quinta-feira, 26 de agosto de 2021

Explosões em Cabul


Que Joe Biden afirma não ir perdoar e a ver vamos o que vai seguir-se. Entretanto, uma comparação inusitada com o que nas Áfricas se passou aquando das descolonizações, segundo um comentador do texto de Paulo Tunhas. Guerras civis, vencidas pelos grupos nos governos, e ninguém se preocupou com esses, na altura, porque a democracia ainda era meio desconhecida, mas a verdade é que se estendeu a mão a muitos desses africanos que tinham o direito à sua paz, pois nos pertenceram e ajudaram antes das independências. Bem pena tenho do meu Salvador e do Finias, que ficaram por lá, sabe-se lá em que condições… Agora, que todos sabem que as democracias ocidentais é que estão a dar – apoios e liberdades e mais respeito humano, apesar dos atropelos, toda a gente quer estender a mão aos afegãos em fuga, a troco de euros, mas ainda bem, apesar das posições contrárias que Paulo Tunhas analisa, segundo os conceitos idealista ou realista da posição de Biden.

REALISTAS, IDEALISTAS E BIDEN /PREMIUM

A perda da inteligência emocional diminui grandemente a faculdade de julgar: Biden faz cálculos trôpegos, com toda a obstinação da falta de convicção.

PAULO TUNHAS

OBSERVADOR, 26 ago 2021, 07

Tenho alguma dificuldade – uma dificuldade que não diminuiu nada por estes dias – em entender como é que se pode, face ao que acontece na sociedade, ou na política internacional, sacar do bolso uma doutrina impecável que é suposta resolver tudo. Por causa da entrega americana do Afeganistão à sua triste sorte, saltaram logo da toca, a pregar lições ao mundo, por essa terra fora, adeptos de duas escolas de pensamento muito distintas e opostas: os realistas e os idealistas. Os realistas afirmam em geral que Joe Biden fez muito bem em criar a presente confusão, porque a continuação da guerra era contrária aos interesses dos Estados Unidos. Os idealistas, por seu turno, criticam a decisão em nome dos laços internos que ligam todos os povos e da obrigação de proteger os direitos humanos sempre que eles estão ameaçados.

O que me surpreende não são tanto as posições particulares a cada escola de pensamento como a facilidade com que se passa de teorias muito limpinhas e muito coerentes para a realidade sem sequer ter um vislumbre de que, nas coisas humanas, ao contrário do que se passa com os objectos de que, por exemplo, a física se ocupa, há um abismo a separar a teoria da realidade. E esse abismo devia interditar que se aplique a teoria quase automaticamente, como se a realidade lhe devesse obedecer por inteiro. Não obedece. O mesmo acontece em ética. Peguem em qualquer sistema de ética e facilmente verão que, se aplicado integralmente de forma coerente, conduz, por óptimo que seja, a consequências perfeitamente indesejáveis.

Há uma razão boa para que assim seja. A realidade humana – aquilo a que um filósofo chamava o domínio da liberdade – não é determinável como um objecto daquilo que o mesmo filósofo chamava o domínio da natureza. Há, é claro, maneiras mais ou menos rigorosas de sobre ela pensar, conceitos mais ou menos profícuos, mas em nenhum caso temos em relação a ela a possibilidade de uma exactidão comparável àquela que temos em física. Vale a pena utilizar aqui uma palavra-chave do jargão filosófico: a ontologia, o modo de ser, da sociedade não é o mesmo que o da natureza. Querem a mais simples das provas? Comparem a “desrazoável eficácia”, como alguém disse, da matemática na sua aplicação ao estudo dos fenómenos naturais à sua utilização no estudo dos fenómenos sociais. A realidade social contém em si uma indeterminação muito maior do que a realidade natural. A história, enquanto disciplina, relata-nos as múltiplas aventuras dessa indeterminação.

Ou, analisando a mesma questão de um outro ponto de vista, o lugar da contingência é muito maior no primeiro do que no segundo caso. Não é que não se possam determinar nas sociedades tendências, mais claras ou mais obscuras, para evoluções num determinado sentido, algumas delas apresentando quase uma necessidade parente da dos fenómenos naturais. Mas, mesmo nesses casos mais radicais, há sempre a possibilidade de, através da arte humana, contrariar, pelo menos parcialmente, tais tendências, seja através de um processo de acomodação, seja por meio de algo como uma sua superação.

