Relembrei a peça de Ionesco citada por Vicente Jorge Silva - «La
Cantatrice Chauve” – que pude ler integralmente na Internet. Como bem afirma
JJS, trata-se de uma peça inscrita no teatro do absurdo, na perfeita
irracionalidade de diálogos sem qualquer sequência lógica, as personagens sem
qualquer aparência de integração num mundo de racionalidade ou de afectos,
debitando irrisórias frases, brutalmente desconexas, apreendidas em manuais de
ensino de línguas estrangeiras, especificamente o inglês, visto que se trata de
dois casais ingleses, uns Smith e uns Martin, acrescidos de uma Mary, empregada
doméstica dos primeiros, mais um bombeiro eventual que, quando se retira da
cena, pergunta pela cantora careca, que dá o título fútil à farsa, ao que lhe é
respondido que se continua a pentear do mesmo modo. Entretanto, um relógio vai
dando badaladas ao acaso do seu capricho, pontuando, animisticamente, o
disparatado das situações e das falas sem qualquer pertinência, quando muito,
bons exercícios de língua oral para principiantes na estrutura lexical e
gramatical das línguas para estrangeiros. Vicente Jorge Silva aproveita-se da
referência, para estabelecer o paralelo desse mundo irreal e grotesco, com as
nossas actuações na arena pública, sucessivamente e pertinazmente
absurdas de inoperância, amadorismo, dissipação, pretensiosismo e mais tudo o
que de má fé, idiotia, esperteza saloia, burrice, vai caracterizando a nossa
actuação política, quer se trate de roubo de armas, transferência do Infarmed,
guerra dos táxis versus Uber, operação Marquês, exposição fotográfica em
Serralves, mais os incêndios e os trabalhos na floresta, mais, e sobretudo,
parece-me, as discussões acaloradas sobre futebóis, mais a penetração aguda das
orientações dos partidos para destruir eficazmente as tentativas desordenadas
do governo para se equilibrar e equilibrar o país.
Não, não me parecem situações de paralelo, as da peça de Ionesco e as
da nossa peça nacional, joguete, esta, de sentimentos vários, e acordando sentimentos
vários, de desacordo e irritação em que se vive, ao contrário da farsa
francesa. "A Cantora careca” é pura farsa absurda que aponta para o irrisório e
inconsistente da existência humana, oca e vazia que, quando muito, retrata um
universo de ruído sem nexo, simbólico da infinita solidão e desamparo humanos.
As figuras e os casos do nosso tablado político e humano, embora absurdas e por
vezes grotescas, estão pejadas de sentimentos negativos, em que a vileza não é
a mais despicienda.
OPINIÃO
Cantoras carecas
Tancos é apenas o sintoma mais
extremo de outras «cantoras carecas», como são o impensável
amadorismo/oportunismo da tentativa de transferir o Infarmed para o Porto ou a
guerra dos táxis versus Uber
30 de Setembro de 2018
A Cantora
Careca, de Eugène Ionesco, é uma das peças mais célebres do teatro do
absurdo, onde nada faz sentido: desde o título às situações e diálogos entre
duas famílias burguesas britânicas (mas que poderiam ser de outro país
qualquer). Além disso, a universalidade da sátira de Ionesco assenta que nem
uma luva aos reflexos corporativos das instituições portuguesas, tal como vimos
ao longo da última semana: Forças Armadas, Justiça, Política, Cultura, não
houve quase nenhum sector que tivesse escapado.
A confirmar o gosto da
teatralidade, o director da PJ Militar terá confessado ao juiz de instrução do
caso de Tancos que o aparecimento das armas roubadas fora encenado «em nome do
interesse nacional». Lê-se e não se acredita, mas pensando um pouco mais, estamos
perante uma explicação patética e grotesca daquilo que não poderia ter
acontecido e aconteceu: um rocambolesco roubo de armas e a sua ainda mais
rocambolesca recuperação, conseguida após o conluio entre o principal criminoso
(tanto quanto sabemos até agora) e as instituições militares supostamente
vocacionadas para investigar o crime.
