Os americanos são fortes e valentes. Quanto
menos a gente se precata eles enfiam-se noutra proposta de solução, sempre à
espreita de dominar o mundo, ou de o desenvolver, sabe-se lá! Os ingleses
também deram o seu contributo, dantes, quando se instalaram na Índia e
arredores, coisas passageiras mas de muito impacto. Mas o mundo é assim feito,
agora é o tempo dos talibans, lá na terra deles, mas só até ver. A gente não
pode esquecer aquelas imagens de terror, de homens encapuçados como aquela do que
tinha um facalhão atrás de um condenado ocidental que ia ser decapitado. Lamento
esse povo afegão entregue a tais gentes, garotelhos a quem foi entregue de
bandeja o seu brinquedo. Mas outros desastres nos chegam, constantemente, de um
clima estapafúrdio, que já não parece que vá desistir de desfazer este globo
terrestre. Também porque os homens não desistem de atormentar o clima. E os
mares e ribeiros da terra, que continuam a ser poluídos, apesar dos recados proibitivos
e a limpeza dos mares e das terras por adolescentes de garra ainda ingénua. Mais
tarde entrarão nos mesmos esquemas, agora são entusiasmados pelas Gretas
activistas a quem o dinheiro dá visibilidade. O certo é que andamos por aqui às
voltas, com a dúvida a alastrar cada vez mais, sobre esta coisa do sistema
solar a que pertencemos e das gerações futuras a que não pertenceremos. E o
Homem não pára de construir as armas para o destruir, sob uma aparência de
protecção e facilitismo de vida.
Desviei-me da lição de mestre, de Jaime
Nogueira Pinto, a respeito das Américas, do Afeganistão e dos Talibans.
Mas a narrativa vai continuar, ainda que por vezes ofuscada pelos desastres
naturais. Vamos voltar. Saboreemos a narrativa lúcida…
O declínio do império americano /premium
Com o fim da Guerra Fria, e por impulso
da húbris ideológica neoconservadora, Washington quis impor o modelo americano
por toda a parte. E quase sempre de forma voluntarista e irrealista.
JAIME
NOGUEIRA PINTO, Colunista do Observador
OBSERVADOR,
20 ago 2021
A invasão dos bárbaros
Homens barbudos e sisudos com Kalashs
ao ombro entram pelos
salões do palácio presidencial de Cabul e pelos nossos écrans adentro,
ajustando os olhos ao chão atapetado, aos cadeirões doirados e aos requebros
dos lustres. Os chefes sentam-se à volta da secretária como quem vai falar ao
mundo mas ainda estranha o cenário; os outros perfilam-se atrás, inquietos e
alerta. Há imberbes (e se são imberbes é porque Alá ainda não lhes deu os pelos
da maturidade) a percorrerem o luxo novo dos salões como crianças na
Disneylândia.
O
imaginário volta-se aqui, irremediavelmente, para a queda de civilizações
sofisticadas às mãos dos bárbaros –
a entrada dos guerreiros de Alexandre nos palácios de Dario – e para a sorte dos vencidos de todas as invasões. Ou para a
tragédia das vencidas, como as troianas cativas, no Teatro de Eurípides.
Os impérios, todos os impérios, parecem estar perpetuamente à espera
de bárbaros que os conquistem – bárbaros
que nem sempre chegam quando se espera. Porque
quando Calígulas e Neros, bem diferentes dos antigos magistrados republicanos
na decadência dos costumes e no amolecimento e corrupção do povo com pão e
circo, podiam fazer esperar o fim do império romano, o império resistiu e até
cresceu no século II, com os Antoninos, vindos das províncias. E continuou à
espera dos bárbaros, até que (na controversa explicação de Nietzsche) o
cristianismo, com as suas doutrinas de mansidão, de perdão e de amor ao próximo
e até ao inimigo, debilitasse por dentro a sua força conquistadora. No romance
de J. M. Coetzee, À Espera dos Bárbaros, os rudes estrangeiros também tardam a vir, e no de Dino Buzzati, O Deserto dos
Tártaros, um oficial, Giovanni Drogo, parte
para a fortaleza de Bastiani, frente ao deserto dos tártaros, onde espera uma
invasão que nunca vê chegar.
Mas
se a invasão dos bárbaros é um lugar selecto ocidental, um tema dos
“civilizados cristãos”, vezes houve em que os bárbaros fomos “nós” – como em 1860, quando os exércitos
anglo-franceses saquearam e queimaram o Palácio de Verão, em Pequim.
