quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Divagações


De Maria João Avillez. Mais um gracioso texto, feminino, caprichoso, de expressão voluntariosa e elegante, quer quando afirma devaneios de alma em espaços de luz e cor, quer quando refere opiniões e conceitos da sua prática e experiência vividas ou das leituras colhidas. Aproveitemos um qualquer intervalo, com ou sem pipocas, e acompanhemos o seu passeio com natural prazer e sem parti pris.
Intervalos
OBSERVADOR, 30/1/2018
Europa matriz e porto ou Europa em declínio? União Europeia ou Desunião Europeia? Acreditar ou desistir? Leiam este livro de Carlos Gaspar: reflecte-se tanto quanto se aprende.
1. Dantes havia intervalos nos cinemas. Foram abolidos, ainda bem. Já a vida, o ruído dos dias, o ofício, as chatices, não se podem dar ao luxo de os dispensar, de vez em quando há fadários que precisam como pão para a boca de serem posto entre-parêntesis. O intervalo é, porém, um conceito interessante em si, pelo que subitamente pode pressupor tantas as “utilizações” que permite, a fantasia que despoleta.
Gosto de intervalos.
Não haverá porém melhor intervalo do que quando se agarra um livro e não nos desagarramos dele. Talvez só a música embora o exercício da comparação entre universos tão distintos – mas a que tantas vezes se procede — sempre me surja como ocioso e a “medição” entre o efeito de tais mundos sobre as nossas pobres almas, me pareça totalmente descabida. (Como diria o outro, música ou letras, “é conforme”.)
2. De modo que no dobrar da esquina de um desses intervalo, agarrei no livro de José Cutileiro. (Abril e Outras Transições, D. Quixote). Livrinho breve, objecto muitíssimo bonito na sobriedade com que nos deita (ele, a nós) o primeiro olhar, mas pelo meu lado também não costuma escapar-me a moldura gráfica que embrulha o que me querem contar e este livro sabe-a toda: capa, tipo de letra, cheiro a papel, tamanho. O seu autor também sabe. José Cutileiro- entre algumas outras coisas e nenhuma de somenos – foi embaixador, viu muito, reteve tudo, não esqueceu nada. E um dia cinzelou a memória com uma boa ideia (e Deus sabe como é difícil ter uma boa ideia e depois domesticá-la para ela não nos devorar a nós).
Cutileiro voltou ao palco de três “transições” políticas por si vividas, na pele (e até ao osso!) do ofício diplomático: o 25 de Abril de 1974; o fim do Apartheid (estava em posto em Pretória, tendo sido das primeiras pessoas a avistar-se com Nelson Mandela, pouquíssimos dias após a sua libertação); a guerra dos Balcãs, numa esfacelada Jugoslávia pós-Tito. Três momentos históricos, fortes, intensos, decisivos, que aqui nos surjem, digamos, “ligados” por um denominador comum que é o olhar do próprio José Cutileiro — actor doublé de fino e atentíssimo observador. Óptima escolha de três questões maiores. Contada com aquele misto de arguta inteligência, indiscutível conhecimento de personagens, palco e bastidores políticos subtileza e ainda esse soupçon de cinismo que ele às vezes põe nas coisas que nos descreve, como quem agarra no sal ou na pimenta e apura um tempero. E claro, uma lucidez sem sombra de ilusão sobre quase nada — e perdoe-se-me o excesso de à vontade na afirmação — que a vida e a natureza humana conhece-as ele, como poucos. Tudo isto já não seria pouco, mas falta o melhor e aqui ele é o “vécu”. O maior interesse deste livro é justamente o ter sido ele vivido – e respirado — até ao fundo dos fundos por quem o escreve.
As três “Transições” são antecedidas, precedidas ou intercaladas por algumas reflexões sobre Portugal e a nossa indefinível (aqui não peço desculpa pelo à vontade no uso do adjectivo) condição portuguesa. Onde de novo há finíssima observação, há humor e sabor, há realidade, nas pequenas histórias que José Cutileiro desencantou da sua memória e nas pessoas a quem recorreu para as ilustrar. Com elas — histórias e pessoas — agarra numa pincelada de palavras e conta, melhor que num tratado ou em mil estudos, esta coisa (indefinível outra vez) de ser português.
3. Foi um momento roubado a mim própria, um breve intervalo numa manhã de afazeres. Entrei na Gulbenkian à procura do “Outro lado do Espelho”, como a Alice.
Mas ainda antes de me aperceber da organização do espaço na imensa sala, o meu olhar foi captado não pelo interior — a omnipresença ambígua dos espelhos nas telas –, mas pelo exterior verde que se avistava através da larga e lisa superfície do vidro das janelas. Via o jardim como se subitamente fosse a primeira vez que o via, rasgado em clareiras e caminhos e ao mesmo tempo tão poderosamente secreto, por vezes um quase bosque escondido. Árvores antigas, plantas, arbustos, folhagem densa, natureza pujante de verdes e castanhos, quem diria que era Janeiro. Outra tela.
Era — foi — difícil tirar dali o olhar. Filtrado pela luz coada da manhã, porque é que o jardim me cativava tanto? Levei tempo a deixar-me contaminar pelos espelhos e sua perturbante ambiguidade, a complexidade de significados e sentidos que eles podem projectar em cada um, num percurso através de cinco núcleos que nos são propostas para a viagem ao outro lado de cada um daqueles espelhos.
Magnifico. Fiz e refiz o percurso das cinco “estações” de uma das exposições mais inteligentes – não sei se a palavra é bem esta, talvez envolvente, talvez interpelante – que tenho visto na Gulbenkian, notavelmente bem “dada a ver” pela sua curadora Maria Rosa Figueiredo. Mas uma curadora não é afinal também ela uma criadora?
4. Falei acima de filmes sem intervalos (e sim, ainda bem: que seria dar mais tempo aos esfaimados devoradores de pipocas que se sentam ao nosso lado e nos arruínam o filme?), mas este que agora vi foi seguramente em si mesmo um resplandecente intervalo: entre mau jornalismo e tibieza humana, bom jornalismo e direiteza de carácter. Falo do “The Post”, claro, e não acredito que haja algum jornalista digno desse nome que não tenha sentido a garganta seca, um sobressalto, uma furtiva lágrima quando Catherine Graham — proprietária do Washington Post — decide que sim, “Os Papéis do Pentágono”, sim, são para publicar, sim. São, sim.
O filme é uma galopada vibrante e bem coreografada e eu que não sou desse tempo, sou ainda um bocadinho dele: o inconfundível frenesim – um frenesim exclusivo, só nosso –, a pressa, a arqui sagrada “hora de fecho”, a partida sempre sobressaltada e a alta velocidade das provas para a gráfica, primeiro em “A Capital”, depois no “Expresso, o “tudo para ontem”, a também inconfundível alegria pela “cacha” obtida, a camisola sempre vestida, o brio. Que tempos.
Mas nesses ou nestes tempos, aqueles vinte segundos ao telefone de uma mulher de meia idade, Catherine Graham/Merryl Streep, dividida e tensa, no auge da solidão e sabendo como só a ela cabe o peso, a responsabilidade e o resultado da sua decisão, valem o filme. Julgo até que não é preciso ser jornalista de vocação ou profissão (não é a mesma coisa) para perceber que se trata de uma história de carácter a propósito de jornalismo.
Um filme para todos, portanto.
5. Um só intervalo não chega para apreciar este livro: lendo-o, reflecte-se tanto quanto se aprende. Um bom ponto (A Balança da Europa, Carlos Gaspar, Aletheia).
A Europa está em declínio ? perguntamo-nos, entre o receio e a inquietação perante um hoje incerto. Dizem-no um “hoje” de mudança de rumo, será assim? Há Macron, imperial, disposto a devolver ao eixo franco-alemão o seu poder e a sua liderança; há Merkel, navegando na maré baixa, depois do longo ciclo das marés altas; há uma gente desequilibrada e perigosa no canto leste, há uns grupos organizados de extrema direita à espera e a espreita da sua vez, com muitos votos no bolso; há um sul a mudar mas nem todo na mesma direção. E há crises pesadas, dos refugiados à flagrante usura dos próprios sistemas democráticos, passando pela encalhada reforma do euro (será desta?). Avanços e recuos, súbitas ilusões (como agora, com Macron), más surpresas, desilusões, desuniões, medos. E um divórcio litigioso entre eleitos e eleitores, eis o que tem sido o pão nosso de cada dia.
Mas… é preciso ir buscar o antes disto. Voltar ao passado: essa longa, trágica, sanguinária, impressionante história que Carlos Gaspar – para melhor recortar o hoje europeu de que nos quer falar – ressuscita, relembra e revê. Uma lição, partitura para vários instrumentos, história, política, cultura e civilização ocidental. E conhecimento da génese de que são feitos os comportamentos humanos que ditaram as decisões e as escolhas que, sabemo-lo bem, conduziram às vitórias ou ao horror.
Europa matriz e porto ou Europa em declínio? União Europeia ou Desunião Europeia? Acreditar ou desistir? Leiam este livro.


