domingo, 21 de outubro de 2018

A nossa tristeza, e a de Teresa de Sousa



Vicente Jorge Silva e Henrique Salles da Fonseca apontam motivos da nossa tristeza nacional: o primeiro, informativo e crítico, foca o caso da demissão de um ministro, motivada por escândalo ,desleixo e falcatrua, o segundo, acentuadamente moralista, reforça a imprescindibilidade de se ser honesto, no pagamento das dívidas. Teresa de Sousa explora a sua tristeza – pessoal, com perdão da redundância - contando a história de um Brasil que conheceu como “país do futuro”, mergulhado hoje em miséria e desesperança em vias de uma eleição de alguém que foge às regras da democracia do seu lema. Quão longe estamos, todavia, do “mundo muito mal feito” do velho Afonso da Maia, apanhado pelo Marquês nas suas generosidades esmoleres de grande senhor, coisa bem condenável nesta época que, defendendo direitos iguais entre os homens, abandona os deveres ao critério de cada um, nunca, talvez, tendo existido tanto desnível, quer nos direitos quer nos deveres. Mas tristezas não pagam dívidas, riamos, pois, escandalosamente até.
I - OPINIÃO    A bomba atómica do ridículo
O lado sombrio de um país videirinho onde reina a lei do “salve-se quem puder” é também aquele que encontramos na forma como as hierarquias militares (e, já agora, políticas) tentaram encobrir o caso de Tancos.
VICENTE JORGE SILVA
PÚBLICO, 14 de Outubro de 2018
O ritual cumpriu-se e o gesto de Azeredo Lopes ao demitir-se de ministro da Defesa foi saudado pelo primeiro-ministro e pelo líder da oposição, Rui Rio, como revelador de “sentido de Estado”. Mas não deixou de ser sintomática a declaração de Augusto Santos Silva, o ministro dos Estrangeiros e número dois do Governo, que fez questão de se destacar dos seus pares para saudar esse gesto que “enobrece” o colega demissionário e, conforme também confessou, seu amigo. É que Azeredo é uma espécie de imitação e versão menor de Santos Silva, além de serem ambos universitários e de extracção portuense — tal como Rio —, pela disponibilidade demonstrada para ocupar cargos políticos da mais variada natureza desde que bafejados pelo perfume do poder.
Santos Silva foi, sucessivamente, ministro da Educação, da Cultura, da Defesa (tal como o amigo demissionário) e, por fim, dos Estrangeiros. Já Azeredo transitou de tutor político da Comunicação Social para tutor político das Forças Armadas, com passagem pela chefia de gabinete do presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira, sempre com um sentido de adaptação e metamorfose típico de um apparatchik — cujo modelo é, precisamente, Santos Silva —, pronto a abraçar qualquer função governativa. Só que esta elasticidade, aparentemente tão prezada por António Costa, se presta também a escorregadelas mais ou menos espectaculares em terrenos movediços como é o das Forças Armadas. E Azeredo não resistiu ao impacto dessa bomba atómica do ridículo que foi a novela de Tancos — que o atingiu em cheio como ministro, assim como às chefias militares e aos diversos actores dessa novela, desde o(s) autor(es) do crime aos seus encobridores e cúmplices, chegando alguns deles a reivindicar uma actuação concertada “em nome do interesse nacional”.
Ainda estão por esclarecer muitos pormenores da história, mas o que já conhecemos é mais do que suficiente para ficarmos estupefactos — apesar de eventualmente estarmos preparados para tudo — com a mistura explosiva de irresponsabilidade, de tacanhez mental e ética ou ainda de impensável infantilismo que este caso pôs a descoberto. E pensar que tudo isto foi praticado, encenado e escondido à sombra de uma instituição que é suposto estar ao serviço da defesa e segurança do país, mas parece funcionar como uma espécie de maçonaria, é qualquer coisa de arrepiante. A não ser que decidamos levar tudo para o território da paródia e do grotesco — como, aliás, Azeredo Lopes, numa já célebre entrevista, parecia convidar-nos (ao admitir, freudianamente, que não sabia sequer se tinha havido roubo de armas nos paióis de Tancos).
