A minha amiga falou no meu texto “Não sobe mais” em termos de angústia. Disse que lhe custou chegar ao fim, tão atroz lhe pareceu o quadro dos desempregados. Apontou também os que trabalham em profissões livres, por exemplo os arquitectos, os engenheiros, que fazem obras tendo de adiantar dinheiro que geralmente não têm, com recurso a pessoas que mal têm mas confiam, e no fim esperam tempos infinitos – as mais das vezes em vão – o pagamento das ditas. Um país de pobres. E de vigaristas sem honra.
- E no entanto, há dinheiro neste país. Os ricos estão a ficar mais ricos, mais ricos, mais ricos, pá. Pegado ao Hotel Palace, há uns apartamentos de luxo dos mais caros que se vão vender até hoje em Portugal. A parte de dentro é pegada ao Hotel, portanto devem ter serventia com o hotel. E do outro lado têm termas.
- Mas as termas não são de águas sulfurosas ou outros químicos, provindos directamente da terra?
- Talvez sejam outra coisa, uma espécie de jacuzzi luxurioso. Não sei quantos são os apartamentos ligados ao Estoril Palace, mas são imensos. Aquela gente é tão rica que não precisa de sair à rua.
- Coitados! – protesto, penalizada, em velhas reminiscências de rejeição de claustrofobia, ainda hoje manifestas na hora de liberdade coscuvilheira com a minha amiga, no café das compras.
- Qual quê! Eles têm tudo, todos os requintes possíveis, não precisam de ir às compras como nós. Mas eu acredito agora que este país não é tão pobre como se pinta. Os carros à volta do Casino do Estoril, desde a marginal são tantos, tantos, que não se tem um lugar vago para enfiar mais um. Crise não existe. Mas a verdade não é essa do desemprego: os ricos estão cada vez mais ricos.
- Mas eu ouvi que o Casino ia despedir pessoal, criar desemprego, pois também está em crise!
- É que os patrões, em caso de crise geral, também se afirmam em crise, como truque para não destoar da pelintrice nacional, guardando os proventos para si. Ninguém se importa com quem trabalha. Mas custa-me a crer que o Casino esteja em crise. O casino é um mundo múltiplo que fervilha de gente que come, que se diverte, que se arruina. Muita gente perdeu fortunas aí. E perde. Aquilo é um polvo que estrangula quem não resiste à ânsia do dinheiro fácil.
- Mas o desemprego é também um polvo que paraliza, que faz enlouquecer, no terror de se terem encargos que se não podem cumprir, no horror de nos sentirmos preteridos da acção pública, como que escorraçados da sociedade onde um curso nos fizera participar. Eu já vivi momentos desses, depois do regresso de África e não imagina o que foi. Em tempos escrevi um texto que foca isso, que transcrevo de “Anuário – Memórias Soltas”, publicado em 1999. Mas o texto é de 1993:
“No almoço de despedida”
- E no entanto, há dinheiro neste país. Os ricos estão a ficar mais ricos, mais ricos, mais ricos, pá. Pegado ao Hotel Palace, há uns apartamentos de luxo dos mais caros que se vão vender até hoje em Portugal. A parte de dentro é pegada ao Hotel, portanto devem ter serventia com o hotel. E do outro lado têm termas.
- Mas as termas não são de águas sulfurosas ou outros químicos, provindos directamente da terra?
- Talvez sejam outra coisa, uma espécie de jacuzzi luxurioso. Não sei quantos são os apartamentos ligados ao Estoril Palace, mas são imensos. Aquela gente é tão rica que não precisa de sair à rua.
- Coitados! – protesto, penalizada, em velhas reminiscências de rejeição de claustrofobia, ainda hoje manifestas na hora de liberdade coscuvilheira com a minha amiga, no café das compras.
- Qual quê! Eles têm tudo, todos os requintes possíveis, não precisam de ir às compras como nós. Mas eu acredito agora que este país não é tão pobre como se pinta. Os carros à volta do Casino do Estoril, desde a marginal são tantos, tantos, que não se tem um lugar vago para enfiar mais um. Crise não existe. Mas a verdade não é essa do desemprego: os ricos estão cada vez mais ricos.