Desta vez, digamos que os bárbaros
são os talibãs e os civilizados os americanos, que mandavam num governo que lá
tinham posto e que, sem eles, caiu; e que a invasão foi tudo menos inesperada,
chegando mal ruiu a frágil “fortaleza americana” e se apressou a atabalhoada
debandada das suas sentinelas.
Assim, 20 anos e muitos milhões de
dólares e de investimento humano, político e militar depois do ataque jihadista
aos Estados Unidos, repetem-se imagens de há quase meio século, quando da queda
de Saigão.
Em resposta a uma astuciosa investida que os marcou profundamente,
os americanos derrubaram o governo talibã que acolhia os terroristas que a
planearam e executaram. Para tal, impulsionaram uma coligação de senhores da
guerra do Norte, de etnias não-pachtun e, em pouco tempo, Cabul caía.
Uma lógica realista mandaria que, com
o apoio desses mesmo senhores da guerra, se procurassem e eliminassem os
responsáveis pelo ataque de 11 de Setembro e que as tropas americanas depois se
retirassem. Mas não. Faltava a implantação da democracia.
Quem
lesse a História e as histórias do Afeganistão encontraria uma terra belíssima,
de gente dura, brutal, antiga, com códigos feudais de lealdade e negócio, mas
longe de ter condições para que ali se instalasse uma democracia representativa
e pluralista, regime para o qual eram precisas duas coisas: Estado (de preferência um Estado
nacional) e sociedade civil. Nada disso existia no Afeganistão. Mas se não
existia, teria de passar a existir.
Cemitério de impérios
Muito
depois do império britânico,
chegou ao Afeganistão o império soviético para socorrer o Partido Comunista,
que tomara o poder em 1978 e
procedera a impopulares “reformas modernizadoras”. E os soviéticos ficaram até
que os expulsassem os mujahedin, armados por ingleses e americanos, através da
Agência de Inteligência e Segurança do Paquistão (ISI), com mísseis Stinger e
outros modernos brinquedos fatais.
Depois da queda do império soviético chegou então o americano para, com
fogo e estrondo, vingar as Torres de Nova Iorque. Bin Laden escapou-lhes durante anos, escondido nas cavernas daquele
recanto da Ásia Central. Mas, uma
vez descoberto e liquidado o chefe jiadista, Washington quis continuar a
transladação das instituições da América para um país da Ásia Central que não
passava de uma colagem forçada de etnias, de tribos, de senhores da guerra, com
valores, códigos de ética e costumes que pouco tinham que ver com os ocidentais.
Foi
Bush que o começou a fazer mas Obama retomou a missão, usando e abusando de drones que
chegaram a matar por engano famílias inteiras de inocentes, inflamando o
descontentamento local.
Trump reafirmou
a presença americana no Afeganistão mas começou conversações para uma retirada
negociada com os insurgentes em Doha: a América e o mundo estavam fartos
daquelas guerras; as guerras a que dois pessimistas ocidentais, Edward Gibbon e
George F. Kennan, tinham chamado “guerras longínquas”, demoradas, ruinosas,
condenadas à derrota. Por isso Trump começara as negociações. Negociações que
Biden continuou e agora deu por concluídas.
O que está em causa perante a tragédia de Cabul não é o princípio da
saída; é a conclusão, o tempo e o modo da saída, a total confusão em que
aconteceu e está a acontecer a debandada. O
que é grave e nos pode e deve escandalizar é o tempo do anúncio da saída das
tropas, o modo impensado e patético do abandono de Bagram, há um mês, a
incapacidade de preparar e parar o avanço das colunas dos talibãs para Cabul,
por intimidação ou acção, permitindo uma evacuação ordenada dos americanos, dos
estrangeiros e dos colaboradores.
A
fragilidade do Exército afegão, tribalizado, dividido por linhas
clânicas e cheio de soldados de papel (porque
existiam só no papel) terá com certeza ajudado, mas não restam dúvidas de que a
tragédia afegã que agora vivemos vem sobretudo do modo catastrófico da retirada
americana. Daí
a crescente impopularidade de Biden nos Estados Unidos e a censura dos aliados,
expressa por Boris Johnson em Westminster, numa moção sem precedentes.
Senhores de antes e de depois dos
impérios
Entretanto,
e ainda que os senhores da guerra afegãos que pareciam decididos a combater
com as suas milícias a ofensiva dos talibãs (como Atta Mohamed Noor ou
Abdul Rashid Dostum, que no passado foram decisivos para os derrubar) tenham
fugido para o Uzebequistão, ainda há ilhas de resistência. Uma delas,
entroncando numa tradição de vinte anos, está no vale do Panshir, onde Ahmad
Shah Massoud,
resistente ao domínio dos fundamentalistas, foi assassinado nas vésperas do 11
de Setembro. Foi aí que,
na passada quarta-feira, 18 de Agosto, o seu filho, Ahmad Massoud, proclamou,
com o vice-presidente Amrullah Saleh, a sua vontade de resistir ao governo
de Cabul.