«Em nome do interesse nacional» é a chave da explicação
corporativa em que se refugiam as instituições militares para esconderem o
mistério de Tancos da indiscrição das instituições civis, nomeadamente da PJ e
do Ministério Público. Como chegámos então a esta «cantora careca» (que
«não lembra ao careca», como diria o comentador Marcelo) do teatro do absurdo e
de um filme burlesco dos irmãos Marx? A explicação mais lógica – se é que
podemos falar de lógica num caso onde impera a total falta dela – reside no
mundo cada vez mais opaco de um poder militar doentiamente fechado dentro das
suas casernas (afinal tão vulneráveis) face ao poder civil, e nas absurdas guerras
corporativas que escapam ao controlo das instituições políticas democráticas e
expõem à insignificância e ridículo absolutos o ministro da Defesa.
Mas Tancos é apenas o
sintoma mais extremo de outras «cantoras carecas», como são o impensável amadorismo/oportunismo
da tentativa de transferir o Infarmed para o Porto, a guerra dos táxis versus
Uber – passando o conflito do âmbito nacional para o municipal, já depois de
aprovada a lei – ou, no campo judicial, a lotaria da escolha do juiz de
instrução da Operação
Marquês entre dois magistrados de perfis diametralmente
opostos para decidir a sorte de um dos processos mais volumosos, complexos e
polémicos da Justiça portuguesa.
Finalmente, temos Serralves. E, aqui, a «cantora
careca» é encarnada por dois mundos em conflito, onde todos ralham e ninguém
parece ter razão, até porque nenhuma das partes falou claro e oportunamente.
Nem a administração da Fundação que supostamente terá interferido na actividade
do director artístico e curador da exposição de um artista muito polémico,
Robert Mapplethorpe, com as suas fotografias «eventualmente chocantes», mas que
veio tardiamente a refutar essa interferência. Nem o tal curador e director
entretanto demissionário, mas que se afastou do palco do conflito, cultivando um
silêncio incompreensível e alimentando versões contraditórias sobre a sua
intervenção. Tudo isto proporcionou uma guerrilha entre defensores do curador –
vindos basicamente do meio artístico – e da administração – oriundos sobretudo
do mundo político e empresarial nortenho, enquanto se acentuavam os temores
portuenses, designadamente da Câmara local, sobre os custos da polémica na
reputação internacional de Serralves.
Uma das chaves para o mistério
é o choque entre dois mundos opacos que não sabem dialogar entre si,
protagonizados pelo director demissionário e a presidente da Administração. Mas
fica por perceber a já longa história das demissões (e não-substituições) em
Serralves, já anteriores ao caso Mapplethorpe, por alegado autoritarismo da
presidente. Seremos, de facto, um país acolhedor para as «cantoras carecas»?
COMENTÁRIOS:
Happy go Days,
Lisboa 01.10.2018 : Só? Senhorios contra inquilinos, turistas
contra portugueses, ex-PR contra PR, etc. aliás Portugal está virado um contra
o outro, óptimo clima para o PS dar um golpe de estado, já deu.
ADRIANO NEVES
SILVEIRA, LISBOA 01.10.2018:
E porque é que estes, auto proclamados,
arautos da transparência na sociedade não falam das cantoras carecas que
pululam na sua corporação? Ou será que o sector do jornalismo é transparente?
As ligações políticas, a protecção noticiosa de accionistas e mentores, bem
como o facto de serem caixa de ressonância nas violações do segredo de justiça
(onde ganham, e se calhar dão a ganhar, muito dinheiro com o aumento das
vendas) são grandes exemplos dessa opacidade, também ela, muito má para a
democracia. Isto de modo algum quer dizer que os actos, e comportamentos,
falados no artigo não sejam passíveis de crítica, que o são, mas quem tem
telhados de vidro não deve atirar pedras e os dos media são de cristal!
Armando
Heleno, MOGOFORES (Anadia)30.09.2018:
O que muitas vezes me parece
impensável é a maneira como se tomam decisões que são a mais clara antítese
daquilo que é o senso comum. Pode, no entanto, haver razões maiores para tal,
mas nessa altura deveriam ser esclarecidas, para não ficarmos de cabeça a
abanar e nas próximas eleições ficarmos em casa a ler ou ir à praia.
ana cristina,
Lisboa et Orbi 30.09.2018: excelente metáfora. excelente análise.
parece-me bem que somos.
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