sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Bla bla bla e malandrice

Relembrei a peça de Ionesco citada por Vicente Jorge Silva - «La Cantatrice Chauve” – que pude ler integralmente na Internet. Como bem afirma JJS, trata-se de uma peça inscrita no teatro do absurdo, na perfeita irracionalidade de diálogos sem qualquer sequência lógica, as personagens sem qualquer aparência de integração num mundo de racionalidade ou de afectos, debitando irrisórias frases, brutalmente desconexas, apreendidas em manuais de ensino de línguas estrangeiras, especificamente o inglês, visto que se trata de dois casais ingleses, uns Smith e uns Martin, acrescidos de uma Mary, empregada doméstica dos primeiros, mais um bombeiro eventual que, quando se retira da cena, pergunta pela cantora careca, que dá o título fútil à farsa, ao que lhe é respondido que se continua a pentear do mesmo modo. Entretanto, um relógio vai dando badaladas ao acaso do seu capricho, pontuando, animisticamente, o disparatado das situações e das falas sem qualquer pertinência, quando muito, bons exercícios de língua oral para principiantes na estrutura lexical e gramatical das línguas para estrangeiros. Vicente Jorge Silva aproveita-se da referência, para estabelecer o paralelo desse mundo irreal e grotesco, com as nossas actuações na arena  pública, sucessivamente e pertinazmente absurdas de inoperância, amadorismo, dissipação, pretensiosismo e mais tudo o que de má fé, idiotia, esperteza saloia, burrice, vai caracterizando a nossa actuação política, quer se trate de roubo de armas, transferência do Infarmed, guerra dos táxis versus Uber, operação Marquês, exposição fotográfica em Serralves, mais os incêndios e os trabalhos na floresta, mais, e sobretudo, parece-me, as discussões acaloradas sobre futebóis, mais a penetração aguda das orientações dos partidos para destruir eficazmente as tentativas desordenadas do governo para se equilibrar e equilibrar o país.
Não, não me parecem situações de paralelo, as da peça de Ionesco e as da nossa peça nacional, joguete, esta, de sentimentos vários, e acordando sentimentos vários, de desacordo e irritação em que se vive, ao contrário da farsa francesa. "A Cantora careca” é pura farsa absurda que aponta para o irrisório e inconsistente da existência humana, oca e vazia que, quando muito, retrata um universo de ruído sem nexo, simbólico da infinita solidão e desamparo humanos. As figuras e os casos do nosso tablado político e humano, embora absurdas e por vezes grotescas, estão pejadas de sentimentos negativos, em que a vileza não é a mais despicienda.
OPINIÃO
Cantoras carecas
Tancos é apenas o sintoma mais extremo de outras «cantoras carecas», como são o impensável amadorismo/oportunismo da tentativa de transferir o Infarmed para o Porto ou a guerra dos táxis versus Uber
30 de Setembro de 2018
A Cantora Careca, de Eugène Ionesco, é uma das peças mais célebres do teatro do absurdo, onde nada faz sentido: desde o título às situações e diálogos entre duas famílias burguesas britânicas (mas que poderiam ser de outro país qualquer). Além disso, a universalidade da sátira de Ionesco assenta que nem uma luva aos reflexos corporativos das instituições portuguesas, tal como vimos ao longo da última semana: Forças Armadas, Justiça, Política, Cultura, não houve quase nenhum sector que tivesse escapado.
A confirmar o gosto da teatralidade, o director da PJ Militar terá confessado ao juiz de instrução do caso de Tancos que o aparecimento das armas roubadas fora encenado «em nome do interesse nacional». Lê-se e não se acredita, mas pensando um pouco mais, estamos perante uma explicação patética e grotesca daquilo que não poderia ter acontecido e aconteceu: um rocambolesco roubo de armas e a sua ainda mais rocambolesca recuperação, conseguida após o conluio entre o principal criminoso (tanto quanto sabemos até agora) e as instituições militares supostamente vocacionadas para investigar o crime.