- Mas eu ouvi que o Casino ia despedir pessoal, criar desemprego, pois também está em crise!
- É que os patrões, em caso de crise geral, também se afirmam em crise, como truque para não destoar da pelintrice nacional, guardando os proventos para si. Ninguém se importa com quem trabalha. Mas custa-me a crer que o Casino esteja em crise. O casino é um mundo múltiplo que fervilha de gente que come, que se diverte, que se arruina. Muita gente perdeu fortunas aí. E perde. Aquilo é um polvo que estrangula quem não resiste à ânsia do dinheiro fácil.
- Mas o desemprego é também um polvo que paraliza, que faz enlouquecer, no terror de se terem encargos que se não podem cumprir, no horror de nos sentirmos preteridos da acção pública, como que escorraçados da sociedade onde um curso nos fizera participar. Eu já vivi momentos desses, depois do regresso de África e não imagina o que foi. Em tempos escrevi um texto que foca isso, que transcrevo de “Anuário – Memórias Soltas”, publicado em 1999. Mas o texto é de 1993:
“No almoço de despedida”
«Queridos Colegas»
«Mais um Natal, mais uma despedida, um terminar que, ao repetir-se nesta quadra do renascer, permite prever que uma Reforma não é o fim de nada – apenas mais uma fase na vivência de cada um. Uma fase que, quando se é novo, se encara com angústia – a angústia de ser-se marginalizado na movimentação de um mundo demasiado atarefado – mas que, quando se atingiu a idade provecta, se encara com alívio e desejo de partir para outros envolvimentos, igualmente atraentes e construtivos.
Recordo o longo ano em que, após o regresso de África e ingressada no Quadro dos Adidos, estive em riscos de, apesar do contrato com o governo do Ultramar, ficar sem o emprego para que a minha formação me preparara. Recordo o desespero de me sentir posta de lado, apenas debruçada sobre as tarefas caseiras que, nessa altura, mais do que hoje, dificilmente aceitava. Tudo se resolveu a contento por via do estágio, que me catapultou posteriormente para os quadros metropolitanos. Mas a angústia de então contrasta perfeitamente com a satisfação de agora, de libertação desses mesmos elos por que lutei.
Satisfação que provém, talvez, da consciência de ter cumprido bem, talvez da incompatibilidade com um ensino actualmente demasiado espectacular que, exigindo muito tempo do professor para a preparação do espectáculo, lho rouba, incompreensivelmente, para uma autoformação contínua e mais criteriosa, em função da preparação dos próprios alunos.
Ensino ruidoso e exaustivo para o professor, disperso por múltiplos afazeres de burocracia e loquacidade exagerados, numa engrenagem de violência absurda, em que a falta de tempo para uma preparação mais cuidada e mais discreta ao nível da docência, o transformará no funcionário esforçadamente envolvido no preenchimento de papéis, de eficácia irrisória e sem dimensão cultural.
Ensino que propõe ao aluno uma criatividade e uma responsabilidade não consentâneas com a ausência de valores culturais, os quais têm de ser paulatinamente e com seriedade transmitidos, para que criatividade e responsabilidade se tornem efectivas, mas a que a contínua dispersão para o espectáculo e o lúdico impede uma verdadeira conscientização.
Daí o sentimento de alívio pela libertação deste novo mundo, em que jogam parâmetros de competições e interesses que nada têm a ver com um ensino empenhado numa real valorização do homem.
A formação dos jovens parte essencialmnente da família, e desfavorecidos serão, em todos os tempos mas especialmente nos tempos brutais de agora, os que apenas dependem da instituição escolar, sem passarem pelo cadinho do acompanhamento familiar ou do explicador transmissor das bases estruturantes, indiferente à novidade dos métodos.
A hipocrisia social finge ignorar esses dados e vai consentindo uma contínua degradação do ensino, aparentemente iludida pelo palavroso de uma reforma que, impondo muito, cerceia o tempo, para que se possam sedimentar, honestamente, os valores que pretende incutir.
Estes dizeres, talvez pessimistas, nada têm a ver, no entanto, com o sentimento de simpatia por aqueles com quem, nesta escola, convivi longos anos e que recordarei sempre com amizade.»