Mas se a questão é já muito grave no que refere ao (des)funcionamento e à crise de autoridade das Forças Armadas ou à paranóia de autodefesa corporativa que este caso revela (através da guerra e os jogos de ocultação opondo a PJM à PJ), a rápida sequência no tempo entre o trágico folhetim dos incêndios de 2017 e os episódios de Tancos é sintomática de um padrão de comportamento político que vulnerabiliza seriamente a cadeia de responsabilidades do Governo e a imagem de habilidade, competência e sentido de Estado tão insistentemente cultivada por António Costa.
Os incêndios puseram a nu uma aflitiva incapacidade de previsão e uma arrogante displicência nesse padrão de comportamento que culminou na avidez sórdida com que um punhado de oportunistas tentaram capitalizar para abusivo benefício próprio as obras de reconstrução nas zonas afectadas pelos fogos. Ora, esse lado sombrio de um país videirinho onde reina a lei do “salve-se quem puder” é também aquele que encontramos na forma como as hierarquias militares (e, já agora, políticas) tentaram encobrir o caso mais gritante da sua inoperacionalidade.
COMENTÁRIOS:
fernando jose silva,  LUSO 15.10.2018 : Aqui está muito, senão tudo, o que é o poder partidário em Portugal. Governa-se com a estratégia partidária e dentro dela a pessoal, pois estratégia nacional não há nenhuma. É de facto um salve-se quem puder que nos tem levado aos últimos degraus da escala europeia em todas as vertentes que procurarmos em estatísticas. Não há hierarquias, não há responsáveis, não há sentido de Estado , há apenas o sentido da oportunidade partidária dentro de mil esquemas preparatórios que levam a todo o imbróglio de mentiras, golpes, arruaças , lambidelas, capanguismo, enfim, os males dum terceiro mundo engravatado que se especializou em festas e fake news embrulhadadas em papel de promessas. Uma farsa queirosiana ao estilo pacóvio da inteligência pátria. E um salve-se quem puder, ou arranje-se!!!!
Armando Heleno, MOGOFORES (Anadia)14.10.2018: Aprecio VJS no cômputo geral do artigo, à excepção (e já não é pouco) do rótulo ao nosso ministro dos negócios estrangeiros, que está a ser o melhor de toda a nossa democracia. Já se sabe que os políticos têm este particular de andar de um lado para o outro, mesmo sem serem vira-casacas. O nosso ministro não merece o epíteto.
nelsonfari,  Portela-Loures 14.10.2018 11:00, Foco-me no sociólogo Santos Silva,de quem tenho um manual elaborado por este e em parceria com José Madureira Pinto. Os bons tempos de Silva,o actual Silva que "malha na direita", direita a sua companheira. Hoje um político cinzentão e subscrevo por inteiro o texto. Estes sexagenários, matreiros, muito batidos, homens de aparelho, sem génio nem chama, não são aquilo de que o País precisa. Só a forma como Silva se comportou no caso Sócrates - ele e muitos dos seus colegas do actual governo (nada viram, nada ouviram, de nada suspeitaram) diz tudo do estofo moral e, convenhamos, intelectual desta gente. É preciso que sejam removidos...de uma vez por todas. Silva, Capoulas, Costa, Vitorino, Cabrita, o eterno "técnico" Vieira da Silva e outros do mesmo jaez. A Bem da Nação, como se dizia antes de 1974.
 HENRIQUE SALLES DA FONSECA
 A BEM DA NAÇÃO, 20.10.18
Numa época em que os juros estão a subir nos mercados financeiros internacionais, lembro-me do tal «figurão» que dizia que as dívidas não são para pagar. E apesar do título do presente escrito inspirar racionalidade, começo com um dogma que, por definição, dispensa racionalidade: Uma pessoa de bem, paga o que deve
Este dogma aplica-se tanto na dimensão micro como na macro, ou seja, às pessoas e aos Estados. Porque, ao contrário do que disse esse tal «figurão», as dívidas são mesmo para pagar. Então, deixando a questão da dívida micro ao cuidado dos contabilistas, a nível macro a dívida global tem duas componentes: a pública e a privada, ambas com as vertentes interna e externa.
A dívida pública é a que vem sendo mais referida pela comunicação social mas a privada também tem que se lhe diga – e muito. 
A dívida pública, constituída para financiar os défices públicos, só pode ser reduzida na medida dos superávites públicos; a dívida privada externa– a que mais me preocupa - só pode ser reduzida na medida dos saldos positivos da balança de transacções correntes.
Enquanto não tivermos saldos positivos nas contas públicas, não reduziremos o stock da dívida pública; se não tivermos saldos positivos na balança de transacções correntes, o sistema bancário nacional continuará a endividar-se sobre o exterior persistindo na via da falência ou, no mínimo, da absorção pela banca estrangeira.
