segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Às portas do Inferno

Habituada à figura moderada de Francisco Assis, que sempre me pareceu pessoa de uma respeitabilidade impoluta, foi com grande espanto que li esta sua diatribe contra Jair Bolsonaro, certamente baseada em conhecimento exacto dos factos que aponta. Nem todos os que o comentam, porém, estão de acordo, por se julgarem, talvez, melhores conhecedores da realidade brasileira, de uma corrupção que nada demove, quer à esquerda quer à direita - daí que transcreva alguns, entre os quais se incluem apoiantes de Bolsonaro, que, ao que parece, joga duro contra o atropelo, dureza que o ideal democrático naturalmente condena. Mas a tal diatribe tão energicamente poderosa contra os desmandos dos prevaricadores, fez acordar, uma vez mais, os ecos da frase colocada às portas do Inferno, segundo a concepção de Dante, acompanhado do seu guia Virgílio - «tu duca, tu segnore e tu maestro»: “Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate!” Apesar, pois, na nossa crença no “maestro” impoluto Francisco Assis, de que o mundo brasileiro deve perder a esperança, caso faça a vitória de Jair Bolsonaro, por irreparável descrença em governantes anteriores mais permissivos de atropelos constantes, é com muito espanto e receio que encaramos a possível vitória do possível ditador Bolsonaro, augurando para o povo brasileiro o mesmo castigo severo dos futuros viventes brasileiros – um inferno de total desesperança e desespero Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate!”


OPINIÃO
Um canalha à porta do Planalto
Equiparar Haddad a Bolsonaro constitui um acto moral e politicamente inqualificável. Quem o faz torna-se cúmplice de Bolsonaro.
FRANCISCO ASSIS
PÚBLICO, 11 de Outubro de 2018,
1. Carlos Alberto Brilhante Ustra foi um dos maiores, senão mesmo o maior torcionário, no tempo da ditadura militar que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985. Em 2008 foi o primeiro oficial condenado por sequestro e tortura. Comprovadamente, maltratou física e psicologicamente centenas de pessoas e chegou ao limite de obrigar crianças a presenciarem o dilacerante espectáculo do espancamento dos respectivos progenitores. Nunca reconheceu os seus crimes nem manifestou o mais leve arrependimento pelos seus actos desumanos. Era um canalha. Morreu em 2015, em Brasília, na cama de um hospital.
Foi precisamente este torcionário miserável que o então deputado federal Jair Bolsonaro homenageou no momento em que votou a favor do impeachment da Presidente Dilma Rousseff. Nessa ocasião, Bolsonaro pronunciou uma declaração que o define integralmente: dedicou o seu voto à “memória do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff”. É impossível imaginar, naquele contexto, uma afirmação mais vil, um comportamento mais indigno, uma atitude mais asquerosa. Bolsonaro revelou-se ali o que ele verdadeiramente é: um canalha em estado puro.
O que é um canalha em estado puro? É alguém que contraria qualquer tipo de critério moral e se coloca num plano comportamental pré ou anticivilizacional. Quem elogia o torturador de uma jovem mulher absolutamente indefesa atribui-se a si próprio um estatuto praticamente sub-humano. Bolsonaro é dessa estirpe, desse rol de gente que leva à interrogação sobre o que subsiste de humano no homem que literalmente se desumaniza. Theodore Adorno levou essa questão até ao limite do pensável, quando formulou a sua célebre afirmação: “escrever um poema depois de Auschwitz é um acto bárbaro e isso corrói até mesmo o conhecimento de porque se tornou impossível escrever poemas”. E, contudo, a poesia sobreviveu. O Homem resiste ao que de desumanizador ele inscreve na história. Isso não é razão para renunciar à denúncia da barbárie.