Quis com este texto mostrar que a esperança era possível ainda. Mas foi preciso lutar. Não sei se hoje ainda se pode ter esperança. Talvez possa, é preciso não desistir. Pelo menos hoje há o subsídio. O nosso PM prometeu o subsídio.
Mas é preciso respeitar as pessoas. Não as pôr à margem da luta. Favorecê-las não com subsídios mas com trabalho. Sempre se disse que o trabalho dignifica. Não sei se é slogan ultrapassado. Mas o trabalho sério é fonte de riqueza, mesmo sem slogan.
«Mais um Natal, mais uma despedida, um terminar que, ao repetir-se nesta quadra do renascer, permite prever que uma Reforma não é o fim de nada – apenas mais uma fase na vivência de cada um. Uma fase que, quando se é novo, se encara com angústia – a angústia de ser-se marginalizado na movimentação de um mundo demasiado atarefado – mas que, quando se atingiu a idade provecta, se encara com alívio e desejo de partir para outros envolvimentos, igualmente atraentes e construtivos.
Recordo o longo ano em que, após o regresso de África e ingressada no Quadro dos Adidos, estive em riscos de, apesar do contrato com o governo do Ultramar, ficar sem o emprego para que a minha formação me preparara. Recordo o desespero de me sentir posta de lado, apenas debruçada sobre as tarefas caseiras que, nessa altura, mais do que hoje, dificilmente aceitava. Tudo se resolveu a contento por via do estágio, que me catapultou posteriormente para os quadros metropolitanos. Mas a angústia de então contrasta perfeitamente com a satisfação de agora, de libertação desses mesmos elos por que lutei.
Satisfação que provém, talvez, da consciência de ter cumprido bem, talvez da incompatibilidade com um ensino actualmente demasiado espectacular que, exigindo muito tempo do professor para a preparação do espectáculo, lho rouba, incompreensivelmente, para uma autoformação contínua e mais criteriosa, em função da preparação dos próprios alunos.
Ensino ruidoso e exaustivo para o professor, disperso por múltiplos afazeres de burocracia e loquacidade exagerados, numa engrenagem de violência absurda, em que a falta de tempo para uma preparação mais cuidada e mais discreta ao nível da docência, o transformará no funcionário esforçadamente envolvido no preenchimento de papéis, de eficácia irrisória e sem dimensão cultural.
Ensino que propõe ao aluno uma criatividade e uma responsabilidade não consentâneas com a ausência de valores culturais, os quais têm de ser paulatinamente e com seriedade transmitidos, para que criatividade e responsabilidade se tornem efectivas, mas a que a contínua dispersão para o espectáculo e o lúdico impede uma verdadeira conscientização.
Daí o sentimento de alívio pela libertação deste novo mundo, em que jogam parâmetros de competições e interesses que nada têm a ver com um ensino empenhado numa real valorização do homem.
A formação dos jovens parte essencialmnente da família, e desfavorecidos serão, em todos os tempos mas especialmente nos tempos brutais de agora, os que apenas dependem da instituição escolar, sem passarem pelo cadinho do acompanhamento familiar ou do explicador transmissor das bases estruturantes, indiferente à novidade dos métodos.
A hipocrisia social finge ignorar esses dados e vai consentindo uma contínua degradação do ensino, aparentemente iludida pelo palavroso de uma reforma que, impondo muito, cerceia o tempo, para que se possam sedimentar, honestamente, os valores que pretende incutir.
Estes dizeres, talvez pessimistas, nada têm a ver, no entanto, com o sentimento de simpatia por aqueles com quem, nesta escola, convivi longos anos e que recordarei sempre com amizade.»
Quis com este texto mostrar que a esperança era possível ainda. Mas foi preciso lutar. Não sei se hoje ainda se pode ter esperança. Talvez possa, é preciso não desistir. Pelo menos hoje há o subsídio. O nosso PM prometeu o subsídio.
Mas é preciso respeitar as pessoas. Não as pôr à margem da luta. Favorecê-las não com subsídios mas com trabalho. Sempre se disse que o trabalho dignifica. Não sei se é slogan ultrapassado. Mas o trabalho sério é fonte de riqueza, mesmo sem slogan.
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