Arejamento


Paulo Rangel traz-me um pouco o cheiro do mundo por que ansiava Cesário Verde, jovem ainda e buliçoso, desejoso de ilustrar-se, que escreveu ao seu amigo Silva Pinto o quanto gostaria de sair para o estrangeiro para se “desemburrar”. Essa ânsia evasiva fixou-a no seu vasto e magistral poema “em quatro andamentos”, “O Sentimento dum Ocidental”, que contempla a sua deambulação por uma Lisboa do entardecer e nocturna, de “quadros revoltados” mas plenos de pinceladas de brilho e movimento, que remata num arrastar poderoso de alegoria “A Dor humana busca os amplos horizontes, / E tem marés de fel, como um sinistro mar!”. Poema deambulatório, pois, com recurso a sentimentos e evocações que vão semeando de subjectividade os tais “quadros revoltados” da sua perspicácia e sensibilidade de artista, em que a terceira estrofe da primeira parte vai ao encontro do desejo de se desemburrar viajando, da carta ao seu grande amigo:
Batem carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!
Por vezes os textos de Paulo Rangel produzem esse mesmo efeito de surpresa e ânsia de conhecer outros “lugares da esfera”, talvez também para desemburrar-nos, lugares que percorrem esses deputados eleitos para o PE.
De facto, trazem referências, como essa dos lugares que o Brexit proporcionou no PE, o que deve dar lugar à satisfação de novas ambições, coisas, afinal, de calibre idêntico às de cá do burgo, pesem embora as discrepâncias que os parâmetros da boa educação e da cerimónia devem impor por lá, atentos, os deputados, sobretudo à defesa dos direitos das respectivas nações. Entretanto, o primeiro ministro é que é figura cimeira, nas declarações que faz, e Paulo Rangel desmonta a perfídia de ele apresentar duas caras – uma para uso interno seu, face aos seus compinchas, outra para uso externo, para ganhar os abraços estrangeiros e os sorrisos que a media mostra.
Paulo Rangel é atrevido, desmascarando assim o seu ministro. Mas, afinal, é essa desenvoltura também uma forma de arejamento viageiro.

OPINIÃO
Listas transnacionais: Governo e PS à deriva
Há uma coisa que pode já concluir-se: o PS e o seu Governo têm duas caras. Uma, na frente nacional; outra, nos fóruns europeus.
PAULO RANGEL
PÚBLICO, 30 de Janeiro de 2018
1- Os sinais que o Governo português e o PS continuam a dar sobre a adopção de listas transnacionais e a criação de um círculo eleitoral europeu são cada vez mais contraditórios e confusos (para lá de alarmantes, em vista do que julgo ser o interesse nacional e até o interesse europeu). Faz hoje precisamente uma semana, foi votado na Comissão de Assuntos Constitucionais o relatório sobre a composição do Parlamento Europeu (PE), de que eram co-relatores a deputado polaca do PPE, Danuta Hübner, e o deputado socialista português, Pedro Silva Pereira. Nesse relatório – embora abusivamente, como abaixo explicarei – figuram uma série de parágrafos que fazem um apelo político à adopção das listas transnacionais e procuram conformar a sua disciplina. O deputado do PS e o Partido Socialista Europeu votaram, sempre que isso estava em causa, a favor das listas transnacionais. E com este voto, deu-se mais um sinal errante e errado à diplomacia europeia. Afinal, o Governo português – que é um Governo unicamente composto pelo PS – é contra ou a favor da criação das listas transnacionais? O primeiro-ministro Costa diz que sempre fora contrário às listas; depois, em Roma, assina uma declaração, com mais 6 estados, que é manifestamente favorável; a seguir, em Lisboa, esclarece que a declaração não é categórica e, por isso, ele, primeiro-ministro, mantém-se contra; finalmente, no primeiro voto disponível, e já em Bruxelas, o PS – ainda por cima pela mão de um co-relator – revela-se ostensivamente a favor. Em que ficamos? Nas intenções de Roma, nas afirmações de Lisboa ou nos votos de Bruxelas? Nos corredores do Parlamento e do Conselho é cada vez mais firme a convicção de que o governo português diz uma coisa em Lisboa, mas acabará a fazer outra em Bruxelas. E com tanta ambiguidade, falta de clareza e até desinformação, há uma coisa que pode já concluir-se: o PS e o seu Governo têm duas caras. Uma, na frente nacional; outra, nos fóruns europeus.  
2. Como o assunto nem sempre é seguido com atenção, convém fazer alguma pedagogia. Antes do mais, dizer que o relatório sobre a composição do PE nada tem a ver, ao menos directamente, com a criação de listas transnacionais. A criação destas é do puro domínio do direito eleitoral. Os assuntos de sistema eleitoral estão fora do perímetro daquilo que se convencionou chamar “composição do PE”. A matéria da chamada “composição” trata apenas da distribuição de lugares por cada Estado. Cura unicamente de determinar quantos deputados tem cada Estado em cada legislatura. Está aqui em causa saber quantos deputados elegerá cada país para a legislatura que vai de 2019-2024. Esta é que é a substância do relatório e, de resto, a única que tem relevância jurídica, já que a decisão do Conselho Europeu sobre a matéria só pode ser tomada sob proposta do PE. Este relatório, se vier a ser aprovado no plenário, consubstanciará justamente a proposta formal do PE submetida ao Conselho, que a pode depois modificar e que, de seguida, terá de ser de novo aprovada pelo PE.
 3. A respeito da proposta de composição que foi aprovada para ir a debate e voto a plenário para a semana – e só desta! –, ela merece aplauso. Do ponto de vista nacional, garante que Portugal não perde nenhum deputado; do ponto de vista europeu, assegura pela primeira vez o cumprimento do princípio da proporcionalidade degressiva previsto no Tratado de Lisboa e ainda poupa 46 lugares (que ficam vagos) para futuros alargamentos. Não se trata de nenhum milagre; cura-se até de algo que tem um mérito relativo: só foi possível, porque com a saída do Reino Unido, ficaram livres 73 dos 751 lugares. Não é um feito extraordinário, como aqui expliquei a 4 de Janeiro: com a saída de 73 deputados, só faltava que Portugal ou qualquer outro país pudesse perder mandatos.
Feito muito relevante, esse sim, foi o facto de se ter evitado a adopção de uma fórmula matemática permanente que definisse a repartição de lugares para as futuras legislaturas. E não faltavam emendas nesse sentido que, salvaguardando as próximas eleições, iriam provocar perdas para Portugal e outros países médios e pequenos a partir de 2024. Veremos o que diz o plenário do PE e do Conselho, mas, neste plano, o começo é auspícioso.
 4. A cavalo desta matéria – a única que tinha de ser tratada – surgiram os parágrafos sobre listas transnacionais, que, neste preciso relatório, têm mero valor político. Sou convictamente contra as listas transnacionais, pelas razões que tantas vezes adiantei. E, por isso, com o grosso do Grupo PPE votei contra tais cláusulas. Os deputados são livres, podem ser contra ou a favor e não têm de seguir a sua delegação nacional, o seu grupo parlamentar ou até o seu Governo. Mas como é óbvio têm de se explicar e de falar claro. E quer se queira quer não, quando um deputado destacado do PS português, ainda por cima com o encargo de co-relator, vota a favor, isso dá uma indicação e cria uma percepção sobre o posicionamento do Governo português. Neste momento, o PS e o Governo português mostram uma enorme desorientação e alimentam conscientemente a ambiguidade e a confusão. E até hoje, a Assembleia da República – que é quem tem a competência legislativa eleitoral – continua sem ser tida nem achada. É bem caso para dizer que, num assunto tão sério para a nossa posição institucional na Europa e para o balanço e o equilíbrio das instituições europeias, o binómio PS-Governo anda à deriva.
  

NÃO. Vitimização de Lula. O ataque à justiça no Brasil é, ele sim, um ataque à democracia. Nada o autoriza. Outra coisa é o deserto político que se seguirá à operação “mãos limpas” do séc. XXI.  

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Um texto sério e explícito


Um texto que merece reflexão, embora, de facto, não espante quem se habituou a ver no BE - (desconheço as competências do PAN, mas não duvido que transborde de  amor, dada a sua sigla vastamente abrangente - pessoas, animais, natureza) – quem se habituou, pois, a ver no BE também um extenso esbanjar de sentimento conquanto apenas pelas classes desfavorecidas, os animais e a natureza sendo por ora arredios dos seus planos, o PAN constituindo um grupo mais avançado, com toda a certeza, no caldeamento que as suas generosidades instalam na visão panorâmica, se não mesmo pantagruélica, do mundo a amar e a salvar. Daí que não espanta a utilização de um pretexto piedoso, de acudir ao sofrimento alheio, para proporcionar a alegria generalizada, com a cannabis reverdescendo nos quintais ou nos vasos próprios, para os êxtases naturais de cada um e de passagem eliminar a dor. Que tanta bondade pelo mundo da dor deve aquecer os corações em êxtases que provavelmente a tal planta proporciona aos próprios esbanjadores de generosidade – parcial que seja. 
Eis o texto de Carla Cruz, sério e explícito sobre os desígnios desses partidos juvenis, que parece, afinal, quererem apenas gozar a vida e levar mais jovens por esses caminhos dos êxtases e do descaminho. E isso também é crime, escondido sob a faceta da falsa bondade.

