Sensacional. De Jaime Nogueira Pinto. Conhecedor dos factos
como investigador historiográfico sereno, no marulhar raivoso permanente dos
separatismos – neste caso o da África do Sul, que nos descreve, trazendo ecos
de tempos por nós vividos, mas a coberto desses perigos, já aqui instalados no
ouvir dizer dos noticiários ou na leitura dos jornais a respeito de De Clerck e
de Mandela, sobretudo, mais conhecidos, pois que os que se lhe seguiram, que JNP bem descreve, já
se perdem no indefinido ou na cambulhada dos acontecimentos ou dos nomes que a
evolução temporal tornou seus sucedâneos. Rodésias, África do Sul, Suazilândia,
últimos a pretender manter, corajosamente, os seus direitos que uma Revolução
dos Cravos num pequeno país, ao abandonar cobardemente as suas colónias, fez
ruir definitivamente também aqueles, por ordens superiores, de resto, de povos
americanos ou europeus, esquecidos estes de que todos os povos são resultado de
muitos povos invasores, e que as Américas e Austrálias bem estariam na fila
para idênticos separatismos aos que estabeleceram para a África. Mas a Europa
hoje está refém de tais bondades, invadida que é pelos povos que fogem das
consequências dessa doutrinação de aparência sofismadamente evangélica, havida
em tempos.
Jaime Nogueira Pinto esclarece e extrapola. A
guerra e a destruição na África do Sul aí estão, entre os seus naturais –
democraticamente instalada – agora ante a indiferença dos povos ocidentais, que
tanto fizeram por libertar esses povos sofredores do apartheid e que se revelam
hoje igualmente reivindicativos, apesar disso que lhes foi dado de bandeja – a posse
de terras que de longa data lhes pertenciam, diz-se, embora Europa e Américas
tenham funcionado diversamente, em invasões contínuas de povos de diversa
origem, as línguas formando substratos e superstratos e por aí fora, retomando
mais tarde as influências clássicas enriquecedoras, sem que tal devesse
teoricamente ser condenado.
Quanto ao racismo de que fomos acusados – e hoje mais do que nunca – não posso esquecer um dos meus médicos parteiros – o Dr. Torres da Académica, muito negro e denunciante da passividade doce com que uma mãe negra sofria, ao meu lado, noutra cama, as suas contracções uterinas, ao contrário da minha pujança pulmonar em idêntica circunstância. E hoje, todos são primos e primas entre os jogadores de futebol et alia , mas lá na África o mesmo ia acontecendo, no estudo e no desporto, dependendo, é certo, das condições económicas e sociais, como em todos os tempos, e ainda hoje, malgrado os cinismos relacionais.
Mas Jaime Nogueira Pinto é que conta bem, com dados históricos objectivos, sem referências emotivas. Salvo
a ironia do último parágrafo, que reponho, grata:
«Acabado o regime de separação
racial e o domínio político e institucional de uma minoria branca sobre uma
maioria não-branca, parece ter também desaparecido o interesse mediático internacional
e a denúncia da extrema violência e desigualdade na África do Sul – que agora
aparece, devidamente amalgamada, como “mais um dos países africanos mergulhados
em conflitos étnicos”. O cliché dos grandes “opinion makers” para os “países em
desenvolvimento”.»
O fim do sonho de Mandela/premium
Estará o sonho de conciliação de Mandela – de raças,
tribos, povos, vivendo em harmonia e partilhando uma mesma
terra – irremediavelmente comprometido?
JAIME
NOGUEIRA PINTO Colunista do Observador
OBSERVADOR, 13 ago
2021
“Mandela’s Dream for South Africa
is in ruins” – escreve Robin Wright na New Yorker de 28 de Julho, a propósito da violência que
acabara de assolar a República da África do Sul.
O saldo da semana trágica foram 350
mortos, milhares de feridos e detidos, mais de 40.000 estabelecimentos –
bancos, lojas, supermercados, estações de Correios – destruídos ou saqueados e
um profundo pessimismo - neste caSOgeneralizado
quanto futuro do país. Um país que, depois do fim do Apartheid e das primeiras
eleições democráticas, em 1994, foi considerado um caso de sucesso de transição
do poder e de equilíbrio inter-étnico.
Um longo processo
Esse sucesso teve um nome e um
protagonista: Nelson Mandela, o líder do ANC (African National Congress), julgado e condenado pelo governo do
Partido Nacional e durante 27 anos prisioneiro nas cadeias de Robben Island,
Pollsmoor e Victor Verster.
