Julgo acertadas as opiniões
que, como gestor de Finanças, António Bagão Félix expende em artigos de bom
senso e equilíbrio, mas o certo é que os seus comentadores, que estão contentes
com as propostas reformistas deste governo, aparentemente salvador das garras
apertadas do antigo governo, discordam, evidentemente, na conveniência dos “arranjinhos”
governamentais em função da sua continuidade, no palco da travessura de que já
ninguém discorda. São poucos os comentários que o primeiro texto recebeu –
apenas 4 – e todos pautados pela troça soez dos que fingem não entender quanto
as exigências “leiloeiras”, chamarizes de votos, dos parceiros de esquerda, são
propícias, não ao tal “país das maravilhas” anunciado, mas para empurrar o
país sem receitas para o buraco negro do “zero” de que trata o segundo texto,
este sem comentários, apesar do brilho da sua feitura.
I - OPINIÃO: OE: Leilão à esquerda e eleições adiante
Como conciliar o mais baixo
défice da democracia e um assinalável superávite primário, com esta cascata de
boas notícias e de popularismo eleitoral?
ANTÓNIO BAGÃO FÉLIX
PÚBLICO, 16 de Outubro de 2018
Nos dias que antecederam a
entrega do OE, houve marcação cerrada
entre PCP e BE para ver quem mais chamava a si a sua parte popular. Por isso, tudo nos chegou em regime de leilão (quem consegue mais?)
e em posologia gota a gota de um doce xarope. Com a pressa de chegar
primeiro até se publicitou o que, afinal, não era. Assim, foi anunciada a
descida do IVA sobre a energia, quando se tratava apenas da redução da taxa
sobre o custo dos contadores. Assim se disse, sem pestanejar, que haveria um
aumento extraordinário de dez euros em todas as pensões para depois se perceber
que afinal era só para as inferiores a 550 euros e subtraído do acréscimo
obrigatório por lei (cerca de 1,8%). As propinas universitárias, hélas,
descem 212 euros, de um modo universal e igual para o mais rico e para o mais
pobre, cujas consequências serão pagas pelos contribuintes. No frenesim de se
ganhar houve até um episódio burlesco: o PCP anunciou que o factor de
sustentabilidade de pensões antecipadas de longas carreiras contributivas seria
anulado em Janeiro de 2020. Vai daí, o BE arranca uma notável vitória sobre o
mesmo assunto, qual seja o de a medida ser antecipada em três meses para
Outubro de 2019! Dá para todos... Com uma maioria de “amigos, amigos, eleitores
à parte”, o OE 2019, assim
percepcionado, faz lembrar um país das maravilhas.
Será isto sustentável? Como conciliar o mais baixo défice da democracia
e um assinalável superávite primário, com esta cascata de boas notícias e de
popularismo eleitoral?
Mais despesa, menos défice, só com
mais receita, obviamente.
E essa receita, para além da sedação fiscal por via de furtivos
aumentos da tributação indirecta (socialmente regressiva), resultará dos
estabilizadores automáticos que fazem subir o produto fiscal. A
isto acrescem a descida do custo (juros) da dívida pública, os elevados
dividendos do Banco de Portugal em virtude da compra de activos pelo BCE e
bancos centrais (que está no fim) e a margem discricionária das despesas de
capital, que mantém níveis ainda muito baixos.
Ora, Portugal é uma economia muito aberta e vulnerável a factores que
não controla. Por isso, teria sido melhor juntar ao moderado crescimento
verdadeiras reformas de fundo, do lado da despesa e no sistema tributário, que
tornassem as contas públicas mais imunes a factores cíclicos. Como escreveu
o ministro das Finanças num artigo publicado no domingo no DN, é preciso “criar
espaço para conseguir responder a um eventual abrandamento da actividade
económica, incerto na data, mas na certeza de que, mais tarde ou mais cedo,
chegará”.
Não basta reprimir ou conter conjunturalmente a despesa. E, muito menos, financiar despesa
recorrente com receita cíclica. O caso mais evidente foi a
errada redução de 40 para 35 horas de trabalho no Estado, que, sem o
correspondente aumento de produtividade, faz aumentar o volume de emprego
público e limita a atractividade salarial para uma melhor qualificação da
Administração.
E se o PIB crescer abaixo de 2,2%? E se a receita fiscal não chegar? Que importa
se, então, já passaram as eleições...
