domingo, 8 de agosto de 2021

Ociosidade em aparência


A Paula carrega – momentaneamente, espero – a sua depressão que, ao contrário de outros momentos de emagrecimento e rosto fechado, a tornam, desta vez, arrebatadamente loquaz e aplicada. Mas intimamente em desespero, sente-se, na designação que se atribui, de “sombra viajante” – eu diria antes, (com inveja), “caminheira” -, procurando vida nas fotos, que mostram uma realidade dos novos tempos – algumas idênticas - as dos pedestais, dos prédios pombalinos e das calçadas, outras divergindo das descritas por Cesário – as esplanadas vazias, das suas fotos abundantes, contrastando com as movimentações de final de dia no “primeiro andamento” – “Avé Marias” – dessa extraordinária sinfonia que é “O Sentimento dum Ocidental”. Uma cidade mais colorida, retratada em pleno dia de verão, calçadas com tapete vermelho criado, julgo, por alturas do início do confinamento, figuras sinistras – as pernas de um suposto homem e uma mulher penduradas de prédios, mas afinal, a mesma Rua do Alecrim que tantas vezes percorri em tempos de trabalho e de encantamento também, mais juvenil. No tempo de Cesário também não havia automóveis, nem marcos de sinalização, nem cigarros electrónicos ou coisa que o valha, no novo sistema com que a Paula substitui os anteriores de tabaco, do seu vício empedernido, fotografando “o monstro” actual, que tanto custa a manipular. Mas novamente o texto da Paula aponta a reflexão que também acode em Cesário - as “imorais em roupão” convertidas na delicada e humana reflexão sobre “A vida e os caminhos soltos”, que “por vezes, formam um círculo fechado”.

Um texto encantador, acompanhado de expressivas fotos, belo quadro citadino e simultaneamente de reflexão humanística, a pretender ser um pouco humorística, mas decididamente triste, acompanhado de fotos que nos fizeram reviver tempos de outras glórias. Assim, dedico à Paula, em harmonia, a estrofe final de “O Sentimento dum Ocidental”, essa “sinfonia em quatro andamentos” de um poeta tão lucidamente sensível, que foi Cesário Verde:

 

«E, enorme, nesta massa irregular

De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,

A Dor humana busca os amplos horizontes,

E tem marés, de fel, como um sinistro mar!»

 

O texto do facebook da Paula:

«A sombra viajante foi à Rua da Rosa, Bairro Alto. É sina. Já ninguém liga. Mas hoje veio pela rua do Alecrim, por outro percurso. Apetecia-lhe as estátuas dos seus escritores favoritos. Começou, de forma artística, mesmo em frente e à porta do dentista! É bom, ver o nunca visto: a padaria tradicional em obras de recuperação, já há algum tempo, a padaria erótica a nascer. Caminho feito de cigarros que não obedecem, café nos bancos à espera, pastéis de nata a descansar, olho à frente e atrás da máquina, guloso. A sombra não entrou em hotéis, mas parou para observar a Rua do Amor. A vida e os caminhos soltos, por vezes, formam um círculo fechado. »

« (As fotos estão na ordem inversa, para variar)»

 


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