Mandela
foi de facto uma figura central no processo, uma figura que se revelou
exemplar, até pela ausência de ressentimento para com os seus
ex-inimigos, como foi também central F. W. de Klerk,
que negociou o final da transição do lado do poder.
Mas as negociações vinham de longe e o
processo fora longo; um processo em que houvera tempo para negociar e para
acautelar garantias de parte da parte. Mandela
seria libertado em Fevereiro de 1990 mas as negociações entre o ANC e o National Party (NP), então no
poder, tinham já começado na década anterior; negociações
informais que envolveram também a comunidade empresarial e governos
estrangeiros, como a América de Reagan. Em 1986, já na prisão de Pollsmoor,
Mandela iniciara conversas secretas com Kobie Coetsee, ministro da Justiça de
Pretória. Dois anos depois, em Dezembro de 1988, fora transferido para Victor
Verster, na região de Paarl, ficando detido numa residência. Aí, continuara
contactos e negociações com Coetsee e, em 5 de Julho de 1989, tivera um
encontro secreto com o presidente da República, P. W. Botha. Em
Dezembro, estivera com De Klerk, o sucessor de Botha.
Mandela foi libertado em 11 de Fevereiro de 1990. Seguiu-se um longo processo negocial, com altos e
baixos, interrompido por acções violentas radicais, protagonizadas sobretudo
pela ala armada do PAC (Pan Africanist Congress of Azania), uma dissidência
pela esquerda do ANC, que recorreu a atentados e a assassinatos de brancos para
perturbar o processo de paz. Também do lado dos radicais do Apartheid houve
crimes e Colunista do Observador
S
fabricadoresatentados.
A negociação demorou mais quatro anos. Firmaram-se garantias jurídicas, constitucionais,
militares e económicas e a comunidade branca partilhou o poder. E durante
as presidências de Nelson Mandela e do seu sucessor, Thabo Mbeki, com mais ou
menos incidentes, foi-se mantendo um certo equilíbrio entre as diferentes
comunidades étnicas, num quadro de democracia partidária com hegemonia do ANC.
A ascensão de Jacob Zuma
As coisas começaram a mudar em 2005,
quando o presidente Thabo Mbeki entrou em ruptura com o seu Vice-Presidente, o
zulu Jacob Zuma. Zuma fora, desde jovem, um activista de A Lança da Nação,
o braço armado do ANC. Passara 10 anos em Robben Island com Mandela e outros
líderes rebeldes, mantendo-se sempre ligado à rede clandestina e armada do ANC.
E tomara parte nas negociações entre os mais ortodoxos de um e outro lado: os
operacionais do ANC e os generais boers.
Um dos pontos fracos do ANC era a província
de Natal, onde existia um partido identitário zulu, o IFP –
Inkatha Freedom Party – do chefe Buthelezi. Zuma
conseguiu aí melhorar a votação do ANC, vencendo a influência do IFP.
Nessa altura, o ANC começava a sofrer os efeitos do seu poder hegemónico: as promessas de justiça económica não
cumpridas, o alastrar da corrupção, a desastrosa gestão de Mbeki do HIV/AIDS.
Entretanto, a oposição da DA – Democratic Alliance – subia e
tornava-se maioritária no Cabo Ocidental.
Zuma foi afastado por Mbeki em 2005 por
suspeita de corrupção passiva por uma firma francesa num grande negócio de
armamento. Mas saiu vencedor da disputa com Mbeki e, graças aos
militantes zulus, foi eleito presidente do Partido e, depois, presidente da República.
Nos seus dois mandatos continuou
debaixo de fogo, com sucessivas acusações de corrupção, quer da oposição, quer
do seu próprio partido. Os escândalos multiplicaram-se – corrupção,
tráfico de influências e envolvimento directo ou indirecto com grupos
económicos, como os irmãos Gupta, um grupo
indiano, muito favorecido por decisões político-económicas tomadas pelo governo
–, com os prejuízos para o Estado e para o país a escalarem. E em 2018 foi
obrigado a abandonar o cargo e foi afastado da direcção do ANC. Substitui-o o actual presidente, Cyril
Ramaphosa, um
ex-dirigente sindical (líder da COSATU) e empresário de sucesso, no âmbito do
Black
Zuma estava agora a ser processado
pelo Tribunal Constitucional e recusara-se a comparecer. O Tribunal condenara-o
a 15 meses de prisão, ao que o ex-Presidente resistira, acabando, no entanto,
por entregar-se.
