Laços que se criam - dantes recusaram-se - com estas fugas e um ocidente amistoso e permissivo, até mesmo, provavelmente, aos fundamentalismos impostos pelas sharias islâmicas, que o Ocidente acolhe, para a globalização democrática, mais mansa a atitude da Igreja Católica, mais severa a Comunidade Ortodoxa Russa… Um texto de bastante interesse, o seguinte, do teólogo Alexandre Freire Duarte.
Olhares
do Afeganistão com a ortodoxia russa
A comunidade Ortodoxa Russa, embora
cada vez mais missionária, não tem visto com bons olhos a presença de grupos
religiosos que possam colocar em causa a sua actividade e prestígio na
sociedade russa.
ALEXANDRE FREIRE
DUARTE, Teólogo católico, investigador do CEHR-UCP
OBSERVADOR, 31 ago
2021,
Não sou um especialista em política
internacional, nem em conflitos bélicos, nem em relações internacionais, nem em
geoestratégia, etc. Sou apenas um teólogo católico, também interessado,
devido aos meus estudos relacionados com a espiritualidade e a mística cristã
ortodoxa, na comunidade Ortodoxa Russa (cOR). É enquanto tal, e somente
enquanto tal, que escrevo estas palavras.
Poder-se-á
perguntar o motivo de eu não dar atenção ao Afeganistão a partir da óptica do
Catolicismo. O motivo é
simples: estimo que as pessoas que falam o idioma português (e que
compreensivelmente configuram o público-alvo mais expectável do Observador) já
conhecem, ou podem vir a conhecer facilmente, a posição da Igreja Católica
sobre a actual situação, até mesmo dentro do quadro mais vasto da “crise
mundial de refugiados”. Já o que a cOR pensa, igualmente devido à sua mais
íntima e dolorosa ligação histórica aos povos da ex-URSS que intervieram
militarmente no Afeganistão, sobre o que se vive presentemente, seja neste
último país, seja em resultado disso noutras coordenadas, será mais
desconhecido e, assim, quiçá mais relevante de ser tratado.
Posto
isto, e para que ulteriormente possam ser feitos contrapontos, talvez não seja
despiciente recordar o essencial da posição da Igreja Católica.
Rejeitando,
ao contrário de tantas outras instâncias, ignorar e não nomear o “elefante”
que também se encontra subjacente ao que se passa no Afeganistão – o Islão –,
a Igreja Católica estima que o
diálogo é o único
caminho trilhável para a paz e a segurança do povo afegão. Este
diálogo deve pautar-se, do lado católico, por três esteios fundamentais. Em primeiro lugar, estar totalmente desprovido de interesses
proselitistas. Em segundo
lugar, ser vivido em linha de uma fraternidade humana global. Por fim, estar
firmemente baseado em duas
convicções diversas
vezes manifestadas pelo Papa Francisco, as quais, embora não sejam magisteriais
– nem obrigatórias, definitivas ou infalíveis –, são muito importantes. A
saber: que nada no Islão convida ao terrorismo e que o verdadeiro
Islão e a leitura correcta do Corão implicam uma oposição franca a todas as
formas de violência (cf. Evangelii
gaudium 253).
A
partir da moldura entretecida por esses três esteios, a Igreja Católica
afirma corajosamente que o acolhimento de migrantes e refugiados não deve ser
encarado por ninguém com receio ou hostilidade, antes com uma franca e calorosa
bondade compassiva. A juntar a isto, os cristãos católicos devem mover-se
talqualmente por um franco espírito evangélico repleto de amor incondicional,
de discernida hospitalidade integrada, de apoio dignificante e de promoção
humana respeitadora da diferença que enriquece.
Avançando para a abordagem à posição
da cOR, é de se ter logo em conta que a relação entre aquela e as autoridades
civis russas é deveras marcante e intensa.
Em última análise, essa relação não se pauta tanto por ser entre a religião e o
Estado, antes, e na linha da sumphônia do Imperador romano-bizantino
Justiniano I, entre a religião e a política dentro do Estado. Sendo assim, esse instável equilíbrio de forças,
vigente dentro de uma mais alargada moldura estatal, configura como que uma via
media entre duas atitudes que se encontram em planos opostos.
