domingo, 14 de fevereiro de 2010

Não sobe mais

Foram muitos os nossos escritores que apontaram o trabalho árduo do povo português, produto da exploração capitalista. Vem de longa data o tema literário que tão extraordinariamente seria satirizado por Charlot no filme de 1936, “Tempos Modernos”. E a vivacidade do ritmo de actuação imposta àquele trabalhador de fábrica, que se pretende converter em puro autómato, numa alienante e desumanizante estratégia produtiva que exclui do homem operário sensiblidade e racionalidade, pela ganância crescente do patrão capitalista, tal ritmo parece ser reproduzido no poema de GedeãoCalçada de Carriche”, na repetição monocórdica das onomatopeias “sobe que sobe”, “puxa que puxa”, “larga que larga” e no ritmo breve dos tetrassílabos de leitura rápida:

«Luísa sobe, / sobe a calçada, / sobe e não pode / que vai cansada. / Sobe Luísa, / Luísa sobe, / sobe que sobe, / sobe a calçada.

Saiu de casa / de madrugada; / regressa a casa / é já noite fechada. / Na mão grosseira, / de pele queimada, / leva a lancheira / desengonçada. / Anda Luísa, / Luísa sobe / sobe que sobe, / sobe a calçada...
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Na manhã débil, / sem alvorada, / salta da cama, / desembestada; / puxa da filha / dá-lhe a mamada / anda, ciranda, / desaustinada; / range o soalho / a cada passada; / salta para a rua, / corre açodada, / galga o passeio, / desce a calçada, / chega à oficina / à hora marcada, / puxa que puxa, / larga que larga / puxa que puxa, / larga que larga, / puxa que puxa, / larga que larga / puxa que puxa, / larga que larga; / toca a sineta / na hora aprazada....
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Regressa a casa / é já noite fechada. / Luísa arqueja / pela calçada. / Anda Luísa, / Luísa sobe, / sobe que sobe, / sobe a calçada, / sobe que sobe, / sobe a calçada, / sobe que sobe, / sobe a calçada, / Anda Luísa / Luísa sobe, / sobe que sobe, / sobe a calçada


Mas era no tempo em que havia trabalho para a Luísa, havia trabalho mal pago para os Charlots que os donos do capital exigiam de prestação eficiente, a troco de uma retribuição quase sempre miserável, de indigna exploração. Havia trabalho.
Fez-se, em Portugal, uma revolução que deu voz ao povo, esse povo sempre maltratado por quem tinha o poder de maltratar, e que os escritores generosamente defenderam. Como António Gedeão.
Mas as fábricas onde trabalhavam os operários e as operárias foram fechando, as terras onde trabalhadores eram contratados para trabalhar foram morrendo, os serviços públicos foram despedindo gente. E tudo isso vai continuar – a fechar, a morrer, a despedir. Os trabalhadores que restam continuam a ser explorados por quem tem esse poder. Os que foram despedidos vivem de subsídios ou de assistência alimentar, ou não sei como sobrevivem. E têm filhos, e têm compromissos de pagamentos, da casa que compraram, dos hábitos de bem-estar a que se julgaram com direito. O clamor é geral. Dos que sofrem o desemprego, dos que sofrem pensando no horror do que eles sofrem e na miséria do país que o permite.
Quando lemos que em Portugal a “morte súbita causa 27 vítimas por dia”, ou seja, feitas as contas, 9855 ou 9882 por ano, achamos que o espectro do desemprego é causa-mor desse facto, e que é com isso que o Governo conta para se segurar no seu poder, até à extinção do seu País, em que a natalidade é inferior à mortalidade.
Quando vejo um espectáculo francês – “Le plus grand Cabaret du Monde” - apresentado por um extraordinário animador televisivo – Patrick Sébastien – admiro um mundo superior de arte, inteligência, gente capaz, que colhe da vida o que lhe apetece colher, de cultura, de interesse por aquilo que eleva realmente o homem e o faz feliz. Um espectáculo certamente caro, com a participação de extraordinários artistas do mundo inteiro. de convidados merecedores dos diálogos de interesse que com eles trava o produtor do programa.
Quando vejo os nossos programas populares, foleiros, ao nosso modo, limitado às excitações da nossa sensibilidade tacanha ou à crítica mais ou menos verrinosa da nossa competência oratória, sem que jamais se pretenda favorecer o público com temas musicais buscados no Conservatório, por exemplo, que tem boas vozes e bons musicólogos, ou temas culturais específicos que não sejam os de importação, sinto quanto talvez nem mereçamos o apodo de país de uma Europa civilizada.
E vamos morrendo nesta inércia, sem coesão, gritando muito, gritos de “casa onde não há pão”, a não ser para os de sempre, os da astúcia. E os que vão tendo trabalho, mesmo sem serem do partido. E os que vivem da reforma, até que a venham a perder.
É urgente respeitar os trabalhadores que foram despedidos. E impedir de o serem os que ainda não foram. É urgente trabalhar. É urgente respeitar o trabalho. É urgente criar trabalho, criar riqueza. E trabalho que produza riqueza.

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