Empowerment pós-Apartheid.
Foi na sequência da sua detenção e depois
das ameaças formuladas pelos seus partidários que se desencadearam na sua
província de Kwazulu-Natal e em Gauteng – onde está a cidade de
Joanesburgo – os trágicos incidentes de Julho.
Sementes de violência
A organização dos distúrbios terá sido
obra de partidários de Zuma, que conta com cumplicidades nos serviços de
segurança e inteligência, onde deixou adeptos, e entre os radicais da chamada
RET (Radical Economic Transformation).
Não terá sido, de resto, difícil
recrutar outros descontentes num dos países mais “desiguais” do mundo, apesar
das reformas políticas; um país onde, nos últimos 25 anos, a pobreza alastra e
o desemprego cresce exponencialmente, atingindo sobretudo a população jovem.
Estará o sonho de conciliação de Mandela – de raças, tribos, povos,
vivendo em harmonia e partilhando uma mesma terra – irremediavelmente
comprometido? Serão já inconciliáveis as diferentes comunidades sul-africanas –
agora visivelmente condicionadas por factores económicos, culturais, políticos
e étnicos de confrontação?
A
forte religiosidade de inspiração bíblica da sociedade sul-africana (a maioria
dos negros, brancos e mestiços é cristã e pertence às igrejas reformadas) pesou
muito na transição. Como pesou a independência dos tribunais e a pujante
economia de mercado. Mas até que ponto é que a onda de violência destruiu o que
foi construído no último quarto de século? Como irá afectar o futuro do país no
médio e no longo prazo?
Segundo um inquérito da Brenthurst
Foudation, na semana seguinte à violência, a grande maioria dos sul-africanos
tinha medo do futuro ou dizia-se mesmo desesperada. Curiosamente, os brancos e
os mestiços mostravam-se mais esperançados do que os negros. E nas províncias
de Gauteng e Kwazulu-Natal, as províncias onde se deram os distúrbios, a
esmagadora maioria dos inquiridos considerava que a resposta do governo à crise
tinha sido lenta e pouco eficaz.
A Remodelação
Daí a remodelação governamental de 5 de Agosto último. As
principais mudanças apontam para a reorganização e o reforço da Segurança de
Estado, sob comando presidencial directo, com a extinção do Ministry of
State Security e a passagem da State Security Agency para a dependência da
Presidência da República. O novo ministro da Presidência, Mundi Gungubele, terá
a seu cargo a Segurança, coadjuvado por Zizi Kodwa, ex-Ministro Adjunto, e por
Sydney Mufamadi, que esteve no governo de Unidade Nacional, o primeiro
pós-Apartheid, entre 1994 e 1999 e que passa agora a ocupar as funções de
Conselheiro Nacional de Segurança. Foi também substituída a ministra da Defesa,
Nosiviwe Mapisa-Nqakula, por Thandi Modise, a speaker do Parlamento. O ministro
da Polícia, Bheki Cele, que continua, é visto como um dos impulsionadores da
mudança.
A remodelação é também uma forma de Ramaphosa
concentrar o poder, nomeando uma equipa da sua confiança, como os novos
ministros das Finanças e da Defesa, e afastando alguns críticos, como a
ex-Ministra da Defesa. O novo Ministro das Finanças, Enoch Godongwana, visto
favoravelmente pelos investidores e pelas instituições financeiras internacionais,
foi um opositor às políticas económicas mais radicais defendidas por Zuma e
seus partidários.
Tudo isto vem num dos momentos mais
negros da economia sul-africana, quando convergem os efeitos da Covid, a
violência de Julho, uma violência sem precedentes desde o fim do Apartheid, e a
fuga de capitais e de grandes contribuintes.
Acabado o regime de separação racial e o domínio político e
institucional de uma minoria branca sobre uma maioria não-branca, parece ter
também desaparecido o interesse mediático internacional e a denúncia da extrema
violência e desigualdade na África do Sul – que agora aparece, devidamente
amalgamada, como “mais um dos países africanos mergulhados em conflitos
étnicos”. O cliché dos grandes “opinion makers” para os “países em desenvolvimento”.
ÁFRICA DO SUL ÁFRICA MUNDO NELSON
MANDELA
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