Temo que o Orçamento de Estado para 2019 nada tenha muito a ver com este tipo de preocupações. É claro que se trata de um Orçamento folclórico para entreter a esquerda caviar e a ferrugenta na certeza, porém, de que as «centenárias» cativações o vão pôr nos conformes com as necessidades da redução do stock da dívida pública. Sim? A ver vamos por causa das eleições…
E quanto à dívida externa privada? Ah! Aí pia muito mais fininho e o problema só se resolve com mais falências bancárias. Qual será o próximo?
OPINIÃO
O meu pedaço de tristeza
Há uma sucessão de erros políticos enormes que conduziram a Bolsonaro. Para quem não viu, a série brasileira O Mecanismo é imprescindível para perceber uma sociedade onde a corrupção leva tudo à frente. É um nó cego. Uma angústia.
14 de Outubro de 2018
1. Vamos deixando ao longo da vida pequenos pedaços de nós em alguns cantos do mundo. Tenho vários por aí espalhados, que a vida já vai longa. Um deles ficou no Brasil. Por razões várias. Visitei o país em duas magníficas e irrepetíveis visitas oficiais de Mário Soares, nos finais dos anos 1980, já com a democracia restaurada. Como era seu hábito, além de um profundo conhecimento pessoal da realidade brasileira, Soares quis ir a quase toda a parte. Estivemos no Maranhão, na Amazónia, no Recife, em São Paulo, no Rio de Janeiro e na Bahia. Foi numa dessas viagens que conheci o seu amigo Fernando Henrique Cardoso, então o mago das Finanças que haveria de resolver o problema maior da economia brasileira (e dos pobres): a hiperinflação. Entrevistei-o depois várias vezes, já tinha saído do Planalto. Sempre a mesma vasta cultura, a mesma lucidez, a mesma moderação, que fizeram dele o Presidente que criou as condições sem as quais Lula muito dificilmente teria sido eleito. Foi ele que me disse, nas vésperas da segunda eleição de Lula da Silva já em pleno “mensalão”, a frase que foi título de uma dessas entrevistas. “É preciso evitar que a falta de liderança de Lula não destrua o símbolo.” Foi ele também que me explicou com três palavras que Lula não pertencia à velha esquerda latino-americana: não era antiamericano, não era antiglobalização e não era anticapitalista. Numa frase: era igualmente aplaudido no Fórum Económico de Davos e no Fórum Social de Porto Alegre. A transmissão de poderes, no Planalto, no dia 1 de Janeiro de 2003, foi uma cerimónia comovente. Matias Spektor (Fundação Getúlio Vargas) escreveu um livrinho, «Dezoito Dias», no qual descreve como os dois colaboraram durante a transição de forma exemplar e como F.H.C. tratou de tranquilizar Washington e Nova Iorque sobre a eleição de Lula. O Brasil parecia um país “abençoado por Deus”: um presidente considerado pela Foreign Affairs um dos intelectuais mais importantes do século XX; um operário metalúrgico, pobre e com poucos estudos, com a capacidade de entender o mundo em que vivia e de prometer aos brasileiros aquilo a que tinham direito — “três refeições por dia”. A nostalgia deste tempo aumenta ao ritmo a que Bolsonaro se aproxima do Palácio do Planalto.