OPINIÃO
O que escondem os projetos do BE e PAN sobre a cannabis?
BE e PAN preferiram utilizar o sofrimento de doentes para esconder as suas verdadeiras intenções.
CARLA CRUZ
PÚBLICO, 18 de janeiro de 2018
Contrariamente ao que se tem dito e escrito por estes dias, o que esteve em discussão na Assembleia da República com os projetos de lei do BE e PAN não foi o uso terapêutico da cannabis. Porque se o debate fosse sobre o uso terapêutico, então ter-se-ia que começar por admitir e reconhecer, coisa que ambos os partidos proponentes não fizeram, que a lei em vigor já determina as condições e procedimento para introdução de medicamentos no mercado e a sua dispensa, incluindo obviamente os à base de cannabis.
Efetivamente, o Infarmed autorizou já em 2012 a comercialização de um medicamento à base da cannabis destinado aos doentes com esclerose múltipla. E nada impede que possam surgir mais, desde que autorizados pelo Infarmed, seguindo os mesmíssimos procedimentos usados para qualquer outro medicamento e na sequência dos estudos que já existem e daqueles que venham a surgir sobre a utilização terapêutica da cannabis.
A autorização para a introdução de novos medicamentos no mercado não é da competência política do Parlamento: é uma questão técnica da competência do Infarmed! Não há registo de que a Assembleia da República tenha dado autorização prévia para a introdução de medicamentos, mesmo aqueles que são feitos à base de substâncias como o ópio, por exemplo.
O que assim se torna claro é que o verdadeiro objetivo das iniciativas de BE e PAN é o de abrir caminho à utilização da cannabis para outros fins (ditos) recreativos, isto é, para o seu consumo sem impedimentos legais, como aliás, pelo menos o BE, tantas vezes defendeu abertamente. Se tivessem assumido os seus verdadeiros objetivos o debate poderia ter sido feito com clareza, como de resto já aconteceu no passado. Em vez disso, BE e PAN preferiram utilizar o sofrimento de determinados doentes para esconder as suas verdadeiras intenções, numa atitude que não é nem séria nem honesta.
Essas intenções ficam ainda mais claras com a proposta do auto-cultivo para fins terapêuticos. O auto-cultivo não obedece aos critérios que estão definidos pela autoridade nacional do medicamento. Desde logo porque não permite o necessário e rigoroso controlo de qualidade e do teor dos diversos alcalóides presentes na cannabis. Tal proposta, a ser adotada, colocaria em causa a saúde pública.
Nem sequer é possível submeter o auto-cultivo a processos de controlo por parte das autoridades nacionais competentes, isto é, do Infarmed. Essas propostas de fiscalização apresentadas por estes partidos não são exequíveis! Não é possível ao Infarmed fiscalizar todas as plantas em auto-cultivo e proceder ao controlo da sua qualidade.
BE e PAN desconhecem, ou preferem ignorar, os estudos que apontam para um nível de prova muito distinto na eficácia terapêutica de sintomas diversos ou na necessidade de se saber mais sobre os medicamentos à base da cannabis, os seus mecanismos de ação e os seus efeitos colaterais em situações diversas.
A posição do PCP é clara e não pode ser deturpada. Os estudos que existem sobre esta substância já permitiram a sua utilização em determinados medicamentos introduzidos no mercado. Estudem-se então todas as possibilidades de utilização e considere-se a forma como o SNS as deve disponibilizar. Mas a regulação do uso terapêutico de cannabis não pode, em quaisquer circunstâncias, ser utilizada para legitimar ou favorecer o seu uso recreativo.
A discussão em torno do uso terapêutico é, como o PCP sempre afirmou, uma questão técnica e científica e não uma questão política. Por isso, no seu projeto — que tem em conta pareceres emitidos por entidades com intervenção nestas matérias, designadamente da Ordem dos Médicos — propôs aquilo que era adequado: a avaliação clínica das vantagens da utilização da cannabis sativa para fins terapêuticos e, caso haja comprovação científica dessas vantagens, a ponderação da sua utilização adequada no Serviço Nacional de Saúde.


Hoje já não é mais


É Alberto Caeiro o autor do poema sobre a beleza do Tejo e o seu significado de glórias passadas e riquezas presentes, em contraste com o rio sem história da sua aldeia, conceito este integrado na orientação poética do heterónimo, que valoriza a natureza e os sentidos, na simplicidade e pureza afectivas, aparentemente despidos de filosofia. De toda a maneira, não é demais relembrar o valor histórico deste rio, a que o poema “alado” de Sophia de Melo Breyner repõe o afecto e prazer, que sempre o nosso maior rio significou para nós, desde a escola primária, e aos que vivem em Lisboa, mais ainda.
E é este rio que gente protegida, julgo que protegida, pois o problema já é antigo e não se resolve, este rio que, de caudal mais limitado hoje, recebe descargas de celulose como informa o texto de Emanuel Caetano, de Ermesinde.
O crime é poderoso, que haverá por trás da sua impunidade? Porque não se castigam os infractores, porque se permitem estas monstruosidades próprias de um primitivismo sórdido que os governos, pelos vistos, favorecem, primitivos que somos?
Não, nunca mais iremos para o mundo, ficar-nos-emos sempre por Viana.

Pelo Tejo Vai-se para o Mundo
O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele
Alberto Caeiro, O Guardador de Rebanhos

Tejo
Aqui e além em Lisboa – quando vamos
Com pressa ou distraídos pelas ruas
Ao virar da esquina de súbito avistamos
Irisado o Tejo:
Então se tornam
Leve o nosso corpo e a alma alada
Sophia de Mello Breyner Andresen (1994), in Obra Poética, 2011

Salvem o rio Tejo
Já não é suportável tamanho problema de saúde pública que se verifica no rio Tejo. A culpa era dos espanhóis, do atrofiamento do caudal do rio e da contaminação radiológica da Central Nuclear de Almaraz. Com as recentes denúncias de cidadãos que difundem vídeos e fotografias nas redes sociais, o que, inclusive, lhes custa processos judiciais, identificaram o problema em território português, a jusante de Vila Velha de Ródão, local onde existem empresas de celulose. Já que as autoridades ambientais submergiram na fossa em que se transformou o rio e que ignoram as queixas de pescadores, agricultores e quem vive da actividade turística, apelava ao interventivo Presidente da República que nunca diz não a umas braçadas na água, que mergulhasse no rio com um fato à prova de bactérias de modo a alertar para esta situação.
Emanuel Caetano, Ermesinde
Público, 26/1/18

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Porque tens a boca tão grande?


António Costa soma e segue. Agarrou o poder sem escrúpulos, grande entre os pequenos que o ajudaram nisso e segue atrelado às forças de esquerda que se sentem naturalmente confortáveis, orquestrando a participação dos sindicatos, que ronronam agora, como bem descreve João Miguel Tavares, sempre rigoroso nas definições. Por isso, o PSD não vai ter mais hipóteses, a boca de António Costa, inchada de ambição e gozo, engole tudo em haustos convincentes e bastam-lhe os pequenos para se satisfazer. Mas também, qualquer substituto de Pedro Passos Coelho nunca poderia servir. Continuemos, pois.

Bloco e PCP dão ao PS aquilo que o PSD nunca dará
É bastante mais fácil governar sem a chinfrineira diária dos bloquistas e dos comunistas.
João Miguel Tavares
Público, 27 de Janeiro de 2018

António Costa declarou publicamente, sem qualquer ambiguidade, que o Bloco e o PCP têm sido óptimos parceiros do Governo, e que “quando se está bem acompanhado não se muda de companhia”. Que é como quem diz: “Vá para o fim da fila, caro Rui Rio, que estes senhores estão primeiro.” É uma declaração de amor que não espanta nem um bocadinho. As chatices ocasionais que Bloco e PCP possam ter dado ao PS ao longo dos últimos dois anos são mais do que compensadas pela melhor prenda que qualquer governo já recebeu desde o 25 de Abril: quatro anos de paz social e sindicatos a ronronar.
Inventou-se uma intimidade ideológica entre o PS e os partidos à sua esquerda para camuflar uma constatação muito prática: é bastante mais fácil governar sem a chinfrineira diária dos bloquistas e dos comunistas, e com a CGTP limitada a ocasionais provas de vida para justificar os salários de Arménio Carlos e Mário Nogueira. Claro que poderíamos colocar a hipótese de PSD e CDS ocuparem o território da extrema-esquerda, assumindo-se como novos paladinos do descontentamento social. Mas isso é mais fácil de dizer do que de fazer. Não só os dois partidos estão ainda marcados pela austeridade da era Passos Coelho, como os automatismos da gritaria não nascem de geração espontânea. O protesto tem as suas rotinas, que a extrema-esquerda pratica há pelo menos 40 anos, se não quisermos recuar até à publicação dos primeiros escritos de Karl Marx.
Desde a implantação da democracia desenvolveu-se uma forma específica de protestar e uma forma específica de noticiar esses protestos: 1) greve marcada pelos sindicatos, 2) directos matinais em local combinado previamente com as estruturas sindicais, 3) perguntas a manifestantes colocados em redor das câmaras, 4) fim do directo com depoimento do presidente do sindicato, que consegue o pleno: após falar para a TVI, diz o mesmo à SIC, e depois à RTP. Segue-se o anúncio da percentagem da paralisação, entre 90 e 100%. Em casos de maior dimensão, marcha-se em direcção ao Parlamento para o número da escadaria, com mais ou menos empurrões. A esquerda faz isto desde 1974, e fá-lo como ninguém.
E, no entanto, António Costa conseguiu que ela deixasse de o fazer em 2016 e 2017 — a tal paz social. Só se ele fosse doido é que trocava isto pelos consensos estruturais de Rui Rio, até porque é cada vez mais evidente que os desejos reformistas de Costa são muito modestos. Não é que ele seja adepto de um país parado — justiça lhe seja feita: mudou Lisboa como poucos —, mas é certamente adepto de que o país se mexa fazendo o menor barulho possível. António Costa é um político especial por duas razões. Em primeiro lugar, porque só ele viu e acreditou numa legislatura de quatro anos apoiada pelo Bloco de Esquerda e pelo PCP (é certo que estava em causa a sua cabeça, o que tende a aguçar os instintos de sobrevivência, mas o mérito é dele). Em segundo lugar, porque percebeu com Passos Coelho que o excesso de verdade em política é um caminho para o desastre.
Vivemos há dois anos num clima de pura dissimulação que tem feito maravilhas pelo PS nas sondagens. A esquerda finge que a página de austeridade foi virada. As pessoas fingem que têm mais dinheiro no bolso no final do mês. O país finge que os seus problemas foram resolvidos. E o sol brilha lá fora. É natural que Rui Rio se queira juntar a esta dança. É ainda mais natural que António Costa não tenha qualquer interesse em trocar de par.