A barbárie tem muitos rostos: é estúpida, boçal, intolerante, sectária, fanática, simplista, racista, xenófoba, homofóbica, sexista, classista, irremediavelmente preconceituosa, inevitavelmente primária. Jair Bolsonaro é um dos rostos perfeitos dessa barbárie em versão actual. Tudo nele aponta para a pequenez: é um ser intelectualmente medíocre, eticamente execrável, politicamente vulgar. Nele observa-se uma prodigiosa ausência de qualquer tipo de grandeza e uma assustadora presença de tudo quanto invalida um cidadão para o desempenho da mais humilde função pública. Por isso mesmo ele é extraordinariamente perigoso: é a expressão quase exemplar do homem sem qualidades subitamente erigido a um papel de liderança.
Bolsonaro não é Hitler, não é Mussolini, não é sequer Franco. Em bom rigor, se quisermos ater-nos a um debate intelectual de natureza escolástica, ele não é bem a representação do fascismo. Há nele, contudo, na dimensão medíocre que a sua pobre personalidade proporciona, tudo aquilo de que a tradição fascista historicamente se alimentou. O anti-iluminismo, a exaltação sumária da unicidade nacional, a apologia da violência, o culto irracional do chefe. Bolsonaro é pouco mais do que um analfabeto ideológico com todos os perigos que isso mesmo encerra. Ele e a sua prole de jovens tontos significam hoje o maior perigo com que se depara o mundo ocidental.
2. Alguns analistas políticos, uns por ignorância, outros por má-fé, tentam convencer-nos que os brasileiros terão de escolher nas eleições presidenciais entre a cólera e a peste. Isso não corresponde minimamente à verdade. Equiparar Haddad a Bolsonaro constitui um acto moral e politicamente inqualificável. Quem o faz torna-se cúmplice de Bolsonaro, da sua vertigem proto-fascista, da sua propensão para o culto da violência. É por isso que não pode haver hesitações neste momento da história do Brasil e, de uma certa maneira, da própria história da Humanidade. Haddad é um intelectual sofisticado, um democrata respeitador dos princípios fundamentais das sociedades abertas e pluralistas, um homem de reconhecida integridade cívica e moral. O PT cometeu erros nos anos em que governou o Brasil? Cometeu decerto, como todos os demais partidos que desempenharam funções governativas durante muito tempo em qualquer parte do mundo. Há, porém, uma coisa que é preciso afirmar enfaticamente nesta hora especialmente dramática: nem Lula, nem Dilma Rousseff alguma vez puseram em causa o Estado de Direito brasileiro. Ambos pugnaram por um Brasil mais justo e contribuíram fortemente para o alargamento das condições de afirmação da liberdade individual de milhões de brasileiros a quem o destino aparentava não conceder outra vida que não fosse a miséria, o sofrimento e absoluta exclusão social. Fizeram-no sempre no respeito pelas regras da democracia liberal, enfrentando a hostilidade de uma comunicação social globalmente desfavorável e os ferozes ataques dos grandes oligopólios económicos. Muitas vezes é difícil percebermos o que isso significa a partir de uma perspectiva europeia. Mas quem viajou dezenas de vezes para a América Latina, como eu fiz nos últimos anos, sabe bem o que isso traduz naquele sacrificado continente. Ali, ser pobre corresponde a ser muito mais pobre do que no nosso velho continente europeu; ali, ser mulher, ser homossexual, ser indígena, ser desempregado, ser mãe solteira, comporta uma carga sem correspondência com o que se passa no mundo que nós próprios habitamos.
Uma vitória de Bolsonaro significaria um retrocesso civilizacional para o Brasil e para o mundo. Não estamos, por isso, a falar de um confronto político e ideológico normal. Estamos perante um verdadeiro confronto entre a civilização, por mais ténue que esta seja, e a barbárie. Haddad é hoje mais do que Haddad, é mais do que o PT, é mesmo mais do que o Brasil. Haddad é o símbolo da luta da razão crítica contra o obscurantismo, da liberdade face ao despotismo, da aspiração igualitária diante do culto das hierarquias de base biológica ou social. É por isso que este combate nos interpela a todos. Estamos perante um momento de divisão clara entre o que no Homem há de apelo à razão, ao culto da liberdade, ao sentido da fraternidade, e o que no mesmo Homem há de impulso básico para o autoritarismo, a servidão e a anulação da inteligência crítica. Há horas na história em que tudo se reconduz a uma dicotomia simples que é ela própria o oposto de uma redução ao simplismo. Sejamos claros, no Brasil, hoje, a opção é evidente: Haddad significa a civilização, Bolsonaro representa a barbárie.