COMENTÁRIOS
NLOF, Alfornelos - Amadora 16.10.2018
: Tem quem goste de
"governos" à Passos Coelho, benefícios só para alguns e de
preferência para os mesmos de sempre. Se se parece que dá mais qualquer
coisita, lá vem o chavão do eleitoralismo... Preso por ter cão ou não. Calma...
acandrade, 16.10: Confesso que estou baralhado com o artigo do
dr. Bagão: há uma "cascata de boas noticias" ou é pura tanga? Há
eleitoralismo ou não? A verdade é que este tipo de ameaça da catástrofe que vem
aí, é acenada por Bagão e & cia, desde que apareceu o governo
"conhecido por geringonça" , para citar aquele sr que de vez em
quando sai da toca, para destilar o veneno que o corrói. Em que ficamos sr.
Bagão?
Stony Brook NY, Marialva Beira Alta 16.10.2018: também fiquei perdido neste artigo ...
EuQuixote, Olhão 16.10.2018: O que não será mesmo sustentável , é uma
outra crise financeira e moral para tirar dinheiro à muitos em proveito de
poucos. Já os pais dos estudantes universitários são, também eles,
contribuintes, é lamentável Bagão Félix temer os custos da redução da propina
em pouco mais de 200 euros, lamentável, triste e sintomático.
II - OPINIÃO: Zero, mais ou menos
O zero é uma das maiores descobertas intelectuais da
história e não apenas para a matemática.
ANTÓNIO BAGÃO FÉLIX
PÚBLICO, 19 de
Outubro de 2018
O Orçamento do Estado para 2019
prevê um défice muito próximo do equilíbrio orçamental. Ou seja, de quase 0%. Trata-se de uma meta que, em democracia,
jamais foi alcançada, o que é de saudar. Estamos perante um bom
paradoxo. Isto é, perto de um zero no défice, mas um zero que vale muito.
Não se trata sequer de um “zero à esquerda”, porque, neste caso, tem a
companhia de uma vírgula à sua direita, o que lhe dá um sentido valorativo.
Entre múltiplos factores que para isso contribuíram, está até essa estranha
prática de, em empréstimos, poder haver juros abaixo de... zero.
Na passada terça-feira, aqui escrevi
sobre o OE2019. Por certo haverá oportunidade para a ele
voltar. Por agora, no meio da recorrente discussão em seu redor e enquanto
assenta a respectiva poeira, optei por divagar
sobre o zero, uma das maiores descobertas intelectuais da história e não apenas
para a matemática.
Representar o zero, quantificar o nada, tornar existente o
inexistente, superar a casa vazia que significava o nada no ábaco, designar o
número de elementos de um conjunto vazio, eis o desafio de pura abstracção que
se colocou para uma grande invenção da humanidade.
Basta imaginar o que (não) seria
o mundo sem o conceito e representação do zero, no domínio não apenas da
matemática e ciências conexas, como da lógica, da filosofia, da ciência em
geral, da astronomia, da computação, até das religiões.
Simbolicamente, o zero foi um passo de gigante para o homem,
juntando-se a outras noções fundamentais da abstracção que são o infinito incontável e o infinito do contínuo.
Entre zero e um, qual o primeiro? O zero que nada é ou o um que é
infinitamente maior do que o zero (1/0=∞)? E se não existisse o zero faria
sentido o um?
Um avanço de grande insurreição lógica, pois trata-se de significar o nada
que, afinal, existe. Sem darmos
conta, o zero está enraizado, umas vezes positivamente, outras com conotação
negativa, na nossa linguagem e pensamento. Falamos de “um zero à esquerda” como sinónimo de alguém que nada vale,
insignificante, praticamente nulo, em oposição a um aparentemente
inofensivo zero à direita que,
porém, significa multiplicar por 10 um qualquer número, apesar de o zero
só por si nada valer. Uma das excepções à regra é a do famoso agente
secreto 007, em que os dois zeros à
esquerda tornaram James Bond mais famoso do que simplesmente seria com um
singelo 7. “Tolerância zero” é uma
expressão relativamente recente sobretudo para designar, quase sempre, o
império da lei face a uma qualquer transgressão. “Começar do zero” é outra frase com que se inicia qualquer coisa
depois de se ter ficado “reduzido a
zero”. Já “ano zero” traz
geralmente associada a novidade ou a esperança. E “orçamento base zero” é, na linguagem financeira, muito proclamado,
mas nunca efectivado. E que bom seria para os contribuintes que algumas
despesas inúteis do Estado tivessem por base este tipo de orçamento, pois que
aqui se aplicaria literalmente o paradoxo de que nem sempre o que parece ser de graça equivale a zero. Há
contextos em que o zero é o último (e
não o primeiro) algarismo que tudo detona, como é o caso do lançamento de
foguetões espaciais. Já no desporto e, em particular, no futebol, se o
resultado ficar 0-0 é, além de um insonso empate, um jogo de
empatas. Para certos refrigerantes chegou-se finalmente à expressão zero.