2. Fui algumas vezes ao Brasil, sobretudo a São Paulo, participar em conferências organizadas na altura pelo IEEI. Fui aprendendo. Depois, vi (e vivi) o Brasil, entre 2010 e 2014, precisamente na sua melhor época, quando tudo parecia finalmente possível, mesmo descontando o exagero da elite do PT (que anunciava demasiado cedo e com demasiada gula o declínio do Ocidente e a emergência do Sul, onde os mais altos voos estavam destinados ao Brasil). Duas das minhas netas nasceram no Rio. Têm tripla nacionalidade: brasileira, britânica e portuguesa. Pareciam ter nascido para um mundo em que “a humanidade, citando Obama, seria finalmente comum”, independentemente do sítio onde se nascesse. No Mundial de futebol, a questão era saber por quem torcer. Por Portugal? Pela Inglaterra? O melhor era mesmo torcer pelo Brasil. Ainda hoje o português lhes sai com sotaque brasileiro. Não é problema. Passeei nas ruas do Rio (na Zona Sul, naturalmente) com a mesma descontracção com que passeio em Lisboa. Vi a nova classe média baixa, que emergiu da pobreza durante os governos de Lula (mais de 30 milhões de pessoas) alimentar expectativas como nunca antes tinha tido. Vi ainda, em 2014, as grandes manifestações nas quais exigia o que deveria vir a seguir: melhor educação pública; melhor saúde pública. Dilma e o PT não perceberam a mensagem, acusando a oposição de estar por trás delas. Era muito mais do que isso. Mas vi também as classes média e média alta, muito reduzidas em termos de percentagem, viver cada vez melhor, apesar de Lula. Nela se incluem os funcionários públicos com diploma universitário, os juízes e outros magistrados, os jornalistas, as profissões liberais, os pequenos e médios empresários. O luxo em que vivem não tem nada que ver com as classes médias europeia ou americana, que são largamente maioritárias. Para um espírito europeu, é quase impossível acreditar (só estando lá) que essa classe média alta, mesmo a intelectualmente mais preparada, se queixa do novo regime legal das empregadas domésticas, que encareceu o seu trabalho. Como dizia a minha filha, o seu pequeno apartamento de Londres cabia no espaço reservado à cozinha e aos quartos das empregadas do seu apartamento do Rio. Vi agora a empregada da minha filha no Rio, da qual ficou amiga, teimar com ela durante uma semana que ia votar Bolsonaro, até ter sido dissuadida no último minuto. Tinha votado em Lula. “E agora?” — pergunta ela. Recusa-se a votar no PT, porque pensa que foi traída por ele, incluindo por Lula que, por alguma razão, está na cadeia. O PT prometeu combater a corrupção e fez como os outros. Prometeu acabar com violência e fez como os outros. Prometeu uma vida melhor e ela vive as desesperantes consequências da maior crise económica brasileira das últimas décadas.
3. Do alto do nosso conforto europeu, não é fácil descermos à realidade em que vive uma grande maioria do eleitorado brasileiro. Não conhecemos o grau de violência que regressou ao Rio. Não sabemos o que é andar à procura de emprego e não arranjar. Não sabemos o que é voltar a temer pelo futuro dos filhos. Não é fácil explicar que há um valor supremo que é a democracia, que é a forma mais segura de combater a violência e de denunciar a corrupção. É demasiado abstracto. A esquerda europeia, com os seus sonhos e os seus mitos, não perde uma visita às favelas, mas vem dormir à Zona Sul. Na velha, civilizada, próspera e democrática Europa vemos hoje governantes prometer que vão varrer “os ilegais casa a casa, rua a rua.” Lemos reportagens com descrições inacreditáveis sobre as condições em que estão detidos alguns refugiados ainda à espera de asilo ou a quem o asilo não foi concedido, sem precisarmos de ir a Lesbos. O Guardian descrevia um desses locais inadmissíveis numa das suas últimas edições. O Governo britânico não desmentiu. Disse que ia ver. Vemos medrar em directo uma vaga de partidos populistas e nacionalistas na Europa, não à custa da pobreza das pessoas, como no Brasil, mas apenas à custa das suas incertezas sobre o futuro e ao seu medo dos imigrantes, reais ou imaginários, que olham como uma ameaça à sua cultura. Apenas querem ter a certeza de que vão continuar a viver tão bem.
4. Há uma sucessão de erros políticos enormes que conduziram a Bolsonaro. O Governo de Lula não esperou um mês para atacar desenfreadamente os governos de F.H.C. O PSDB (de F.H.C.) foi acumulando a frustração de ter falhado a eleição de Aécio (2014) por uma unha negra, embarcando no impeachment de Dilma, em 2016, por razão nenhuma, a não ser as suas escolhas políticas, mesmo que eventualmente desastradas. Vimos a operação Lava-Jato prender em público e em directo políticos corruptos e empresários corruptores numa dimensão nunca vista, provavelmente nem lá, nem em parte nenhuma. Para quem não viu, a série brasileira O Mecanismo é imprescindível para perceber uma sociedade em que a corrupção vai do biscate à emissão de um passaporte até à maior das empresas brasileiras, levando tudo à frente. É um nó cego. Uma angústia. Feito o desabafo, para quem queira entender o que está em jogo no próximo dia 28, basta ler na edição de ontem a coluna de Jorge Almeida Fernandes: “O projecto autoritário de Bolsonaro: uma hipótese de trabalho.”

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