domingo, 28 de janeiro de 2018

Faz parte


A fotografia é, como sempre, expressiva, e, para mais, traz-nos recordações de Eça, que às mesmas igrejas se refere, do chiquismo lisboeta e das peregrinações devotas da Luísa, sobretudo, igrejas que António Barreto enumera e historia com encanto.
E uma vez mais uma história “do nosso pudor de contar seja a quem for”, não de Portalegre, é certo, mas bem lisboeta, conquanto se pudesse generalizar ao nosso país da solidariedade que necessita de Misericórdias e Montepios para ajudar piedosamente os necessitados, em vez de impor regras de comportamento dignificante da condição humana, através do direito ao trabalho e â justa remuneração.
António Barreto reproduz as histórias antigas da Santa Casa da Misericórdia e do Montepio, e refere as novas relações entre ambos, de ajuda financeira daquela a este e os cambalachos costumeiros da nossa condenação, mais ainda provindo de nomes tão vinculados aos bons sentimentos cristãos. É certo que há antecedentes igualmente indignos: a Inquisição também se chamou santa e viveu de extorsões, além de outras práticas sandias, mas o certo é que estes escândalos estalam por toda a parte. Estamos fartos.

Piedade e Misericórdia
ANTÓNIO BARRETO
D.N, 28/1/18
Pelas más razões, duas das mais antigas instituições nacionais ocupam as páginas dos jornais e os noticiários de televisão: o Montepio Geral e a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. O assunto resume-se em poucas palavras: o banco Montepio está em má situação financeira e a Santa Casa está tentada a investir nele, no que é encorajada pelo ministro da Segurança Social e pelo governo. A história é tão estranha e os riscos são tão grandes que vale a pena olhar um pouco devagar.
A designação de Montepio é antiga. É a versão portuguesa das Monte di Pietà e Monte dei Paschi, das Mont de Piété ou das Monte de Piedad. No essencial, estas instituições não lucrativas tinham em comum realizar uma forma de solidariedade que se traduzia em empréstimos sobre penhora e com juros muito baixos. As instituições viradas para a beneficência evoluíram para outras formas de ajuda, em particular através de mútuas e de poupança para pensões. Diferem das casas de penhor, pois estas são casas comerciais e a usura é a regra!
Os primeiros Monte di Pietà foram fundados por franciscanos, para ajudar os necessitados, emprestar dinheiro com penhora de bens e evitar a usura. O Monte dei Paschi di Siena foi fundado no século XV e é o mais antigo banco do mundo. Está hoje nas mãos do Estado, depois de resgatado e resolvido por mais de cinco mil milhões.
O Montepio português, associação mutualista, foi fundado em 1840 com o nome de Monte Pio dos Funcionários Públicos. Mais tarde, vieram o banco e outras actividades conhecidas.
A Misericórdia de Lisboa, fundada pela rainha D. Leonor, tem mais de 500 anos. Foi estatizada no século XIX pelos liberais. Assim ficou com a monarquia constitucional, a república e o corporativismo. Até que os revolucionários de 1974 extinguiram as misericórdias. Com a democracia, a nacionalização foi revogada, mas a Misericórdia de Lisboa continuou no Estado. Além dos jogos, sua principal fonte de rendimento, tem um vasto património e é a mais importante organização de solidariedade portuguesa. Ocupa-se de doentes (Alcoitão, por exemplo), pobres, velhos e crianças.
É fácil perceber por que razão a Caixa Económica Montepio Geral deseja que a Santa Casa da Misericórdia entre no capital do banco. Salvo erro, é simplesmente porque teve má gestão, precisa de dinheiro, não tem as contas em ordem e corre riscos de falência, resgate ou resolução. A Associação Mutualista Montepio Geral, proprietária do banco, quer a mesma coisa, isto é, que alguém entre com dinheiro, mas de modo a ficar a decisão inteiramente do lado dos seus actuais proprietários.
Já é muito mais difícil perceber por que diabo quer a Misericórdia de Lisboa comprar parte do banco do Montepio. Não se consegue entender. A tentação do negócio? A atracção sedutora e fatal da banca? A importância social e política? Ou simplesmente obedecer ao governo?
O governo tem as suas razões, evidentemente. Pela boca de ministros avulso, sabe-se que o governo vê com bons olhos que a Santa Casa entre no Montepio. Os riscos desta operação são enormes. Uma instituição em bom estado, com um orçamento superior a 200 milhões de euros, vai exercer funções fora do seu estatuto para se perder numa outra em mau estado. Será que o governo quer arranjar alguém que resolva o banco sem ter de gastar o seu dinheiro e sem agravar o défice? Mas a Santa Casa é do Estado Quer o governo evitar a resolução e a falência (como os outros bancos conhecidos)? Vai o governo ficar com dois problemas graves (Montepio e Santa Casa) em vez de um só?
Há evidentes riscos para milhares de pensionistas do Montepio, para outros tantos doentes, pobres, idosos e crianças apoiados pela Santa Casa. É chocante a irresponsabilidade dos governantes! E ainda mais surpreendente é a quase ausência de protestos na opinião pública. Só não se espanta quem pensa que os portugueses estão já tão moralmente corruptos que não se importam com a destruição de instituições de apoio social, em nome de opções políticas de oportunidade.

As minhas fotografias - Mendigo nas escadas da Igreja da Encarnação, no Chiado, em Lisboa.
Há, no Chiado, cinco igrejas curiosas: Loreto (ou dos Italianos), Encarnação, Mártires (a única que ostenta o título de basílica), Sacramento e São Roque (na Misericórdia). São todas de muito interesse, foram todas vítimas do terramoto de 1755, depois reconstruídas e restauradas. De idades diferentes (a dos Mártires começou a ser construída no século XII, pouco depois da conquista de Lisboa), as três tiveram o seu período barroco e a reconstrução depois do desastre. Durante décadas, eram as igrejas de culto das elites lisboetas, tendo mesmo havido diferenças sociais entre elas, umas mais "chiques" do que outras. Alguns mendigos são residentes na entrada das três primeiras. Já era assim no princípio do século XX, há fotografias. Nos anos sessenta e setenta, a sua presença diminuiu. Recentemente, nos últimos dez a vinte anos, regressaram. Por causa das crises, à espera dos fiéis, mas também, agora, dos turistas. Fotografia de António Barreto



