Habituada à figura moderada de Francisco Assis, que sempre me pareceu
pessoa de uma respeitabilidade impoluta, foi com grande espanto que li esta sua
diatribe contra Jair Bolsonaro, certamente baseada em conhecimento
exacto dos factos que aponta. Nem todos os que o comentam, porém, estão de
acordo, por se julgarem, talvez, melhores conhecedores da realidade brasileira,
de uma corrupção que nada demove, quer à esquerda quer à direita - daí que
transcreva alguns, entre os quais se incluem apoiantes de Bolsonaro, que, ao
que parece, joga duro contra o atropelo, dureza que o ideal democrático
naturalmente condena. Mas a tal diatribe tão energicamente poderosa contra os
desmandos dos prevaricadores, fez acordar, uma vez mais, os ecos da frase colocada
às portas do Inferno, segundo a concepção de Dante, acompanhado do seu guia
Virgílio - «tu duca, tu segnore e tu maestro»: “Lasciate ogni speranza,
voi ch’entrate!” Apesar, pois, na nossa crença no “maestro”
impoluto Francisco Assis, de que o mundo brasileiro deve
perder a esperança, caso faça a vitória de Jair Bolsonaro,
por irreparável descrença em governantes anteriores mais permissivos de
atropelos constantes, é com muito espanto e receio que encaramos a possível
vitória do possível ditador Bolsonaro, augurando para o povo brasileiro o mesmo
castigo severo dos futuros viventes brasileiros – um inferno de total
desesperança e desespero “Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate!”
OPINIÃO
Um
canalha à porta do Planalto
Equiparar Haddad a
Bolsonaro constitui um acto moral e politicamente inqualificável. Quem o faz
torna-se cúmplice de Bolsonaro.
FRANCISCO ASSIS
PÚBLICO, 11
de Outubro de 2018,
1. Carlos Alberto Brilhante
Ustra foi um dos maiores, senão mesmo o maior torcionário, no tempo da ditadura
militar que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985. Em 2008 foi o primeiro
oficial condenado por sequestro e tortura. Comprovadamente, maltratou física e
psicologicamente centenas de pessoas e chegou ao limite de obrigar crianças a
presenciarem o dilacerante espectáculo do espancamento dos respectivos
progenitores. Nunca reconheceu os seus crimes nem manifestou o mais leve
arrependimento pelos seus actos desumanos. Era um canalha. Morreu em 2015, em
Brasília, na cama de um hospital.
Foi precisamente este
torcionário miserável que o então deputado federal Jair Bolsonaro homenageou no
momento em que votou a favor do impeachment da
Presidente Dilma Rousseff. Nessa ocasião, Bolsonaro pronunciou uma
declaração que o define integralmente: dedicou o seu voto à “memória do
Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff”. É
impossível imaginar, naquele contexto, uma afirmação mais vil, um comportamento
mais indigno, uma atitude mais asquerosa. Bolsonaro revelou-se ali o que ele
verdadeiramente é: um canalha em estado puro.
O que é um canalha em estado
puro? É alguém que contraria qualquer tipo de critério moral e se coloca num
plano comportamental pré ou anticivilizacional. Quem elogia o torturador de uma
jovem mulher absolutamente indefesa atribui-se a si próprio um estatuto
praticamente sub-humano. Bolsonaro é dessa estirpe, desse rol de gente que leva
à interrogação sobre o que subsiste de humano no homem que literalmente se
desumaniza. Theodore Adorno levou essa questão até ao
limite do pensável, quando formulou a sua célebre afirmação: “escrever um
poema depois de Auschwitz é um acto bárbaro e isso corrói até mesmo o
conhecimento de porque se tornou impossível escrever poemas”. E, contudo, a
poesia sobreviveu. O Homem resiste ao que de desumanizador ele inscreve na
história. Isso não é razão para
renunciar à denúncia da barbárie.