3. Fernando Henrique Cardoso tem a absoluta obrigação de se pronunciar num momento decisivo da vida do seu país. Este é o momento em que verdadeiramente se ajuizará do seu papel histórico. Até aqui prevaleceu a figura do intelectual brilhante, do ministro das finanças eficaz, do Presidente da República naturalmente polémico, mas reconhecidamente superior. O seu passado responsabiliza-o especialmente nas presentes circunstâncias históricas. Fernando Henrique Cardoso tem a obrigação moral de apoiar Haddad. Se o não fizer, apoucar-se-á perante os seus contemporâneos e sobretudo diante dos futuros historiadores do Brasil.
Eurodeputado do PS
Colunista

COMENTÁRIOS:
José Carvalho, 13.10.2018 : Muitíssimo bem escrito, Assis. E o curioso é ver que há alguém está por aqui a seguir as pisadas do José Manuel Fernandes. O tal que dizia , dizia, dizia, mas no fim queria era passar a mensagem do contrário daquilo que parecia querer dizer. Há por aqui gente dessa. Parabéns, Francisco Assis.
José Manuel Martins, évora 13.10.2018 : muitíssimo bem escrito, e não podemos senão estar 100% de acordo. Como não podemos senão estar 100% de acordo que temos 50% de brasileiros - mais do que cúmplices, eleitores - de Bolsonaro às portas do Planalto. E é que ainda teremos, então, que passar a concordar, também a 100%, que é absolutamente pavoroso pensar que o Brasil é constituído por uma metade eleitoral capaz de colocar no trono militarizado o desbocado rapaz ohne Eigenschaften (já que hoje o douto colunista pende para os pessimistas austro-alemães), o mesmo que homenageia o torturador da absolutamente indefesa agente da frente comunista mundial (quer dizer, da frente que denegava, ela própria, os seus próprios torturadores de metade do planeta). Pior do que os futuros historiadores, só os historiadores do futuro.
eng jorge moreira, Viana do Castelo 13.10.2018 : Francisco ASSIS, defunto político, falando daquilo que não sabe. É vergonhoso o carácter viciado do texto. Tendencioso. Só poderá falar do Brasil, quem lá viveu, quem foi Brasileiro, um ano que seja. Morar , viver, sofrer, olhar por cima do ombro, tentar enxergar um futuro que insiste em fugir. Escrever sobre o Brasil, sentado num qualquer escritório ou sala de Lisboa ..... não faz sentido, não é jornalismo não é informação, é fazer política, tentando influenciar. És um tonto Assis.
Margarida Paredes, Salvador da Bahia13.10.2018 : Eu vivo há 4 anos no Brasil e segundo o que defende tenho autoridade para me manifestar. Pois então, declaro que subscrevo na íntegra este artigo de Assis e celebro a clarividência dele em relação à situação brasileira e ao candidato a presidente, Bolsonaro. Já ouviu falar do reflexo do espelho? Parece-me que o tonto é você.
Rose Araújo Rose: 12.10.2018 Enfim, alguém inteligente e conhecedor do que realmente se passou e passa no Brasil. Parabéns pela sua mensagem correcta, honesta! Isso ai, meu! Parabéns Elisabeth, José Silvério e outros que pensam assim como eu. Pessoas que querem ver o país se livrar da corrupção nunca vista em qualquer outro país do mundo! Creio eu que tem muitos ricos portugueses envolvidos nessas falcatruas juntamente com Lula e outros. Vamos dar tempo ao tempo! Cadeia para todos os corruptos!




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