Ai como é diferente o amor em Portugal


Lá fora, as coisas fazem-se em meio de espectáculos de arte, prova de um povo consistente e rico, que pode reivindicar troçando e divertindo-se, usando um clima presidencial aparentemente detestado, para se lançar em inesperado ataque a um fenómeno que é de todos os tempos, mas a que o novo estatuto de autonomia feminina impõe extinção, com o exagero próprio, contendo algum cinismo e insinceridade, que Alberto Gonçalves magistralmente denuncia tratando o tema ao seu modo rebarbativo e poderoso de disciplina mental e conhecimento humano.
Cá dentro temos o amor-simpatia, da hábil estratégia do actual presidente, num país às voltas com o seu estatuto de pobreza, presidente que se faz amar para efeitos de manipulação um tanto cínica dos jogos do poder, contendo algo também de falsidade e artifício, na igualmente magistral explicação de Pacheco Pereira, a quem o espavento da parolice portuguesa naturalmente indigna.
Duas ou três coisas sobre sexo e Hollywood
OBSERVADOR, 27/1/2018
No instante em que escrevo, arriscando a ultrapassagem pelos acontecimentos, cada homem é suspeito, e provavelmente culpado, de praticar acções ou pensamentos pecaminosos face à sua semelhante.
Não aprecio lengalengas que tratam os homens e as mulheres como duas entidades perfeitamente distintas entre si e perfeitamente idênticas dentro de si. Reduzir o carácter de uma pessoa ou, no jargão em voga, a “identidade” ao “género” é recurso de adolescentes ou charlatães com falta de assunto. Conversas do estilo “os homens são de Marte, as mulheres de Vénus” dão vontade de enviar alguém para Saturno ou para o raio que o/a parta. E o movimento #MeToo é uma espécie de consagração desse tique enervante.
Há meses, Hollywood descobriu que certos cavalheiros do “meio” abusavam do respectivo poder para se aliviarem sexualmente com as senhoras que se punham, ou eram postas, a jeito. Antes tarde do que nunca. Pelo menos desde 1921, quando o então popularíssimo “Fatty” Arbuckle foi acusado de esventrar uma aspirante a actriz com uma garrafa de Coca-Cola, a indústria do cinema é fértil em animação de bastidores. Sob a histeria punitiva dos “media”, Arbuckle viu-se julgado, depois ilibado, e por fim profissionalmente arruinado.
No clima actual, o julgamento é imediato mas o desfecho é similar. Basta que X, soluçante, afirme ter visto o pénis de Y nos idos de 1992 para que Y seja responsável por perversões inomináveis e banido da sociedade decente. Não importa que, no mundo das fitas e no mundo cá fora, as matérias sexuais se mostrem particularmente pródigas em alegações falsas. O berreiro decidiu, está decidido: a necessidade de provas é um pechisbeque dispensável, o tipo de atitude que costuma inspirar belos episódios. No processo, quase no sentido kafkiano do termo, destroem-se vidas e carreiras. Por reflexo, lamento todos os inocentes. Por puro egoísmo de espectador, e por ser amigo de um amigo, lamento Louis C.K.
É plausível que haja violadores autênticos, a pedir penas sociais e judiciais sortidas. O chato é que, sem surpresas, muitas das mais empenhadas militantes da inquisição em curso conviveram jovialmente durante anos com muitos dos mais empenhados abusadores do ramo. Ao longo de décadas, os múltiplos talentos de Roman Polanski suscitaram apenas indiferença. E a sra. Meryl Streep, a figura que melhor representa o ridículo de Hollywood e, talvez, do Ocidente, manteve longa e frutuosa amizade com Harvey Weinstein, que hoje é, a acreditar nos “media” (eu sei, eu sei), o Demónio em forma de gente. Aparentemente, as proezas lúbricas do sr. Weinstein pertenciam ao domínio público e só se tornaram condenáveis no momento em que a condenação se converteu num espasmo colectivo e obrigatório.
Para cúmulo, no espasmo vale tudo e confunde-se tudo. Confunde-se estupros com festinhas no ombro, chantagens com piropos, violência com engates e, principalmente, mulheres que foram abusadas de facto com mulheres que fingem ter sido abusadas de modo a não perderem lugar na plateia dos linchamentos. É evidente que, ao valorizar-se vítimas imaginárias de crimes imaginários, acaba-se a desvalorizar-se vítimas reais de crimes medonhos. E acaba-se a colaborar no crime.
No instante em que escrevo, arriscando a ultrapassagem pelos acontecimentos, a situação é a seguinte: cada homem é suspeito, e provavelmente culpado, de praticar acções ou no mínimo pensamentos pecaminosos face à sua semelhante. A caça aos bruxos decretada pelas celebridades espalha-se pela América inteira e, alimentada por relatos sem confirmação, arrasa a título preventivo inúmeras criaturas. Vozes progressistas exigem a censura de filmes, livros, peças e pinturas em que a Mulher, com maiúscula, não é retratada segundo critérios específicos.
Como é que se chegou aqui, em Hollywood e no resto? A teoria divide-se. Uns sugerem a perversão (graçola não intencional) do feminismo original, que começou a exigir igualdade e termina a menorizar as pobres, ingénuas e desprotegidas fêmeas. Outros referem a progressão natural do “politicamente correcto”, agora em rédea solta rumo à demência. Há ainda os que lembram o ódio da esquerda à masculinidade, a tradição moralista do marxismo e diagnósticos assim discutíveis.
Se me permitem (que remédio), apresento, assaz sumariamente, a minha tese. Um pedacinho da história da humanidade é a história da repressão sexual, que antes de ser um produto das religiões é um produto da natureza humana. Mesmo sem a crença no divino, o homem – e a mulher, acrescente-se para fugir a equívocos – haveria sempre de arranjar maneira de crer no gozo em proibir o gozo alheio, na cama e onde calha. Não é a religião que tenta impedir-nos de comer sal ou bolachas. A vontade de limitar “excessos” paira por aí, à espera dos zelotas que a transformem na sua “causa”. Em Hollywood, território propenso a tarados de orientações várias, encontrou imensos.
Notas de rodapé
1. Consta que, este ano, a “taxa do audiovisual” aumentarão 6%, agravando a conta da luz. É uma óptima notícia por dois motivos. Por um lado, porque confirma a prosperidade que tomou conta dos portugueses, hoje tão prósperos que podem suportar sem dramas, e até com certo gosto, qualquer dos inúmeros aumentos de impostos que em boa hora lhes despejam em cima. Por outro lado, porque permite aos cidadãos patrocinarem com verbas crescentes uma instituição como a RTP e adjacências, instituições cujo mérito está escarrapachado nas centenas de milhões que anualmente nos custam. Não consumo a RTP e não conheço quem o faça, mas não me custa nada, excepto uns euros por mês, dispensar uns euros por mês a fim de sustentar as maravilhas que sem dúvida por lá se cometem, vulgo o “serviço público”. Não o veria nem que me pagassem. Como não vejo, pago eu. Faz sentido.
2. E aquilo do sr. Lula? Alguém acredita que um socialista possa ter delapidado em diversos milhões o povo que tanto adora? Alguém acredita que um ex-sindicalista possa ser um rematado ladrão? Alguém acredita que o homem que cruzou o oceano para apresentar uma obra de José Sócrates possa estar no centro de um dos maiores esquemas de corrupção que o mundo conheceu? Eu não acredito. Para mim, é golpe.

OPINIÃO
Marcelo no seu espelho de selfies
Mesmo a contragosto de 80% dos portugueses que “amam” Marcelo, convém lembrar que a essência da democracia não é a popularidade, em particular nestes tempos tablóides.
José Pacheco Pereira
Público, 27 de Janeiro de 2018
Os ciclos de amor e desamor políticos com o Presidente da República são isso mesmo, ciclos. Até aos incêndios e as reprimendas públicas que fez ao Governo, o Presidente era detestado à direita, que via nele uma muleta essencial da “geringonça”, e era afavelmente tolerado pela esquerda, que o via como inesperado aliado. Depois dos incêndios, passou a ser amado pela direita a tal ponto que foi a direita portuguesa a principal força “comemorativa” dos seus dois anos de Presidência. Antes via nele uma força perversa que funcionava atrás de António Costa por ódio a Passos Coelho, agora considera-o o grande disciplinador do Governo, que o impede de se deitar nos braços malditos do BE e do PCP.
Há depois uma terceira tese, que certamente não desagradará ao Presidente — é de que estas oscilações de simpatias e antipatias revelam a independência do seu mandato, nem dependente da esquerda, que governa, nem da direita, que é oposição. E, em anexo, uma quarta tese, muito vocal nos “homens do Presidente” que são comentadores em prime time, de que a sua enorme popularidade lhe dá uma força política própria, que o coloca por cima dos partidos e que em última instância lhe permite fazer literalmente o que quiser. Quem manda no país é ele, em união directa com o povo sem intermediários, que faz do Presidente o primeiro dirigente político genuinamente “popular” de há muito tempo a esta parte. Por último, uma humilde e solitária quinta tese, a minha, é de que nada disto é o que é, e apenas “parece” ser, porque não há verdadeiro escrutínio dos actos presidenciais e do seu significado e o Presidente, assim solto das amarras da crítica e da razão, faz uma política própria que tem aspectos positivos, mas também aspectos negativos e alguns mesmo mais do que negativos — perigosos.
Marcelo Rebelo de Sousa ganhou a Presidência por uma combinação de méritos próprios, uma intensa campanha conduzida na e pela comunicação social, por ele ser “um deles”, e uma conjuntura de cansaços e esperanças que teve o seu apogeu como momento de viragem em 2015 e lhe deu um país politicamente estável. Como já disse e repito, Marcelo não seria o Presidente que é sem ter por detrás uma conjuntura que todos imaginavam como altamente instável, mas que se revelou solidamente estável: a aliança política do PS com o BE e o PCP e mesmo o PAN. Pela primeira vez, havia uma alternativa à esquerda que podia competir com a tradicional aliança PSD-CDS, este grupo de partidos que funcionava como uma “frente de rejeição” do PAF, mudava a realidade nacional, pondo a direita longe de poder governar sem ter maioria absoluta. O risco de tal solução para todos envolvidos gerava uma moral de resistência, que hoje está já um pouco esbatida, mas que permitia assegurar que seriam ultrapassadas todas as dificuldades que poderiam pôr em causa a solução de governo.
Cavaco Silva fez tudo para que tal solução não fosse possível, Marcelo acolheu-a como favorável a uma estabilidade política de que ele faria parte e cujos frutos seria capaz, como foi, de recolher. Já era evidente na campanha que o terreno que desejava para a sua presidência era o da estabilidade política, e António Costa era o único que lho podia dar. Quando os primeiros resultados económicos favoráveis começaram a surgir, era ouro sobre azul e a colaboração entre Marcelo e Costa correspondia a uma respiração natural que irritava profundamente o PSD do Diabo.
Marcelo começou a ser o Presidente dos afectos, dos abraços, dos beijos, das selfies com enorme sucesso. Antes havia antipatia, quer pelo anterior Presidente, quer pelo Governo da troika, agora havia um período de um novo optimismo que precisava de um símbolo. O “povo” tinha um enorme cansaço, recusa e hostilidade para com Cavaco Silva, que faria de um qualquer seu sucessor que sorrisse uma vez por mês um génio de afabilidade. Marcelo sorriu quinhentas vezes por dia e conquistou o país. Mas a história não ficou por aí, porque ele sabe melhor do que ninguém que beijos, abraços e selfies só dão poder político se houver um adversário, se forem contra alguém. Não podia haver na cena política portuguesa dois optimistas, por isso passou a haver um que era “irritantemente optimista”, António Costa, e outro que era o príncipe dos afectos, sempre do lado do “povo” contra os poderosos, que é quem o “povo” quer sempre ao seu lado.
A tragédia dos incêndios foi o que mudou tudo. E mesmo que não apareça nas sondagens, mudou mesmo tudo. Não estou a dizer que o Presidente “usou” a tragédia para encontrar o contraponto que precisava para transformar os beijos, abraços e selfies em poder político duro — estou convencido que nos fogos no essencial a postura de Marcelo foi genuína e sincera; o que acontece é que a atitude do Presidente foi a certa na tragédia e a de Costa e do Governo a errada. E, se as coisas tivessem ficado por aí, o Presidente recolhia os méritos de uma vez por todas ter usado a sua personalidade e proximidade para sarar feridas, e o Governo recebia o demérito através de uma quebra do estado de graça que potenciará sempre qualquer coisa negativa que lhe aconteça. Mas a partir daí Marcelo passou a comportar-se como proprietário da dor dos portugueses, afirmando um poder político que extravasa as funções presidenciais. Assumiu comportamentos que são populistas — o que nele não era novidade, já os tinha tido como comentador — e passou a ter um aproveitamento pessoal dos beijos, abraços e selfies. Tudo isto já lá estava antes? Já, mas passou a funcionar como um contraponto de poder que é negativo para a democracia portuguesa, mais do que para o Governo.
Esses aspectos negativos são vários. O Presidente faz um contínuo meta-discurso sobre tudo o que acontece, seja na governação, seja na vida partidária, seja na Justiça, seja nas questões europeias, seja na cultura e, se esse metadiscurso era visto de forma benévola como a dificuldade de Marcelo-Presidente deixar de ser Marcelo-comentador, hoje é sujeito a uma interpretação que procura (e encontra) distanciações e reservas face aos outros poderes, seja o executivo, seja o legislativo. Desde sempre critiquei essa pletora verbal, porque desgastava o poder da palavra presidencial para quando fosse necessária, mas hoje está-se noutro patamar e esse mesmo metadiscurso aparece agora como um conjunto de prevenções, de sinais, de avisos que, não sendo novo nos discursos dos anteriores presidentes, no caso de Marcelo ganha outra amplitude, porque vem mais em continuidade do que foi o seu discurso de comentador de décadas conhecido pelo seu cinismo, a propensão para a intriga e mesmo ajustes de contas nas antipatias próprias. Uma espécie de amnésia colectiva esquece que esta era a “imagem” de Marcelo antes de ser Presidente, e, se se pode mudar, nunca se muda tanto.
E o que torna perigoso esse processo é que, em vez de valores de audiências, hoje temos uma base muito mais complexa que é a da “popularidade” política pessoal e intransmissível. Numa altura em que as democracias estão sujeitas ao assalto populista, temos um presidente que não se coíbe de usar as armas dos políticos populistas modernos, feitos pela televisão, para cultivar uma “proximidade” cujo sucesso é sempre ser “contra” alguma coisa.
Os gregos antigos não se caracterizavam por matar por razões políticas. Os poucos assassinatos políticos ocorridos na Grécia fazem da Atenas democrática uma excepção quase única na história antiga e moderna. Mas um dos instrumentos principais da democracia ateniense, a expulsão da cidade, era usado contra todos os que pareciam ser muito “populares”, mesmo tratando-se de generais vitoriosos. Os atenienses, nessa experiência também única, que foi a democracia antiga, temiam o efeito para a saúde da sua democracia da popularidade, porque a consideravam perigosa para o poder dos cidadãos que na colina do Pnyx se reuniam e votavam.
Mesmo a contragosto de 80% dos portugueses que “amam” Marcelo, convém lembrar que a essência da democracia não é a popularidade, em particular nestes tempos tablóides.