A barbárie tem muitos rostos: é estúpida, boçal, intolerante, sectária,
fanática, simplista, racista, xenófoba, homofóbica, sexista, classista,
irremediavelmente preconceituosa, inevitavelmente primária. Jair Bolsonaro é um dos rostos perfeitos dessa barbárie em
versão actual. Tudo nele aponta para a pequenez: é um ser
intelectualmente medíocre, eticamente execrável, politicamente vulgar. Nele
observa-se uma prodigiosa ausência de qualquer tipo de grandeza e uma
assustadora presença de tudo quanto invalida um cidadão para o desempenho da
mais humilde função pública. Por isso mesmo ele é extraordinariamente perigoso:
é a expressão quase exemplar do homem sem qualidades subitamente erigido a um
papel de liderança.
Bolsonaro não é Hitler, não é Mussolini, não é sequer Franco. Em bom
rigor, se quisermos ater-nos a um debate intelectual de natureza escolástica,
ele não é bem a representação do fascismo. Há nele, contudo, na dimensão
medíocre que a sua pobre personalidade proporciona, tudo aquilo de que a
tradição fascista historicamente se alimentou. O anti-iluminismo, a exaltação
sumária da unicidade nacional, a apologia da violência, o culto irracional do
chefe. Bolsonaro é pouco mais do que um analfabeto ideológico com todos os
perigos que isso mesmo encerra. Ele e a sua prole de jovens tontos significam
hoje o maior perigo com que se depara o mundo ocidental.
2. Alguns analistas políticos, uns por ignorância, outros por má-fé,
tentam convencer-nos que os brasileiros terão de escolher nas eleições
presidenciais entre a cólera e a peste. Isso não corresponde minimamente à
verdade. Equiparar Haddad a Bolsonaro constitui um acto moral e
politicamente inqualificável. Quem o faz torna-se cúmplice de Bolsonaro, da sua
vertigem proto-fascista, da sua propensão para o culto da violência. É por
isso que não pode haver hesitações neste momento da história do Brasil e, de
uma certa maneira, da própria história da Humanidade. Haddad é um
intelectual sofisticado, um democrata respeitador dos princípios fundamentais
das sociedades abertas e pluralistas, um homem de reconhecida integridade
cívica e moral. O PT cometeu erros nos anos em que governou o Brasil? Cometeu
decerto, como todos os demais partidos que desempenharam funções governativas
durante muito tempo em qualquer parte do mundo. Há, porém, uma coisa que é
preciso afirmar enfaticamente nesta hora especialmente dramática: nem Lula, nem
Dilma Rousseff alguma vez puseram em causa o Estado de Direito brasileiro.
Ambos pugnaram por um Brasil mais justo e contribuíram fortemente para o
alargamento das condições de afirmação da liberdade individual de milhões de
brasileiros a quem o destino aparentava não conceder outra vida que não fosse a
miséria, o sofrimento e absoluta exclusão social. Fizeram-no sempre no respeito
pelas regras da democracia liberal, enfrentando a hostilidade de uma
comunicação social globalmente desfavorável e os ferozes ataques dos grandes
oligopólios económicos. Muitas vezes é difícil percebermos o que isso significa
a partir de uma perspectiva europeia. Mas quem viajou dezenas de vezes para a
América Latina, como eu fiz nos últimos anos, sabe bem o que isso traduz
naquele sacrificado continente. Ali,
ser pobre corresponde a ser muito mais pobre do que no nosso velho continente
europeu; ali, ser mulher, ser homossexual, ser indígena, ser desempregado, ser
mãe solteira, comporta uma carga sem correspondência com o que se passa no
mundo que nós próprios habitamos.
Uma vitória de Bolsonaro significaria um retrocesso civilizacional para
o Brasil e para o mundo. Não estamos, por isso, a falar de um confronto
político e ideológico normal. Estamos perante um verdadeiro confronto entre a
civilização, por mais ténue que esta seja, e a barbárie. Haddad é hoje mais do que Haddad, é mais do
que o PT, é mesmo mais do que o Brasil. Haddad é o símbolo da luta da razão
crítica contra o obscurantismo, da liberdade face ao despotismo, da aspiração
igualitária diante do culto das hierarquias de base biológica ou social. É por
isso que este combate nos interpela a todos. Estamos perante um momento de
divisão clara entre o que no Homem há de apelo à razão, ao culto da liberdade,
ao sentido da fraternidade, e o que no mesmo Homem há de impulso básico para o
autoritarismo, a servidão e a anulação da inteligência crítica. Há horas na
história em que tudo se reconduz a uma dicotomia simples que é ela própria o
oposto de uma redução ao simplismo. Sejamos claros, no Brasil, hoje, a opção é
evidente: Haddad significa a civilização, Bolsonaro representa a barbárie.