Quais são essas duas disposições? De um
lado, temos a aguda e saudável aceitação da separação, no Ocidente, da religião
face ao Estado. Uma
aceitação decorrente, nomeadamente, quer das diferentes ondas de laicidade e
secularidade socioculturais provindas desde a Aufklärung, quer do tardio ressourcement
católico, que, de modos distintos, sublinham a autonomia entre o “dar a César”
e o “dar a Deus”. Do outro
lado, e apesar de distintos intentos ocidentais de exportação de uma tal
desvinculação, encontramos o frequente vir ao de cima, nos países que se
identificam como islâmicos e onde se estima que o maior
César é a própria divindade muçulmana, da matriz maometana da associação entre
o político, o religioso e o militar.
A
história da Rússia, mesmo marcada pela barbárie radicalmente ateia do regime
soviético, não
permite que a realidade seja outra, e o povo russo reconhece, ainda e
geralmente, a função da cOR na progressiva e actual configuração da sua
identidade nacional. Daqui resulta uma ligação assaz simbiótica entre um
sistema governamental, que se serve da cOR como pilar de unidade e de
estabilidade para a consolidação de uma sua acção querida como omniabarcante, e
uma cOR, endógena e primigenamente vinculada a nível geográfico ao território
russo, que utiliza aquele sistema de governo como meio de preservação e
incremento do seu papel e pertinência.
Não
deve espantar, pois, o facto de a administração russa estimar que o “dar a
Deus” passa igualmente pelo “dar a César”, ou, como já é assaz comum ler-se,
que César e Deus são parceiros no mais amplo entendimento anfibológico de tal
governo. Tampouco a surpresa deve surgir quando se vê tal governação
defender a teologia da cOR, mediante, por exemplo, o criticar da teologia
ocidental – Sergey Lavrov, em Junho deste ano, fez isto mesmo, quando disse que tal
teologia postula um Cristo bissexual e não-binário. E
criticá-la, sobretudo quando se trata de defender hibridamente as ancestrais
prerrogativas do Patriarcado de Moscovo face às crescentes ambições
autocéfalas, mas próximas das aspirações e dinâmicas do Patriarcado de
Constantinopla, das comunidades ortodoxas na Ucrânia, Bielorrússia, Moldávia e
Roménia.
Em
sentido inverso, não é de se estranhar a comum, e muito visível, bênção
religiosa realizada pela cOR às façanhas militares russas, aos membros das
Forças Armadas Russas e até às armas destas (algo que, embora seja palidamente
semelhante à acção das múltiplas dioceses castrenses ocidentais, depara-se com
diferenças muito mais substanciais, também devido a diferentes tradições
teológicas). Mais: nada de admiração, sequer, com o cuidado extremo
evidenciado pela cúpula da cOR em apoiar, não só genericamente a vacinação
contra a Covid-19, mas o próprio plano governamental concreto de vacinação
em todas as suas diversas componentes. Um apoio que, no entanto, não tem
sido partilhado por algumas figuras carismáticas da cOR (como o arquimandrita
Porfiry Shutov), ainda agastadas pelas limitações impostas pelo governo a
certas expressões religiosas tão queridas ao povo russo.
Após
o fim do regime soviético – também antecipado pela celebração estatal, em 1988,
do milénio do Cristianismo na Rússia –, a grande preocupação da cOR, então
impulsionada pelo Patriarca de Moscovo, o aristocrata Aleksy II, foi a de
restaurar o seu património imóvel. Encontramo-nos aqui com algo
circunstancialmente análogo ao que aconteceu com as comunidades islâmicas dos
Balcãs, depois do começo da fragmentação da Jugoslávia. Enquanto os apoios
ocidentais eram usados na (re)edificação de estruturas médicas, culturais e
educativas, os apoios islâmicos penderam para a (re)construção e
multiplicação de mesquitas. Ou seja:
visaram a proliferação de centros nuclearmente religiosos que pudessem servir
de focos de irradiação de uma mundividência que moldasse o modo como
aqueloutras estruturas acabariam por ser utilizadas.