sábado, 27 de janeiro de 2018

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De quem, lá fora, ajuda o mundo a progredir, mau grado as troças contra a sua irrazoabilidade na gestão espectacular do seu poder no mundo. De quem, por cá, ajudou no processo educacional que conduziu a educação por mares de revolução contínua, que parece deixar o nosso mundo de pequenez educativa cada vez mais em palpos de aranha. Equiparo-as, as tais descargas da sujeira estrangeira e nacional, às que sorrateiramente se fizeram no rio Tejo, matando o que de bom lá havia, tão criminosamente como o fizeram os incendiários da nossa floresta – ou talvez mais ainda. E nada se pune, na caldeirada – na gestão do mundo pelo americano, lá fora, na gestão no ensino pelo português, cá dentro, na extinção de um rio pelos criminosos da sombra, num país desatento e brincalhão, por cá também.
Gostei de os ler, ao que descreveu o caso externo, americano, João Miguel Tavares, que anotou benefícios na acefalia governativa de uma figura caricata, com apoiantes e talvez até idólatras, não fosse Trump um homem de sucesso económico merecedor da idolatria. Ao que escreveu sobre o processo educacional aqui instaurado, em alucinante percurso de mutabilidade pedagógica, de cuja introdução no nosso país se diz responsável, José Pacheco, fundador da Escola da Ponteadepto de Agostinho da Silva, fixado no Brasil actualmente, satisfeito do seu papel na evolução da educação por cá, estando a próxima etapa, de participação da comunidade na escola, ao que parece, prestes a ser inaugurada em Portugal, com grande orgulho de Pacheco, quase a transpor a Ponte.
Talvez que os incêndios e as descargas poluentes sejam já efeitos dessa educação que “não educa para a cidadania, mas no exercício da cidadaniaDa nossa, é claro. A da socapa e da impunidade, depreendendo-se, pela satisfação de Pacheco, que o exercício da cidadania nem sequer precisou de ser ministrado – o que, de resto, também se tem visto na própria gestão da côdea nacional.


OPINIÃO
Trump está a ajudar o mundo a ser melhor
A América está, de facto, great again, graças à forma como tem sabido resistir civilizadamente a um Presidente inimaginável.
João Miguel Tavares
Público, 23 de Janeiro de 2018
Perdoem-me o título digno de Miss Universo, mas não precisam de mim para bater em Donald Trump. Não há jornal ou televisão que se esqueça de nos informar o quanto Trump é detestável, mentiroso, irascível, impreparado para o cargo, mal-educado, traidor dos valores americanos e absolutamente repugnante. Não contesto nada disso, com excepção do “traidor dos valores americanos”, porque Trump representa uma parte significativa da América — parte essa, aliás, que continua muito mal compreendida. Por isso, em vez de me juntar à multidão de haters, parece-me mais produtivo assinalar o primeiro aniversário de Donald Trump na Casa Branca recordando aquilo que lhe devemos: a repolitização da sociedade americana, a ressurreição dos jornais, os melhores programas de humor do mundo, o envolvimento de cada vez mais gente no combate político e nas lutas sociais, e até a tomada de consciência, por parte da Europa, de que a defesa dos valores ocidentais não pode ser abandonada nas mãos de um qualquer inquilino da Casa Branca.
Não é coisa pouca. Ontem este jornal apresentava uma entrevista com Jessica Bennett, editora de Género do New York Times, que afirmava: “Trump galvanizou as mulheres de uma forma nunca antes vista.” A Marcha das Mulheres, que no passado fim-de-semana voltou a encher as ruas de 250 cidades em todo o mundo, é a prova dessa mobilização. Mas Trump fez mais. O próprio New York Times aumentou as suas subscrições em 60% entre Setembro de 2016 e Setembro de 2017, para 2,5 milhões de assinantes. As acções da empresa detentora do jornal subiram 41% no decorrer de 2017. A CNN anunciou que no ano passado o canal teve maior audiência desde a sua criação, em 1980. Stephen Colbert, o mais aguerrido humorista americano no campeonato “Tiro-ao-Trump”, conseguiu aquilo que parecia impossível: tornar o The Late Show no programa mais visto da televisão americana no seu segmento, destronando o bem menos politizado Tonight Show de Jimmy Fallon. Colbert ganhou 600 mil espectadores (de 2,9 para 3,5 milhões) desde que Donald Trump venceu as primárias republicanas. O mesmo sucesso calhou a Alec Baldwin quando começou a fazer de Trump no Saturday Night Live (interpretação com direito a Emmy e tudo): a cabeleira loira e o lábio subido bateram recordes de audiência. Donald Trump vende — e muito. Ele é o maior amigo dos seus inimigos. Ele é o homem que nós amamos odiar.
O mundo da política tem uma costela taoista: mal e bem, positivo e negativo, yine yang, são menos categorias opostas do que complementares, vivendo numa dinâmica permanente, de influência mútua. Claro que ver Donald Trump fazer piadas com o tamanho do seu botão nuclear causa arrepios, mas se ele se aguentar mais três anos sem provocar demasiados estragos pode ser que o legado da sua presença à frente do país mais poderoso do mundo possa ser melhor do que poderíamos imaginar. Isto não significa, de todo, que devamos ser mais complacentes em relação a ele. Embora haja com frequência exageros ridículos e formas muito pouco equilibradas de noticiar as suas acções, o que sugiro é o contrário disso: a capacidade de uma sociedade permanecer alerta, sem se deixar anestesiar pela sua postura de bully, é uma enorme demostração de vitalidade política e de espírito de cidadania. Nesse sentido, Donald Trump está a cumprir uma promessa: a América está, de facto, great again, graças à forma como tem sabido resistir civilizadamente a um Presidente inimaginável.

