Que Joe Biden afirma não ir perdoar e a ver vamos o que vai
seguir-se. Entretanto, uma comparação inusitada com o que nas Áfricas se passou aquando das descolonizações, segundo um
comentador do texto de Paulo Tunhas. Guerras civis, vencidas pelos
grupos nos governos, e ninguém se preocupou com esses, na altura, porque a
democracia ainda era meio desconhecida, mas a verdade é que se estendeu a mão a
muitos desses africanos que tinham o direito à sua paz, pois nos pertenceram e
ajudaram antes das independências. Bem pena tenho do meu Salvador e do Finias, que ficaram por lá,
sabe-se lá em que condições… Agora, que todos sabem que as democracias
ocidentais é que estão a dar – apoios e liberdades e mais respeito humano,
apesar dos atropelos, toda a gente quer estender a mão aos afegãos em fuga, a troco de euros, mas ainda bem, apesar das posições contrárias que Paulo Tunhas analisa, segundo os conceitos idealista
ou realista da posição de Biden.
REALISTAS, IDEALISTAS E BIDEN /PREMIUM
A perda da inteligência emocional diminui grandemente a
faculdade de julgar: Biden faz cálculos trôpegos, com toda a obstinação da
falta de convicção.
PAULO TUNHAS
OBSERVADOR, 26 ago
2021, 07
Tenho
alguma dificuldade – uma dificuldade que não diminuiu nada por estes dias – em
entender como é que se pode, face ao que acontece na sociedade, ou na política
internacional, sacar do bolso uma doutrina impecável que é suposta
resolver tudo. Por causa
da entrega americana do Afeganistão à sua triste sorte, saltaram logo da toca,
a pregar lições ao mundo, por essa terra fora, adeptos de duas escolas de
pensamento muito distintas e opostas: os realistas e os idealistas. Os realistas afirmam
em geral que Joe Biden fez muito bem em criar a presente confusão, porque a
continuação da guerra era contrária aos interesses dos Estados Unidos. Os idealistas, por seu turno, criticam a decisão em
nome dos laços internos que ligam todos os povos e da obrigação de proteger os
direitos humanos sempre que eles estão ameaçados.
O
que me surpreende não são tanto as posições particulares a cada escola de
pensamento como a facilidade com que se passa de teorias muito limpinhas e
muito coerentes para a realidade sem sequer ter um vislumbre de que, nas
coisas humanas, ao contrário do que se passa com os objectos de que, por
exemplo, a física se ocupa, há um abismo a separar a teoria da realidade. E
esse abismo devia interditar que se aplique a teoria quase automaticamente, como se a
realidade lhe devesse obedecer por inteiro. Não obedece. O mesmo acontece em ética. Peguem em qualquer sistema de ética e facilmente
verão que, se aplicado integralmente de forma coerente, conduz, por óptimo que
seja, a consequências perfeitamente indesejáveis.
Há uma razão boa para que assim seja. A realidade humana – aquilo a que um filósofo chamava o domínio
da liberdade – não é determinável como um objecto daquilo que o
mesmo filósofo chamava o domínio da natureza. Há, é claro, maneiras mais ou menos rigorosas de
sobre ela pensar, conceitos mais ou menos profícuos, mas em nenhum caso temos
em relação a ela a possibilidade de uma exactidão comparável àquela que temos
em física. Vale a pena utilizar aqui uma palavra-chave do jargão filosófico:
a ontologia, o modo de ser, da sociedade não é o mesmo
que o da natureza. Querem a mais
simples das provas? Comparem a “desrazoável eficácia”, como alguém disse, da
matemática na sua aplicação ao estudo dos fenómenos naturais à sua utilização
no estudo dos fenómenos sociais. A realidade social contém em si uma
indeterminação muito maior do que a realidade natural. A
história, enquanto
disciplina, relata-nos as múltiplas aventuras dessa indeterminação.
Ou,
analisando a mesma questão de um outro ponto de vista, o lugar da contingência é muito maior no primeiro do
que no segundo caso. Não é que
não se possam determinar nas sociedades tendências, mais claras ou mais
obscuras, para evoluções num determinado sentido, algumas delas apresentando
quase uma necessidade parente da dos fenómenos naturais. Mas, mesmo nesses
casos mais radicais, há sempre a possibilidade de, através da arte humana,
contrariar, pelo menos parcialmente, tais tendências, seja através de um
processo de acomodação, seja por meio de algo como uma sua superação.