É por causa dessa indeterminação do mundo humano e pelo papel que nele ocupa a contingência que me parece absurda a confiança com que se pretende decretar o que devia ter sido feito no Afeganistão com base em teorias gerais que só muito imperfeitamente se adequam à realidade. Não são o realismo e o idealismo que são absurdos – ambos têm pontos a seu favor —, o que é absurdo, como disse, é a confiança neles depositada. Em geral e, agora, especificamente no caso do Afeganistão. Dado haver uma parte de verdade nas duas escolas de pensamento – como há uma parte de verdade nas éticas utilitaristas e nas éticas deontológicas —, qualquer deliberação conducente à formação de um juízo político deve pesar muito bem todos os aspectos da situação concreta.

Por exemplo, anda na moda – enfim, sempre andou… — condenar a ideia de nation building dos chamados “neoconservadores” (em muitos casos, uma designação errada) dos tempos de George W. Bush. E é verdade que o idealismo (utilizo o termo na acepção que ele tem em teoria das relações internacionais) que presidia à sua atitude pôde ter várias consequências nefastas (digo “várias” porque não creio que todas o tenham sido, longe disso). Mas também é verdade que a ideia de fundar um regime que respeite os direitos humanos, assente na convicção na universalidade desses mesmos direitos humanos, é uma ideia que dificilmente pode ser recusada invocando princípios absolutos ou recorrendo a slogans do género “as democracias não se criam com bombas” (uma proposição, de resto, obviamente falsa em vários casos).

Mutatis mutandis, o mesmo se aplica à decisão realista (utilizo mais uma vez a expressão no sentido que ela tem em teoria das relações internacionais) tomada por Joe Biden de retirar todas as forças americanas do Afeganistão. De facto, se se conclui que a sua presença lá se revela contrária ao interesse dos Estados Unidos, a decisão goza de uma legitimidade plena e não há princípios abstractos que tenham força para a rejeitar liminarmente.

Não é, portanto, recorrendo a teorias gerais, que magicamente se aplicariam à realidade como uma luva, que as decisões nestas matérias podem ser condenadas. É apelando simultaneamente a vários critérios, eventualmente contraditórios, e correndo o risco da inconsistência, e sem estar constantemente a brandir a danada bandeira dos princípios, neste caso do realismo e do idealismo. Ajuda, é claro, ter aquilo que os médicos hipocráticos entendiam ser a experiência de um “tacto fino” e o que Kant apelidavafaculdade de julgar”. Sem uma ou outra, e sem a inteligência emocional que as deve acompanhar, os princípios são entidades nocivas e promissoras de fracasso.

Que a retirada do Afeganistão tem sido catastrófica e de uma impreparação à prova de bala, salta aos olhos. Fura os olhos, como se diz em francês. Sobre isso, não resta dúvida, e uma parte do presente caos e horror deve-se a essa colossal impreparação. Mas a própria ideia da retirada, por motivos que Tony Blair explicou melhor do que ninguém, é também, pesadas todas as coisas, errada. Quer em termos idealistas, quer em termos realistas. Em termos idealistas, porque vai contra a intuição, pela maioria de nós partilhada, que há uma continuidade da experiência humana que sobrevive às descontinuidades culturais e que a devemos tentar preservar, o que significa, entre outras coisas, defender os direitos humanos onde eles estão em perigo. Em termos realistas, porque a presença das tropas americanas, mesmo em baixo número (e o seu número já era baixo), contribuía para que a ameaça do terrorismo islâmico fosse, numa certa medida, contida. Quer dizer que, num grau ou noutro, o interesse dos Estados Unidos não parece protegido com esta retirada, antes pelo contrário.