Memórias e profecias
José Pacheco
OBSERVADOR, 25/1/2018
Tentou-se modificar o velho modelo educacional através da gestão democrática. Mas, nos anos 70, o projeto de participação educativa não levou a comunidade para a escola, nem a escola para a comunidade
Nos idos de 1970, através de uma prática radicada no personalismo de Mounier, no ensino individualizado de Dottrens e nos dispositivos pedagógicos legados por Freinet (classe cooperativa, correspondência escolar, imprensa escolar, assembleia, ficheiros autocorretivos…), deixamos para trás o modelo instrucionista da Revolução Industrial. Mas, após abandonar o modelo da ensinagem, com centro na pessoa do professor, ainda era elevada a taxa de insucesso dos alunos.
Ainda na transição entre o paradigma instrucionista e o paradigma da aprendizagem, introduzimos ecléticas práticas herdadas de Cousinet, Decroly, Ferrière, Dewey, Kilpatrick, Montessori, SteinerRecorremos às taxonomias de Bloom, à pedagogia por objetivos, à metodologia de trabalho de projeto, a tudo o que, supostamente, pudesse garantir a todos o direito à educação. E, em meados da década de 1980, abdicámos, em definitivo, do modelo escolanovista, centrado no aluno.
A saga pedagógica desembocou na utilização de computadores, já no início da década seguinte. Através da introdução das novas tecnologias, intensificávamos a pesquisa, sem desumanizar o ato de aprender. Porém, ainda havia necessidade de reprovar. Alterámos o modelo de gestão, não educando para a cidadania, mas no exercício da cidadania. Criámos uma equipe de educação especial, na intenção de assegurar uma efetiva educação inclusiva. Dispensámos inúteis provas e optámos por uma avaliação formativa, contínua e sistemática, com recurso à elaboração de portfólios. Abrimos caminhos para uma educação integral, aquela que contempla o domínio intelectual, mas também o afetivo, o emocional, o ético, o estético… Mas, ainda havia alunos que não aprendiam. Tomámos consciência de que não havia dificuldades de aprendizagem, mas dificuldades de ensinagem.
Chegara o tempo da psicologização da escola. Universitários recuperavam um Vigotsky requentado e um Piaget readaptado, para chegar a um Bruner dos princípios gerais da aprendizagem. Por outro lado, a “Carta de Barcelona”, o Manifesto da Transdisciplinaridade e os trabalhos de Bordieu, Freire e Giroux levaram-nos a operar nova ruptura paradigmática, a erradicar subtis processos de reprodução escolar e social.
Durante mais de quarenta anos, perseguimos aquilo que parecia ser uma quimera: que todos os jovens aprendessem e fossem felizes. Com intuição pedagógica, amor pela infância e o quanto baste de uma ciência prudente, à custa de muitos erros e fracassos, lançámos os fundamentos de uma nova construção social de educação. A essa nova construção social demos o nome de comunidade, o lugar de uma aprendizagem centrada na relação.
Na condição de diretor de escola e autarca, eu havia tentado modificar o velho modelo educacional pela via de uma gestão democrática. No final da década de 1970, o projeto de “participação educativa” não levou a comunidade para a escola, nem a escola para a comunidade, apenas integrou a escola na comunidade. Mas, decorreriam mais de vinte anos até que a comunidade assumisse a direção da escola. E, somente em 2004, a autonomia da escola foi reconhecida através de contrato celebrado com o ministério da educação.
Nos primórdios do século XXI, rumei ao Brasil. Rubem Alves publicara o livro “A escola com que sempre sonhei”, coletânea de crónicas, impressões da sua visita à Escola da Ponte. E, para além de satisfazer a curiosidade dos professores brasileiros e o interesse manifestado pela academia pelo exotismo do nosso projeto, adentrei a espantosa obra do Agostinho da Silva em terras do Sul. Esse saudoso Mestre foi ícone de passagem para caminhos de transição para um terceiro paradigma: o da comunicação.
Em 2018, começo a escrever nova página deste diário abreviado. Escrevo-a em Brasília, onde a génese de uma nova educação acontece, cumprindo a profecia do Mestre Agostinho. Um artigo publicado, ainda no tempo em que foi professor da Universidade de Brasília, reza assim: Portugal desembarcou na África, na Ásia e na América; só falta a Portugal desembarcar em… Portugal.
Vos asseguro que não tarda o desembarque, no hemisfério Norte, de uma nova educação, que está a ser gestada no Sul.
Fundador da Escola da Ponte ‘Caderno de Apontamentos’ é uma coluna que discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado


sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Diversidade existencial


Dois textos “In Memorian”, de diferente carisma: No primeiro, a sua autora, Maria João Avillez, presta homenagem, na sua maneira vertical, a um amigo em quem reconheceu valores como podem coexistir, até mesmo entre nós – a riqueza económica proveniente de esforço, trabalho, educação, aliada a riqueza moral revelada na generosidade, decência de comportamento e brilho próprio. No segundo, um escritor, talvez mais jovem do que Maria João Avillez, Miguel Esteves Cardoso, homenageia, na sua forma descontraída e paradoxal, um cantor que aprecia, de uma forma onde a emoção rasga através de denúncias de características provocatórias nas temáticas e músicas dos Fall, que o cantor fundou.
Manuel Vinhas, o amigo de valor, mas perseguido julgo que pelas invejas da mesquinhez em que sempre demos provas, e porque também ouvi falar dele, transcrevo igualmente da Internet um texto que explicita os dados da revolta de Maria João Avillez, da dimensão do homem e da dimensão dos seus carrascos mesquinhos, como também a dos seus mesquinhos amigos que protegeu e o ignoraram, e tudo isso me trouxe recordações passadas de assaltos e ocupações e destruições, numa dada altura da nossa evolução democrática entoada pelos nossos cantores alinhados.
Mas a graça da crónica de Miguel Esteves Cardoso põe travão nessas memórias soterradas, com o sorriso do seu humor paradoxal, enquanto me apresso a escutar esse Mark E Smith pela Internet, o cantor cuja «música não era má de propósito — não tinha era pachorra para ser boa. Raios a partam, já sinto a falta dela. E a falta dele


Notícias de uns portugueses que também há
OBSERVADOR, 23/1/2018,
Os Vinhas eram dois irmãos que tinham ambos, pouco portuguezmente, a necessidade da desinstalação: levaram a vida a fazer coisas pelo país e a fazê-las bem feitas.
1. Levei metade do almoço a convencer a filha de que a vida de seu pai, Manuel Vinhas (1920/1977), reclamava biografia e não era a primeira vez que eu lho dizia. Em Portugal regista-se pouco, é-se avaro com a memória e é pena: Manuel Vinhas foi um português de fôlego, só há uns como ele de vez em quando. Era amigo de nossa casa onde sempre ouvia falar dele de modo invulgar. E quando mais tarde passei a encontrá-lo, apercebi-me da sintonia entre o que me fora descrito na adolescência e o homem que ali estava: graça, punch, inteligência, imaginação, trabalho. Diferença.
2. Passava-se este almoço em sábado luminoso numa casa além Tejo onde se celebravam os noventa anos do Mário Vinhas, irmão do Manuel. Juntaram-se amigos que Vinhas é uma marca – e antes de tudo mental – com qualidade. Eram dois irmãos diferentes entre si mas tinham ambos, pouco portuguesmente, a necessidade da desinstalação: levaram a vida a fazer coisas no país e a fazê-las bem. Assim de repente posso falar em agricultura, indústria, em múltiplas empresas bem sucedidas, aqui ou em África, à mistura com uma natural prática do bom gosto: arte moderna, livros, porcelanas, antiguidades. Depois havia a caça mas, mais que caçadores, eram os dois formidáveis atiradores. Tão dotado era o jovem Mário que Américo Thomaz o levava consigo, a ele e a outro jovem igualmente dotado, para poder brilhar diante de Franco quando convidado por este para caçar em Espanha: o almirante ficava com a fama e o proveito, por interposto atirador. Mas duvido que ao generalíssimo, que em pessoa recebia este terceto português, escapasse o expediente do congénere lusitano.
O culto do desporto a que Mário Vinhas e a sua família também se dedicaram durante décadas cobriu-os de medalhas: da água à neve, do voleibol ao ping-pong, ganharam não sei quantos campeonatos.
Uma espécie de polivalência criativa que o dinheiro só por si jamais explicaria (e este é um dos meus pontos neste texto.) Que seria do dinheiro sem a marca Vinhas?
3. Mais do que ser do regime, Manuel Vinhas coincidiu temporalmente com ele o que não é exactamente o mesmo. Avistava-se por vezes com Salazar por causa de África, tinha amigos em todo o lado, era bem visto e bem-vindo nas oposições onde incentivava intelectuais, artistas plásticos de quem foi um generosíssimo e permanente mecenas, actores. Desde os mais jovens nos recém-formados grupos independentes, (a Comuna e outros) a quem ele ou o seu irmão cediam instalações, até Raul Solnado ou Vinicius, que lhe devolviam a devoção que Manuel Vinhas lhes dedicava (são memoráveis algumas histórias protagonizadas por eles em Lisboa, no Estoril, na Bahía, no Rio…)
Por uma extraordinária coincidência — e acho quer não estou a sonhar — passei a tarde do dia 16 de Março de 1974 com o Manel Vinhas. Por puro acaso: embora cada um pelo seu lado, ambos tínhamos ido ver uma peça (“A Ceia”) ao teatro da Comuna justamente – fundado em 1971 por João Mota e Manuela de Freitas, entre outros — e ao tempo instalada, por cedência de Mário Vinhas, nas instalações da Central de Cervejas. Peça teatral onde de resto o Manuel Vinhas já se tinha encarregue, em anteriores ocasiões, de ter levado Azeredo Perdigão, Agostinho da Silva, José Hermano Saraiva, então ministro ou ex-ministro da Educação, não me lembro. Do que me lembro foi daquela espécie de ansiedade que a todos tingia nos bastidores, onde após a representação, se tinham reunido alguns amigos, com o Manuel Vinhas a aparentar uma serenidade que não sentia.
Conjecturas — quem eram aqueles militares, que era aquilo?” — alegrias, falsas alegrias, ilusões, receios. O pano caiu nos bastidores sobre a desilusão final: o golpe das Caldas falhara. Que se seguiria?
4Manuel Vinhas tinha paixão por Angola, era o seu outro pulmão. Defendia a autonomia dos territórios africanos que discutia com Salazar, o que levou a Pide a nunca se desinteressar dele – contribuindo incansavelmente como empresário para o seu desenvolvimento económico e social. Porventura também acreditava que quando chegasse a tal “autonomia”, já haveria pelo menos uma rede estruturada a sustentá-la.
Um dia produziu uma cerveja que deu brado em Angola e logo outra em Moçambique; animado, houve uma terceira no Brasil. Por lá – e por cá – os irmãos Vinhas foram erguendo fábricas, fundaram dezenas de empresas — vidro, cerveja, café, fruta, plástico –, criaram milhares de empregos. Mas quer em África, quer em Portugal, sempre com a consciência da sua responsabilidade social junto de quem com eles trabalhava e isto para resumir depressa décadas de decente — e na altura relativamente pioneiro — procedimento patronal. Se houve coisa que também os distinguisse foi esta.
Eram uns fazedores que acreditavam: gostavam de Portugal, tinham fé no país, acreditaram como tantos portugueses nos amanhãs de Marcelo Caetano, tiveram veemente esperança noutro desfecho para África. Tudo isto sem que jamais lhes ocorresse sequer poderem ser tratados de fascistas, confundidos nacionalistas, acusados de colonialismo quando produziam riqueza nas Áfricas, com tanto trabalho quanto convicção de que faziam o seu melhor (e provavelmente gerações bem abaixo das minha ignorarão que houve gente assim em Portugal se é que lhes interessa o que estou a contar, ou sequer se me acompanham). Mas não é por não restar já pedra sobre pedra de tudo “isto” que desistirei de tentar reerguer algumas delas. Que “isto” é este? É a sensação de que se acha, se pensa, se ensina, se defende que Portugal nasceu no dia 25 de Abril de 1974.
5. Neste sábado e neste lugar além Tejo festejava-se o Mário. Noventa anos. E como se tratava “dos Vinhas” em vez de um festejo banal, discursos fastidiosos e cantares lacrimejantes, os netos (quem sai aos seus) puseram uma câmara de filmar frente ao avô, ligaram um gravador, fizeram perguntas em voz off e com a ajuda de profissionais, editaram o resultado para estrear hoje.
Pelo filme, contados pela própria voz fatigada do Mário Vinhas e ilustrados com nomes e histórias, passaram vários Portugal, cada um deixando a pairar a sua quota parte de peso e memória, festa e melancolia, desastres e feitos: o Portugal ainda do império, o da revolução; o da transição democrática liderada por outro Mário, o Soares. E o Portugal de hoje, estabilizado e europeu. Viagem de sabor agridoce.
6. Manuel Vinhas morreu cedo (56 anos) num hospital da Bahía. Exilara-se no Brasil, meses após o 25 de Abril de 74. Foi maltratado, magoado por gente que prezava, provou o sabor da desilusão, inversamente proporcional à ilusão que tivera. Poisou nalguns países europeus, vindo a desaguar no Rio de Janeiro e depois, Salvador da Bahía. Foi lá que escreveu um livro triste. (Ter-se-á porventura esquecido que não se deve confiar por aí além na natureza humana.)
Mário Vinhas está vivo e bem vivo. Louva-se-lhe a memória e agradece-se-lhe o culto da amizade. O primeiro valeu muito a pena. O segundo ainda vale.