É por causa dessa indeterminação do
mundo humano e pelo papel que nele ocupa a contingência que me parece absurda a
confiança com que se pretende decretar o que devia ter sido feito no
Afeganistão com base em teorias gerais que só muito imperfeitamente se adequam
à realidade. Não são o
realismo e o idealismo que são absurdos – ambos têm pontos a seu favor —, o que
é absurdo, como disse, é a confiança neles depositada. Em geral
e, agora, especificamente no caso do Afeganistão. Dado haver uma parte de verdade nas duas escolas de
pensamento – como há uma parte de verdade nas éticas utilitaristas e nas éticas
deontológicas —, qualquer deliberação conducente à formação de um juízo
político deve pesar muito bem todos os aspectos da situação concreta.
Por
exemplo, anda na moda – enfim, sempre andou… — condenar a ideia de nation
building dos chamados “neoconservadores” (em muitos casos, uma designação
errada) dos tempos de George W. Bush. E é verdade que o idealismo (utilizo
o termo na acepção que ele tem em teoria das relações internacionais) que
presidia à sua atitude pôde ter várias consequências nefastas (digo “várias”
porque não creio que todas o tenham sido, longe disso). Mas também é verdade
que a ideia de fundar um regime que respeite os direitos
humanos, assente na convicção na universalidade desses mesmos direitos humanos,
é uma ideia que dificilmente pode ser recusada invocando princípios absolutos
ou recorrendo a slogans do género “as democracias não se criam com bombas” (uma
proposição, de resto, obviamente falsa em vários casos).
Mutatis
mutandis, o mesmo se aplica à decisão
realista (utilizo
mais uma vez a expressão no sentido que ela tem em teoria das relações
internacionais) tomada por Joe Biden de retirar todas as forças
americanas do Afeganistão. De facto, se se conclui que a sua presença lá se
revela contrária ao interesse dos Estados Unidos, a decisão goza de uma
legitimidade plena e não há princípios abstractos que tenham força para a
rejeitar liminarmente.
Não
é, portanto, recorrendo a teorias gerais, que magicamente se aplicariam à
realidade como uma luva, que as decisões nestas matérias podem ser condenadas. É apelando simultaneamente a vários critérios,
eventualmente contraditórios, e correndo o risco da inconsistência, e sem estar
constantemente a brandir a danada
bandeira dos princípios, neste caso
do realismo e do idealismo. Ajuda, é claro, ter aquilo que os médicos
hipocráticos entendiam ser a experiência de um “tacto fino” e o que Kant apelidava “faculdade
de julgar”. Sem uma ou outra, e sem a inteligência emocional que as deve
acompanhar, os princípios são entidades nocivas e promissoras de fracasso.
Que
a retirada do Afeganistão tem sido catastrófica e de uma impreparação à prova
de bala, salta aos olhos.
Fura os olhos, como se diz em francês. Sobre isso, não resta dúvida, e uma
parte do presente caos e horror deve-se a essa colossal impreparação. Mas a
própria ideia da retirada, por motivos que Tony Blair explicou melhor do que
ninguém, é também, pesadas todas as coisas, errada. Quer em
termos idealistas, quer em termos realistas. Em termos
idealistas, porque vai contra a intuição, pela maioria de nós partilhada, que
há uma continuidade da experiência humana que sobrevive às descontinuidades culturais
e que a devemos tentar preservar, o que significa, entre outras coisas,
defender os direitos humanos onde eles estão em perigo. Em termos realistas, porque a presença das tropas americanas, mesmo
em baixo número (e o seu número já era baixo), contribuía para que a ameaça do
terrorismo islâmico fosse, numa certa medida, contida. Quer dizer que, num grau
ou noutro, o interesse dos Estados Unidos não parece protegido com esta
retirada, antes pelo contrário.