Primeiro envergonhada e parcialmente, com termos finos e ingleses,
como diet ou light,
agora através de um superlativo zero,
o que não significa, porém, zero de açúcares. Já na prova dos nove, há a
ordem de “noves fora zero” numa aliança algo estranha para verificar a
correcção de uma operação aritmética.
Há quem parta do zero para chegar
a nada, assim parecendo ninguém, palavra esta que é uma espécie de zero
relativo a pessoas. Mas atenção, há cada vez mais “zeros à
esquerda” que convivem muito bem com a ideia de se acharem no direito de ter
muitos “zeros à direita”.
Termino com um verbo sem verba e em forma de um neologismo
abrasileirado: zerar.
Estamos perto de zerar as
contas anuais do Estado, ainda que zerando, sem apelo nem agravo, muitos
contribuintes e aforradores, sobretudo aqueles que estando quase
a zerar as suas contas bancárias vêem penhorados os zeros à direita
de qualquer insignificante número, ao contrário de grandes e relapsos devedores
que, estes, nunca zeram. E, voltando ao Estado, é bom ter em conta que um
zero ou quase zero no Orçamento está longe de zerar a dívida pública
para a qual os contribuintes futuros, tendo de a pagar, correm o risco
de zerar.
Na passada terça-feira, aqui escrevi sobre o OE2019. Por
certo haverá oportunidade para a ele voltar. Por agora, no meio da recorrente
discussão em seu redor e enquanto assenta a respectiva poeira, optei por
divagar sobre o zero, uma das maiores descobertas intelectuais da história e
não apenas para a matemática.
Ainda que com aproximações em
algumas civilizações anteriores, como a babilónica e a maia, e sobretudo a
hindu, a chegada do zero ao Ocidente coincidiu, na Idade Média, com a expansão
dos algarismos árabes. Antes, a avançada civilização romana nunca foi capaz de
representar a ausência de quantidade numérica e a helénica considerava essa
ideia não só anti-estética, como o factor gerador de caos e confusão num mundo
organizado.
IPSIS
VERBIS
CITAÇÃO: “De uma série de zeros faz-se facilmente uma
cadeia” (Jerzy Lec, poeta polaco, 1906-66)
ANAGRAMA DE ZERO: Rezo
OXÍMORO I: Zero absoluto (zero
da temperatura termodinâmica, cerca de -273º)
OXÍMORO II: Pequeno nada
PLEONASMO: Certeza absoluta
SCIENTIA
AMABILIS
Welwitshia mirabilis Hook.
O deserto está associado à ideia da
ausência, o
que, todavia, está muito longe de significar zero em natureza e mistério. Há uma
planta estranha que só existe, espontaneamente, no deserto de Namibe, no
sul de Angola. É a Welwitschia
mirabilis, que sendo
hoje uma espécie ameaçada, coexistiu com os dinossauros. De crescimento
lentíssimo, é considerada a espécie mais resistente do mundo e pode viver bem
mais de um milénio. Com uma enorme raiz aprumada e um caule lenhoso, côncavo e
engrossado, tem apenas duas folhas que se vão desfiando com a idade e que
podem atingir dois metros, assemelhando-se a uma farta cabeleira. Há muitos
anos, tive a possibilidade de a observar naquele deserto e entendi por que
Charles Darwin lhe chamara ornitorrinco vegetal, dado o seu aspecto estranho e invulgar. Sobrevive a condições próximas de zero,
designadamente climáticas, como zero de chuva por cinco anos seguidos. O seu
nome homenageia o naturalista austríaco Frederich Welwitsch, que, em meados do
século XIX, esteve em Angola ao serviço de Portugal e a descobriu.
Nenhum comentário:
Postar um comentário