Assim, e depois da retirada dos
americanos, dos estrangeiros e dos afegãos mais comprometidos com os aliados
que conseguirem sair, esperam-se tempos duros e confusos de guerra civil,
tempos de ajuste de contas, de luta entre facções e clãs, de exílio, de fuga.
Tempos que existiram antes da chegada dos impérios e que vão subsistir para
além deles.
À procura do “bom talibã”
Ficamos perante as terríveis imagens que nos chegam. Terríveis pelas
realidades que mostram e pelas que não mostram. No Afeganistão, agora
abandonado pelo “imperialismo americano”, espera-se, realisticamente, o
regresso à Sharia e aos seus códigos e práticas, especialmente duros para as
mulheres, a quem foram dadas esperanças. E de
pouco servirá o voluntarismo de alguns comentadores e líderes políticos,
afanosamente à procura do “bom talibã” – do talibã pragmático, inclusivo e
aberto ao diálogo –, lembrando
em versão pouco lúcida o irrealismo lúcido de Eça de Queirós que, por
pouco saber do que se passava “dentro do Islão”, sempre admitia a hipótese de
estar erradamente a atribuir aos “fortes corações de Meca e do deserto os
cepticismos literários de Pall-Mall e do Boulevard de la Madeleine”.
A lição final deste fracasso é funda e cruel: os impérios que duraram – como o romano e o inglês –
tiveram como regra, dentro de um princípio geral de obediência ao poder central
e de manutenção da paz (imperium era também e sobretudo um espaço de paz),
o pragmático respeito pelas crenças, pelos costumes e pelas instituições dos
povos locais. O império ideológico e invisível norte-americano, durante a
Guerra Fria, teve também o realismo e o pragmatismo de, na coligação
anti-soviética, saber conviver com regimes, costumes e religiões diferentes.
Mas com o fim da Guerra Fria, e
por impulso da húbris ideológica neo-conservadora, Washington quis impor o
modelo americano por toda a parte. E quase sempre de forma voluntarista e
irrealista.
Em
Return of the Strong Gods: Nationalism, Populism, and the Future of the
West, R.R. Reno avança com uma
explicação: traumatizadas
por duas guerras que atribuíram aos “excessos de nacionalismo”, e sobretudo
àquilo em que o hitlerismo transformou o nacionalismo alemão, as elites
político-intelectuais do Ocidente quiseram eliminar da normalidade todas as
“lealdades fortes” e agregadoras do passado – a religião, a nação, a
moral tradicional – substituindo-as
por um pensamento único, baseado no individualismo extremo, na mão invisível do
mercado, no relativismo moral. E, sempre que esses “deuses fortes” emergiam
noutros povos ou territórios, tentaram vencê-los pelo progresso e pela técnica,
numa mistura de direitos humanos, napalm e drones.
20 anos depois
Que ao cumprirem-se 20 anos sobre o 11 de Setembro os que então albergaram
e protegeram os terroristas estejam outra vez no poder em Cabul, não é uma
constatação agradável para o “mundo livre”, que se debate agora com outros
fundamentalismos domésticos.
Com a saída do protector império
longínquo e com a incerteza interna, os Estados vizinhos do Afeganistão vão
preencher o vazio: o Paquistão, que
nunca deixou de estar presente no jogo, muitas vezes com ambiguidade, e que tem
de se proteger do jihadismo; a
Rússia, vizinha
das repúblicas da Ásia central de população muçulmana que agora são vizinhas
dos fundamentalistas; a China que, sem deixar de se congratular com a humilhação
do poder americano, tem também de se acautelar, não vão os fundamentalistas
islâmicos de Cabul querer ajudar os seus irmãos uighur.
Vinte anos depois, o legado do imperialismo cultural americano acaba
por ser terrível para aqueles que tentaram e acreditaram na mudança: para as mulheres
que começaram a estudar e a trabalhar; para as minorias sexuais perseguidas,
que ainda viram o fugaz esvoaçar da bandeira do arco-íris na embaixada
americana em Cabul, para os que colaboraram com Washington e, na
tremenda confusão da saída, foram apanhados de surpresa. Ficam
agora todos à mercê do pragmatismo, da vontade de inclusão e da capacidade de diálogo dos talibãs, em que os
nossos optimistas parecem acreditar – por convicção ou para sossegarem a
consciência.
41
Nenhum comentário:
Postar um comentário