Já
com a acção do actual Patriarca de Moscovo, o eclesiástico Kiril, o foco da
acção da cOR, embora não tenha abandonado totalmente os propósitos definidos
por Aleksy II, passou a estar particularmente dedicada à clarificação dos
fundamentos da cOR – basta ler o texto “Fundamentos das concepções sociais da
Igreja Ortodoxa Russa” –, à internetização desta e à formação de mais clero. Recusando a
participação pessoal dos sacerdotes e monges da cOR no processo político, a cOR
não abdicou de fazer ouvir, cada vez mais, a sua voz, procurando persuadir
acerca do seu irrefragável encargo histórico, moral e social. Como reflexo do sucesso disto mesmo, pode apontar-se
o facto de Vladimir
Putin, fazendo eco à generalidade das
aspirações do povo russo, ter logrado colocar, em 2020 e na Constituição Russa
então revista, a afirmação da crença em Deus como realidade intrínseca à
consciência da Federação Russa.
Atentos
necessariamente à complexa realidade vivida no Cáucaso do Norte e à memória dos
militares mortos no Afeganistão e na Síria, nem o governo russo, nem a cOR
desconhecem os problemas decorrentes de possíveis migrações de refugiados
afegãos. Desde logo, não escamoteiam a realidade de que 99% dos afegãos
apoia a aplicação da sharia (lei islâmica) e ninguém deseja que tal aplicação
não seja estrita, excepto quem quer infringir a mesma. Seria algo como
acreditar que alguém, além dos culpados e das eventuais pessoas mais chegadas
aos mesmos, iria querer uma não rigorosa implementação da lei penal em
Portugal.
Ou
seja: nem a cOR nem o governo russo ignoram que tais migrantes iriam colocar
problemas à estrutura social mais alargada em que se iriam inserir. Problemas
variados e de monta, inclusive quando, no limite, se pudesse acreditar que
no meio desses migrantes, porventura motivados pelo ditame religioso islâmico
da deslocação territorial para se levar a cabo a dawa (proselitismo religioso),
não se encontrariam terroristas quiçá inspirados pelas seguintes palavras
atribuídas a Maomé: «Tornar-me-ei
vitorioso pelo terror.» (Sahih
al-Bukhari 2977)
Ante
essas problemáticas, a resolução das mesmas teria que passar, na melhor das
hipóteses, pela escolha do menor de duas soluções.
Ou
a rejeição e, acaso, a possível repressão das aspirações dos migrantes afegãos
por um Islão puramente ortodoxo e ortodoxamente interpretado – razão pela qual
também não se tem visto condenações da, assim crida no Ocidente, interpretação
heterodoxa talibã da religião islâmica.
Ou, então, a incorporação legal e social dessas aspirações, as quais em tantos
aspectos vão contra, quer as intenções do governo russo e da cOR, quer dos
direitos humanos mais básicos – motivo que levou a que os países islâmicos tivessem
redigido, em 1990, a “Declaração do Cairo”, a qual limita a abrangência de tais
direitos ao consignado na sharia.
Apesar
de cerca de mil afegãos com passaporte russo terem sido aceites na Rússia,
Vladimir Putin não escondeu o facto de que não aceitaria aqueloutros migrantes.
Afirmou mesmo que estaria disposto a intervir com força – embora não no
Afeganistão – se os mesmos, instalando-se nos países da Ásia Central que
outrora fizeram parte da URSS, pusessem em causa, pelo crime e/ou o terrorismo,
a estabilidade nestes países e/ou na própria Rússia. Algo que Yuri Zhdanov –
presidente da secção russa da Associação Internacional de Polícia – admitiu vir
a ser muitíssimo provável.
Os exercícios bélicos que ocorreram
recentemente no Uzbequistão, por sinal em zonas bem perto da fronteira com o
Afeganistão, e depois no Tajiquistão, são sinal evidente dessa disposição do
Kremlin. De qualquer
modo, e segundo o parecer de Zamir Kabulov – envidado especial de Vladimir
Putin para o Afeganistão –, a Rússia ainda estima que as forças talibãs, que se têm
estado a preparar desde há anos para o que está a suceder diante dos nossos
ignotos olhos, entregar-se-ão, pelo menos em parte, a uma solução política para
a presente crise. Uma solução que não passe pelo aceitar do ressurgir, neste
país, de grupos terroristas, tais como a Al-Qaeda ou outras suas metástases e
contra-metástases ainda mais violentas.
