De Maria João Avillez. Mais um
gracioso texto, feminino, caprichoso, de expressão voluntariosa e elegante, quer
quando afirma devaneios de alma em espaços de luz e cor, quer quando refere
opiniões e conceitos da sua prática e experiência vividas ou das leituras
colhidas. Aproveitemos um qualquer intervalo, com ou sem pipocas, e
acompanhemos o seu passeio com natural prazer e sem parti pris.
Intervalos
OBSERVADOR, 30/1/2018
Europa matriz e porto ou
Europa em declínio? União Europeia ou Desunião Europeia? Acreditar ou desistir?
Leiam este livro de Carlos Gaspar: reflecte-se tanto quanto se aprende.
1. Dantes havia
intervalos nos cinemas. Foram abolidos, ainda bem. Já a vida, o ruído dos dias,
o ofício, as chatices, não se podem dar ao luxo de os dispensar, de vez em
quando há fadários que precisam como pão para a boca de serem posto entre-parêntesis.
O intervalo é, porém, um conceito interessante em si, pelo que subitamente pode
pressupor tantas as “utilizações” que permite, a fantasia que despoleta.
Gosto de intervalos.
Não haverá porém melhor
intervalo do que quando se agarra um livro e não nos desagarramos dele. Talvez
só a música embora o exercício da comparação entre universos tão distintos –
mas a que tantas vezes se procede — sempre me surja como ocioso e a “medição”
entre o efeito de tais mundos sobre as nossas pobres almas, me pareça
totalmente descabida. (Como diria o outro, música ou letras, “é conforme”.)
2. De modo que no
dobrar da esquina de um desses intervalo, agarrei no livro de José Cutileiro. (Abril e Outras Transições, D. Quixote).
Livrinho breve, objecto muitíssimo bonito na sobriedade com que nos deita (ele,
a nós) o primeiro olhar, mas pelo meu lado também não costuma escapar-me a
moldura gráfica que embrulha o que me querem contar e este livro sabe-a toda:
capa, tipo de letra, cheiro a papel, tamanho. O seu autor também sabe. José
Cutileiro- entre algumas outras coisas e nenhuma de somenos – foi embaixador,
viu muito, reteve tudo, não esqueceu nada. E um dia cinzelou a memória com uma
boa ideia (e Deus sabe como é difícil ter uma boa ideia e depois domesticá-la
para ela não nos devorar a nós).
Cutileiro voltou ao palco
de três “transições” políticas por si vividas, na pele (e até ao osso!) do
ofício diplomático: o 25 de Abril de 1974; o fim do Apartheid (estava em posto
em Pretória, tendo sido das primeiras pessoas a avistar-se com Nelson Mandela,
pouquíssimos dias após a sua libertação); a guerra dos Balcãs, numa esfacelada
Jugoslávia pós-Tito. Três momentos históricos, fortes, intensos, decisivos, que
aqui nos surjem, digamos, “ligados” por um denominador comum que é o olhar do
próprio José Cutileiro — actor doublé de fino e
atentíssimo observador. Óptima escolha de três questões maiores. Contada com
aquele misto de arguta inteligência, indiscutível conhecimento de personagens,
palco e bastidores políticos subtileza e ainda esse soupçon de cinismo que ele às vezes põe nas coisas
que nos descreve, como quem agarra no sal ou na pimenta e apura um tempero. E
claro, uma lucidez sem sombra de ilusão sobre quase nada — e perdoe-se-me o
excesso de à vontade na afirmação — que a vida e a natureza humana conhece-as
ele, como poucos. Tudo isto já não seria pouco, mas falta o melhor e aqui ele é
o “vécu”. O maior interesse deste livro é justamente o ter sido ele vivido – e
respirado — até ao fundo dos fundos por quem o escreve.
As três “Transições” são
antecedidas, precedidas ou intercaladas por algumas reflexões sobre Portugal e
a nossa indefinível (aqui não peço desculpa pelo à vontade no uso do adjectivo)
condição portuguesa. Onde de novo há finíssima observação, há humor e sabor, há
realidade, nas pequenas histórias que José Cutileiro desencantou da sua memória
e nas pessoas a quem recorreu para as ilustrar. Com elas — histórias e pessoas
— agarra numa pincelada de palavras e conta, melhor que num tratado ou em mil
estudos, esta coisa (indefinível outra vez) de ser português.
3. Foi um momento
roubado a mim própria, um breve intervalo numa manhã de afazeres. Entrei na
Gulbenkian à procura do “Outro lado do Espelho”, como a Alice.