«Em nome do interesse nacional» é a chave da explicação corporativa em que se refugiam as instituições militares para esconderem o mistério de Tancos da indiscrição das instituições civis, nomeadamente da PJ e do Ministério Público. Como chegámos então a esta «cantora careca» (que «não lembra ao careca», como diria o comentador Marcelo) do teatro do absurdo e de um filme burlesco dos irmãos Marx? A explicação mais lógica – se é que podemos falar de lógica num caso onde impera a total falta dela – reside no mundo cada vez mais opaco de um poder militar doentiamente fechado dentro das suas casernas (afinal tão vulneráveis) face ao poder civil, e nas absurdas guerras corporativas que escapam ao controlo das instituições políticas democráticas e expõem à insignificância e ridículo absolutos o ministro da Defesa.
Mas Tancos é apenas o sintoma mais extremo de outras «cantoras carecas», como são o impensável amadorismo/oportunismo da tentativa de transferir o Infarmed para o Porto, a guerra dos táxis versus Uber – passando o conflito do âmbito nacional para o municipal, já depois de aprovada a lei – ou, no campo judicial, a lotaria da escolha do juiz de instrução da Operação Marquês entre dois magistrados de perfis diametralmente opostos para decidir a sorte de um dos processos mais volumosos, complexos e polémicos da Justiça portuguesa.
Finalmente, temos Serralves. E, aqui, a «cantora careca» é encarnada por dois mundos em conflito, onde todos ralham e ninguém parece ter razão, até porque nenhuma das partes falou claro e oportunamente. Nem a administração da Fundação que supostamente terá interferido na actividade do director artístico e curador da exposição de um artista muito polémico, Robert Mapplethorpe, com as suas fotografias «eventualmente chocantes», mas que veio tardiamente a refutar essa interferência. Nem o tal curador e director entretanto demissionário, mas que se afastou do palco do conflito, cultivando um silêncio incompreensível e alimentando versões contraditórias sobre a sua intervenção. Tudo isto proporcionou uma guerrilha entre defensores do curador – vindos basicamente do meio artístico – e da administração – oriundos sobretudo do mundo político e empresarial nortenho, enquanto se acentuavam os temores portuenses, designadamente da Câmara local, sobre os custos da polémica na reputação internacional de Serralves.
Uma das chaves para o mistério é o choque entre dois mundos opacos que não sabem dialogar entre si, protagonizados pelo director demissionário e a presidente da Administração. Mas fica por perceber a já longa história das demissões (e não-substituições) em Serralves, já anteriores ao caso Mapplethorpe, por alegado autoritarismo da presidente. Seremos, de facto, um país acolhedor para as «cantoras carecas»?
COMENTÁRIOS:
Happy go Days, Lisboa 01.10.2018 : Só? Senhorios contra inquilinos, turistas contra portugueses, ex-PR contra PR, etc. aliás Portugal está virado um contra o outro, óptimo clima para o PS dar um golpe de estado, já deu.
ADRIANO NEVES SILVEIRA, LISBOA 01.10.2018:  E porque é que estes, auto proclamados, arautos da transparência na sociedade não falam das cantoras carecas que pululam na sua corporação? Ou será que o sector do jornalismo é transparente? As ligações políticas, a protecção noticiosa de accionistas e mentores, bem como o facto de serem caixa de ressonância nas violações do segredo de justiça (onde ganham, e se calhar dão a ganhar, muito dinheiro com o aumento das vendas) são grandes exemplos dessa opacidade, também ela, muito má para a democracia. Isto de modo algum quer dizer que os actos, e comportamentos, falados no artigo não sejam passíveis de crítica, que o são, mas quem tem telhados de vidro não deve atirar pedras e os dos media são de cristal!
Armando Heleno, MOGOFORES (Anadia)30.09.2018: O que muitas vezes me parece impensável é a maneira como se tomam decisões que são a mais clara antítese daquilo que é o senso comum. Pode, no entanto, haver razões maiores para tal, mas nessa altura deveriam ser esclarecidas, para não ficarmos de cabeça a abanar e nas próximas eleições ficarmos em casa a ler ou ir à praia.
ana cristina, Lisboa et Orbi 30.09.2018: excelente metáfora. excelente análise. parece-me bem que somos.

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