Aparentemente, Biden não teve em consideração nenhum dos dois aspectos. É verdade que ele parece cada vez mais destituído de inteligência emocional, o que, em parte, se pode atribuir à velhice. Com a idade – toleravelmente em certos casos, tendendo para o péssimo noutros —, vamos perdendo certa disponibilidade emocional, o que se percebe, já que o corpo se degrada e arrasta o espírito consigo. E a perda da inteligência emocional diminui grandemente a faculdade de julgar: Biden faz cálculos trôpegos, com toda a obstinação da falta de convicção. Já agora, diminui também a capacidade de se exprimir convenientemente. De facto, parece por vezes que tenta adaptar a técnica literária do cut-up (uma técnica desenvolvida pelo escritor William Burroughs nos anos 60, que consiste em recortar passagens de prosa já escrita, juntando-as depois numa ordem aleatória) à retórica política. Nas entrevistas, sem precisar de papel e tesoura, o sucesso é indisputável, produzindo sequências do tipo: “Os talibãs – A minha mulher disse – Olhe… – Só a América – Trump – Onde está o almoço? – Nada a ver com Saigão — Isso foi há cinco dias – Sejamos claros – Olhe… — A ideia – Olhe, George… – Vinte anos – Corn flakes – O aeroporto — A escolha é simples – Ray Ban — Foi o que aconteceu”. Fascinating!, como diz, na CNN, à média de cinco vezes por programa, Fareed Zakaria. Mas duvido que os afegãos apreciem por aí além esta nova contribuição para a retórica. E que os americanos, se pensarem bem, tenham muitos motivos para a admirar.

Não estou a dizer que Biden está xexé. Mas falta-me pouco para o pensar. Somando tudo, é a melhor das possibilidades.

AFEGANISTÃO  MUNDO  JOE BIDEN  ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA  AMÉRICA

COMENTÁRIOS:

Francisco Tavares de Almeida: Sem desmerecer o artigo, discordo da consideração de permanecer no Afeganistão nos moldes existentes. Para isso ser possível, seria necessário reforçar o dispositivos militar e, sobretudo, aumentar a ajuda directa, com mobilização de civis, professores, engenheiros, especialistas de administração, etc., o que seria politicamente inviável. Com os erros e excepções de todas as simplificações, os talibã são maioritariamente do grupo étnico "pashtun" e ocuparam sem esfoço o sul e leste, de onde eram originários. Graças às políticas americanas militares e outras, esse grupo não deixou de crescer e, assim que os americanos saíram de Bagram e deixaram de usar meios aéreos contra eles, logo conquistaram cidades não "pashtun" o que não tinham conseguido em séculos de guerras tribais (Kunduz, Mazar-i-Sharif, Herat, Jalalabad).

Fora do domínio talibã, os diversos que de alguma forma tinham aceite valores ocidentais (onde se viam mulheres a estudar e trabalhar) os Hazaras, uma etnia que ocupa as montanhas centrais e o conjunto de tribos que "grosso modo" constituíram a Aliança do Norte. Sendo claro que os "ocidentalizados" não serão uma mais-valia militar e que os Hazaras, tiveram uma postura essencialmente defensiva não mostrando grande disponibilidade para sair da sua região, fica como única possibilidade de luta contra os talibã a Aliança do Norte.

O problema é que a permanência do Ocidente no Afeganistão por motivos éticos, obrigaria à cooperação com a Aliança do Norte, ume teia tenebrosa de contrabandistas de ópio e agressores sexuais em série. Ou seja, liquidava liminarmente quaisquer pruridos éticos.

Francisco Tavares de Almeida: Se já não a tivesse, Paulo Tunhas teria ganho todo o meu respeito e admiração por este artigo. Isto dito, tenho mais dúvidas do que Paulo Tunhas quanto ao Afeganistão. Nada tenho contra o "nation building" dos "neocons" mas tenho tudo contra a imposição da democracia (voto directo, universal e secreto) quando não existe nação. Assistimos em África e na Ásia a genocídios e tentativas sobre minorias que não podiam ganhar eleições. Conheci a Guiné-Bissau, onde "grosso modo" existiam 30 a 32 etnias e 28 a 29 línguas diferentes. O Afeganistão tem sensivelmente o dobro, salvo erro 59 diferentes línguas.

Observei, já à distância mas interessado, a tentativa do gen Spínola com os Congressos do Povo, uma assembleia anual de chefes étnicos e tribais que, sem a iniciativa e suporte da administração portuguesa, com raras excepções jamais se sentariam e discutiriam juntos. Sem pôr em causa a arquitectura social existente, acho que foi um enorme passo no sentido de construir uma nação. Infelizmente foram apenas dois e os acontecimentos pós 1974 atropelaram essa iniciativa. Não houve assim tempo para uma avaliação mas, na mediada em que o segundo superou em muito o primeiro, parecia um caminho promissor e, em princípio, podia ter sido tentado no Afeganistão. Como já aqui escrevi, Biden retirou como o MFA descolonizou. Arrisco a previsão de que o resultado será o mesmo, isto é, guerra civil.

 

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