Da Internet:
(Foi o empresário mais espiado durante o Estado Novo, mas o 25 de Abril também não lhe deu tréguas. Milionário dedicado ao fabrico de cervejas, Manuel Vinhas foi também um mecenas irrepreensível. Protegeu poetas e pintores, mas na hora da verdade só Luiz Pacheco o defendeu. 
Em Angola, tinha a cerveja Cuca, em Portugal a Sagres, a Skol, no Brasil, e a Laurentina, em Moçambique. Detentor de um grande grupo económico que em África se alargava à agro-pecuária, transportes e comunicação social, foi um dos menos convencionais empresários do pré-25 de Abril. Mecenas irrepreensível para artistas como Luiz Pacheco, que escreveu certa vez sobre Vinhas: "Do mecenas Manuel Vinhas falo pelo que me toca. Durante anos, mais de dez, auxiliou-me em dinheiros, renda da casa pontualmente paga, bolsa de estudos em livros, máquina de escrever. Sem me conhecer pessoalmente, apenas alertado para a minha difícil situação económica por um amigo comum. Nunca tive nem creio que venha a ter mecenas tão delicado e escrupuloso." Apoiou ainda Júlio Pomar, Ary dos Santos e Cesariny e financiou a construção do Teatro Villaret.
Manuel Carvalho Brito das Vinhas nasceu em Lisboa em 1925. Filho de Francisco Vinhas e de Luísa Carvalho, descendia de uma família com negócios ligados à indústria das bebidas: águas, vinhos e cervejas.
Com o seu irmão Mário Vinhas, reconstruiu na década de 60 a coudelaria tradicional da herdade do Zambujal, mediante a aquisição da eguada de João Coimbra.
Uma herdade onde estiveram a caçar a convite da família os condes de Barcelona, os duques de Windsor e o casal Patiño. Hoje em dia, os Vinhas continuam a receber nomes grandes da alta sociedade como o príncipe Ernst de Hannover e a sua mulher, Carolina do Mónaco.
Manuel Vinhas viveu a maior parte da sua vida em Angola, onde a PIDE o vigiou atentamente. Os problemas políticos começaram quando publicou um pequeno livro chamado Para Um diálogo sobre Angola. Foi acusado de todos os impropérios. Diziam que era colaborador do MPLA e que estabelecia encontros com facções revolucionárias em Leopoldville.
Como revelaram Filipe Fernandes e Luís Villalobos no livro Negócios Vigiados, Manuel Vinhas foi o empresário português mais vigiado de sempre, apesar de se ter casado com Concha Bustorff Silva, filha de um colaborador de Salazar. A 13 de Março de 1963 foi impedido pela PIDE de embarcar para Copenhaga. Nessa altura, foram apreendidos 400 exemplares da 2.ª edição do seu livro Para Um Diálogo sobre Angola.
"A vigilância de Manuel Vinhas pela PIDE começou em 1961 e foi intensa ao longo da década de 1960, e culmina com a informação recolhida a 25 de Agosto de 1969 quando Manuel Vinhas recebeu na sua herdade do Zambujal os duques de Windsor e o casal Patiño para uma festa, que, como diz o recorte de A Capital, arquivado pela PIDE-DGS, se caracterizou pela maior discrição", lê-se em Negócios Vigiados.
Depois do 25 de Abril, a história não foi muito diferente para Manuel Vinhas. O empresário foi acusado de ser um dos maiores latifundiários do País, milionário sem escrúpulos que tinha um urinol em prata revestido a veludo na sua herdade do Zambujal. Muitos dos amigos que ajudou, nomeadamente artistas a quem deu a mão, viraram-lhe as costas depois da revolução. Luiz Pacheco foi a excepção, chegando a escrever o prefácio do livro que o empresário publicou no Brasil, Profissão Exilado, onde descreveu em detalhe a perseguição de que foi alvo pelos novos poderes instituídos.
"Milícias do Partido Comunista assaltaram nos últimos dias de Setembro a minha residência. Procurando-me de metralhadoras em punho, obrigando os meus filhos a saírem da cama de madrugada, interrogando-os com ameaças, despejando garrafas de vinho, roubando as espingardas de caça. Como não me encontraram, avisado que tinha sido por um amigo, repetiram a visita na noite seguinte, beberam mais vinho, o que tomei como uma homenagem ao meu critério selectivo", escreveu.
Refugiado no Brasil após o 25 de Abril, Manuel Vinhas morreu em Março de 1977 em Salvador da Baía. Hoje, a coudelaria da herdade do Zambujal mantém-se activa e nas mãos da família Vinhas.|

PESSOAS CULTURA ÍPSILON
CRÓNICA
Mark is dead
A música dos The Fall não era má de propósito — não tinha era pachorra para ser boa. Raios a partam, já sinto a falta dela. E a falta dele.
MIGUEL ESTEVES CARDOSO
Público, 25 de Janeiro de 2018
Mark E. Smith morreu de microfone em punho, tendo vivido toda a vida como muito bem entendeu. A imensa obra que deixou, em que nunca se deu ao incómodo de separar o trigo do joio, dará trabalho a gerações de exegetas.
As letras dele são denúncias hilariantes em que ele livremente exprime a misantropia que o animava, deliciando-se com observações de leviandades, modas e pretensões.
Mark E. Smith era um artista extremamente original e originalmente extremista. Não se filtrava nem diluía. O talento verbal é tão grande que lhe bastava fazer associações livres até chegar ao fim da canção. Bastava-lhe uma embirração para arrancar.
Ele era um Samuel Johnson da classe trabalhadora e do Norte que adorava picar as classes satisfeitas, a começar e acabar pelos músicos e pelos jornalistas. Era um dos maiores críticos que já conheci.
Tudo isto faz com que soe como um chato — e era. Não se calava. Era mais um heckler do que um cantor. Mesmo nos primeiros concertos eu ficava sempre com a sensação que ele estava a insultar-nos. Por sermos estudantes, por termos gabardinas compridas, por estarmos armados em intelectuais, por gostarmos de Joy Division e de pastis. Estavam a começar os anos 80 — mas o Mark já estava farto deles.
Os Fall são um prazer. A música maníaca e repetitiva manteve sempre a electricidade do improviso, da espontaneidade e da preguiça para fazer melhor. A música não era má de propósito — não tinha era pachorra para ser boa. Raios a partam, já sinto a falta dela. E a falta dele.