Aparentemente, Biden não teve em consideração nenhum dos dois
aspectos. É verdade que ele parece cada vez
mais destituído de inteligência emocional, o que, em parte, se pode atribuir à
velhice. Com a idade – toleravelmente em certos casos, tendendo para o péssimo
noutros —, vamos perdendo certa disponibilidade emocional, o que se percebe, já
que o corpo se degrada e arrasta o espírito consigo. E a perda
da inteligência emocional diminui grandemente a faculdade de julgar: Biden faz
cálculos trôpegos, com toda a obstinação da falta de convicção. Já agora, diminui também a capacidade de se
exprimir convenientemente. De facto, parece por vezes que tenta adaptar a técnica
literária do cut-up (uma
técnica desenvolvida pelo escritor William Burroughs nos anos 60, que consiste
em recortar passagens de prosa já escrita, juntando-as depois numa ordem
aleatória) à retórica política. Nas entrevistas, sem precisar de
papel e tesoura, o sucesso é indisputável, produzindo sequências do tipo: “Os
talibãs – A minha mulher disse – Olhe… – Só a América – Trump – Onde está o
almoço? – Nada a ver com Saigão — Isso foi há cinco dias – Sejamos claros –
Olhe… — A ideia – Olhe, George… – Vinte anos – Corn flakes – O aeroporto — A
escolha é simples – Ray Ban — Foi o que aconteceu”. Fascinating!, como
diz, na CNN, à média de cinco vezes por programa, Fareed Zakaria. Mas
duvido que os afegãos apreciem por aí além esta nova contribuição para a
retórica. E que os americanos, se pensarem bem, tenham muitos motivos para a
admirar.
Não estou a dizer que Biden está
xexé. Mas falta-me pouco para o pensar. Somando tudo, é a melhor das
possibilidades.
AFEGANISTÃO MUNDO JOE BIDEN ESTADOS
UNIDOS DA AMÉRICA AMÉRICA
COMENTÁRIOS:
Francisco Tavares
de Almeida: Sem desmerecer
o artigo, discordo da consideração de permanecer no Afeganistão nos moldes
existentes. Para isso ser possível, seria necessário reforçar o dispositivos
militar e, sobretudo, aumentar a ajuda directa, com mobilização de civis,
professores, engenheiros, especialistas de administração, etc., o que seria
politicamente inviável. Com os erros e excepções de todas as simplificações, os
talibã são maioritariamente do grupo étnico "pashtun" e ocuparam sem
esfoço o sul e leste, de onde eram originários. Graças às políticas americanas
militares e outras, esse grupo não deixou de crescer e, assim que os americanos
saíram de Bagram e deixaram de usar meios aéreos contra eles, logo conquistaram
cidades não "pashtun" o que não tinham conseguido em séculos de guerras
tribais (Kunduz, Mazar-i-Sharif, Herat, Jalalabad).
Fora
do domínio talibã, os diversos que de alguma forma tinham aceite valores
ocidentais (onde se viam mulheres a estudar e trabalhar) os Hazaras, uma etnia
que ocupa as montanhas centrais e o conjunto de tribos que "grosso
modo" constituíram a Aliança do Norte. Sendo claro que os
"ocidentalizados" não serão uma mais-valia militar e que os Hazaras,
tiveram uma postura essencialmente defensiva não mostrando grande disponibilidade
para sair da sua região, fica como única possibilidade de luta contra os talibã
a Aliança do Norte.
O problema é que a permanência do
Ocidente no Afeganistão por motivos éticos, obrigaria à cooperação com a
Aliança do Norte, ume teia tenebrosa de contrabandistas de ópio e agressores
sexuais em série. Ou seja, liquidava liminarmente quaisquer pruridos éticos.
Francisco Tavares de Almeida: Se
já não a tivesse, Paulo Tunhas teria ganho todo o meu respeito e admiração por
este artigo. Isto dito, tenho mais dúvidas do que Paulo Tunhas quanto ao
Afeganistão. Nada tenho
contra o "nation building" dos "neocons" mas tenho tudo
contra a imposição da democracia (voto directo, universal e secreto) quando não
existe nação. Assistimos em África e na Ásia a genocídios e tentativas sobre
minorias que não podiam ganhar eleições. Conheci a Guiné-Bissau, onde "grosso modo"
existiam 30 a 32 etnias e 28 a 29 línguas diferentes. O Afeganistão tem
sensivelmente o dobro, salvo erro 59 diferentes línguas.
Observei,
já à distância mas interessado, a tentativa do gen Spínola com os Congressos do
Povo, uma assembleia anual de chefes étnicos e tribais que, sem a iniciativa e
suporte da administração portuguesa, com raras excepções jamais se sentariam e
discutiriam juntos. Sem pôr em causa a arquitectura social existente, acho que
foi um enorme passo no sentido de construir uma nação. Infelizmente foram
apenas dois e os acontecimentos pós 1974 atropelaram essa iniciativa. Não houve
assim tempo para uma avaliação mas, na mediada em que o segundo superou em
muito o primeiro, parecia um caminho promissor e, em princípio, podia ter sido
tentado no Afeganistão. Como já aqui escrevi, Biden retirou como o MFA
descolonizou. Arrisco a previsão de que o resultado será o mesmo, isto é,
guerra civil.
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