Mas ainda antes de me
aperceber da organização do espaço na imensa sala, o meu olhar foi captado não
pelo interior — a omnipresença ambígua dos espelhos nas telas –, mas pelo
exterior verde que se avistava através da larga e lisa superfície do vidro das
janelas. Via o jardim como se subitamente fosse a primeira vez que o via,
rasgado em clareiras e caminhos e ao mesmo tempo tão poderosamente secreto, por
vezes um quase bosque escondido. Árvores antigas, plantas, arbustos, folhagem
densa, natureza pujante de verdes e castanhos, quem diria que era Janeiro.
Outra tela.
Era — foi — difícil tirar
dali o olhar. Filtrado pela luz coada da manhã, porque é que o jardim me
cativava tanto? Levei tempo a deixar-me contaminar pelos espelhos e sua
perturbante ambiguidade, a complexidade de significados e sentidos que eles
podem projectar em cada um, num percurso através de cinco núcleos que nos são
propostas para a viagem ao outro lado de cada um daqueles espelhos.
Magnifico. Fiz e refiz o
percurso das cinco “estações” de uma das exposições mais inteligentes – não sei
se a palavra é bem esta, talvez envolvente, talvez interpelante – que tenho
visto na Gulbenkian, notavelmente bem “dada a ver” pela sua curadora Maria Rosa
Figueiredo. Mas uma curadora não é afinal também ela uma criadora?
4. Falei acima de
filmes sem intervalos (e sim, ainda bem: que seria dar mais tempo aos
esfaimados devoradores de pipocas que se sentam ao nosso lado e nos arruínam o
filme?), mas este que agora vi foi seguramente em si mesmo um resplandecente
intervalo: entre mau jornalismo e tibieza humana, bom jornalismo e direiteza de
carácter. Falo do “The Post”, claro, e não acredito que haja algum jornalista
digno desse nome que não tenha sentido a garganta seca, um sobressalto, uma
furtiva lágrima quando Catherine Graham — proprietária do Washington Post —
decide que sim, “Os Papéis do Pentágono”, sim, são para publicar, sim. São,
sim.
O filme é uma galopada
vibrante e bem coreografada e eu que não sou desse tempo, sou ainda um
bocadinho dele: o inconfundível frenesim – um frenesim exclusivo, só nosso –, a
pressa, a arqui sagrada “hora de fecho”, a partida sempre sobressaltada e a
alta velocidade das provas para a gráfica, primeiro em “A Capital”, depois no
“Expresso, o “tudo para ontem”, a também inconfundível alegria pela “cacha”
obtida, a camisola sempre vestida, o brio. Que tempos.
Mas nesses ou nestes
tempos, aqueles vinte segundos ao telefone de uma mulher de meia idade,
Catherine Graham/Merryl Streep, dividida e tensa, no auge da solidão e sabendo
como só a ela cabe o peso, a responsabilidade e o resultado da sua decisão,
valem o filme. Julgo até que não é preciso ser jornalista de vocação ou
profissão (não é a mesma coisa) para perceber que se trata de uma história de
carácter a propósito de jornalismo.
Um filme para todos,
portanto.
5. Um só intervalo
não chega para apreciar este livro: lendo-o, reflecte-se tanto quanto se
aprende. Um bom ponto (A Balança
da Europa, Carlos Gaspar, Aletheia).
A Europa está em declínio ?
perguntamo-nos, entre o receio e a inquietação perante um hoje incerto.
Dizem-no um “hoje” de mudança de rumo, será assim? Há Macron, imperial,
disposto a devolver ao eixo franco-alemão o seu poder e a sua liderança; há
Merkel, navegando na maré baixa, depois do longo ciclo das marés altas; há uma
gente desequilibrada e perigosa no canto leste, há uns grupos organizados de
extrema direita à espera e a espreita da sua vez, com muitos votos no bolso; há
um sul a mudar mas nem todo na mesma direção. E há crises pesadas, dos
refugiados à flagrante usura dos próprios sistemas democráticos, passando pela
encalhada reforma do euro (será desta?). Avanços e recuos, súbitas ilusões
(como agora, com Macron), más surpresas, desilusões, desuniões, medos. E um
divórcio litigioso entre eleitos e eleitores, eis o que tem sido o pão nosso de
cada dia.
Mas… é preciso ir buscar o
antes disto. Voltar ao passado: essa longa, trágica, sanguinária,
impressionante história que Carlos Gaspar – para melhor recortar o hoje europeu
de que nos quer falar – ressuscita, relembra e revê. Uma lição, partitura para
vários instrumentos, história, política, cultura e civilização ocidental. E
conhecimento da génese de que são feitos os comportamentos humanos que ditaram
as decisões e as escolhas que, sabemo-lo bem, conduziram às vitórias ou ao
horror.
Europa matriz e porto ou
Europa em declínio? União Europeia ou Desunião Europeia? Acreditar ou desistir?
Leiam este livro.