novos planos de reforço da sua Marinha _ e sobretudo quando, a Norte, a disputa pelas Curilas com a Rússia não deixa de se manter igualmente activa.
Diretor do Jornal da Economia do Mar


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