3. Fernando Henrique Cardoso
tem a absoluta obrigação de se pronunciar num momento decisivo da vida do seu
país. Este é o momento em que verdadeiramente se ajuizará do seu papel
histórico. Até aqui prevaleceu a figura do intelectual brilhante, do ministro
das finanças eficaz, do Presidente da República naturalmente polémico, mas
reconhecidamente superior. O seu passado responsabiliza-o especialmente nas
presentes circunstâncias históricas. Fernando Henrique Cardoso tem a obrigação
moral de apoiar Haddad. Se o não fizer, apoucar-se-á perante os seus
contemporâneos e sobretudo diante dos futuros historiadores do Brasil.
Eurodeputado do PS
Colunista
COMENTÁRIOS:
José Carvalho, 13.10.2018 : Muitíssimo bem escrito, Assis. E o curioso é ver que há
alguém está por aqui a seguir as pisadas do José Manuel Fernandes. O tal que
dizia , dizia, dizia, mas no fim queria era passar a mensagem do contrário
daquilo que parecia querer dizer. Há por aqui gente dessa. Parabéns, Francisco
Assis.
José Manuel
Martins, évora 13.10.2018 : muitíssimo bem
escrito, e não podemos senão estar 100% de acordo. Como não podemos senão estar
100% de acordo que temos 50% de brasileiros - mais do que cúmplices, eleitores
- de Bolsonaro às portas do Planalto. E é que ainda teremos, então, que passar
a concordar, também a 100%, que é absolutamente pavoroso pensar que o Brasil é
constituído por uma metade eleitoral capaz de colocar no trono militarizado o
desbocado rapaz ohne Eigenschaften (já que hoje o douto colunista pende para os
pessimistas austro-alemães), o mesmo que homenageia o torturador da
absolutamente indefesa agente da frente comunista mundial (quer dizer, da
frente que denegava, ela própria, os seus próprios torturadores de metade do
planeta). Pior do que os futuros historiadores, só os historiadores do futuro.
eng jorge
moreira, Viana do Castelo 13.10.2018
: Francisco ASSIS, defunto político, falando
daquilo que não sabe. É vergonhoso o carácter viciado do texto. Tendencioso. Só
poderá falar do Brasil, quem lá viveu, quem foi Brasileiro, um ano que seja.
Morar , viver, sofrer, olhar por cima do ombro, tentar enxergar um futuro que
insiste em fugir. Escrever sobre o Brasil, sentado num qualquer escritório ou
sala de Lisboa ..... não faz sentido, não é jornalismo não é informação, é
fazer política, tentando influenciar. És um tonto Assis.
Margarida
Paredes, Salvador da Bahia13.10.2018 : Eu vivo há 4 anos no Brasil e segundo o
que defende tenho autoridade para me manifestar. Pois então, declaro que
subscrevo na íntegra este artigo de Assis e celebro a clarividência dele em
relação à situação brasileira e ao candidato a presidente, Bolsonaro. Já ouviu
falar do reflexo do espelho? Parece-me que o tonto é você.
Rose Araújo
Rose: 12.10.2018 Enfim, alguém inteligente e conhecedor do que realmente
se passou e passa no Brasil. Parabéns pela sua mensagem correcta, honesta! Isso
ai, meu! Parabéns Elisabeth, José Silvério e outros que pensam assim como eu.
Pessoas que querem ver o país se livrar da corrupção nunca vista em qualquer
outro país do mundo! Creio eu que tem muitos ricos portugueses envolvidos
nessas falcatruas juntamente com Lula e outros. Vamos dar tempo ao tempo!
Cadeia para todos os corruptos!
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