Todavia,
por via das dúvidas e servindo-se de meios ponderadamente alocados para aqueles
mencionados exercícios, Vladimir Putin já tratou de retirar do Afeganistão
centenas de cidadãos russos e filo-russos, alguns dos quais haviam usufruído,
desde 2003, da presença activa da cOR em alguns eventos litúrgicos celebrados
nesse país – onde, por sinal, se desejou construir uma capela nos próprios
terrenos da Embaixada da Rússia. E isto, apesar da
constituição afegã de 2004 ter declarado, com a anuência ocidental, que o
Afeganistão era uma república islâmica onde seria interdito pregar publicamente
o Cristianismo ou se operarem conversões a este. Até para serem evitadas prisões e – acaso fosse
seguido o ditame, imputado a Maomé, «quem abandonar a religião, seja morto» (Sahih
al-Bukhari 6922) – falecimentos violentos devido a adesões à fé cristã por
parte de muçulmanos afegãos, a maior parte das acções religiosas da cOR
restringiram-se, tal como aconteceu com as da Igreja Católica, a meras
intervenções de apoio social e educativo.
Por
seu lado, a cOR, embora cada vez mais missionária e atenta a circunstâncias
mais amplas do que as ligadas à sua vida interna, não tem visto com bons olhos
a presença de grupos religiosos que possam colocar em causa a sua actividade e
prestígio na sociedade russa. Por maioria de razão, não verá com
agrado quando uma tal presença medra de grupos que são intrinsecamente
beligerantes e possivelmente dotados de milionários apoios financeiros para a
realização da supramencionada dawa. E realizarem-na, particularmente através de
obras de apoio social, as quais, na actualidade e com o apoio da esmagadora
maioria dos russos, são tidas como sendo da peculiar responsabilidade da cOR.
De
qualquer modo, e segundo o metropolita Hilarion Alfeyev, o enérgico polímato
responsável da secção da cOR dedicada às relações externas, é um dever
comum à cOR e à administração civil russa a criação de ambientes humanitários
favoráveis para a integração dos migrantes.
Isto, contudo, e ainda de acordo com aquele bispo da cOR, deve ser feito
incluindo-se o cuidado de levar tais pessoas a se adaptarem e integrarem nos
costumes e valores tradicionais vigentes nos locais em que serão acolhidos. E
isto, de modo a que seja alcançado um desiderato por si tido como comum à cOR e
ao governo russo: uma verdadeira união na Federação Russa que sustente uma
duradoira paz no seio da mesma.
Em
consequência disto que acabou de ser apontado, um recente documento, preparado
pelo Conselho Supremo da Igreja Ortodoxa Russa, expressa que é dever da sumphônia
entre a cOR e a política russa dar a conhecer, aos recém-instalados na Rússia,
o que é este país, a sua cultura edificada sobre os valores da cOR e a missão
desta na vida social, pública e cultural russa. Somente assim é que, na opinião
recentemente veiculada pelo antes referido Hilaryon Alfeyev, se evitará o que
aconteceu em outros pontos do globo: a fragmentação do poder instituído segundo
os valores locais e o irromper, a partir do vazio político criado, do
terrorismo medúsico.
A vida, desde a alienada e atroz débacle
bindeniana, não está fácil para ninguém no Afeganistão – com a excepção possivelmente dos talibãs –,
mas uma das minorias mais esquecidas e mais perseguidas são os cristãos.
Se, em Junho deste ano, a embaixada dos EUA nesse país colocou uma imagem com
uma bandeira arco-íris na sua conta de Twitter– prioridades… –, parece que
poucos são os que se preocupam com aqueles afegãos que têm a bandeira de Cristo
nos seus corações. Se fossem cães e gatos moribundos, como os que Pen Farthing
deseja retirar de Cabul, as coisas talvez fossem diferentes.
Seja
como for, se Moscovo, centro
daquela há pouco referida sumphônia, aspira a ser a “Terceira Roma” – e porventura até se antevê como a única
futurível Roma –, em breve saberemos muito mais acerca da sua posição a respeito
do Afeganistão, seja pela voz do governo russo, seja pela da cOR.
MUNDO AFEGANISTÃO RÚSSIA
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