sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Serviu a quem serviu


Mais tarde. Já morto, Salazar. Pelo contrário, naquele espaço de 14 anos que mediou entre o início da guerra colonial e o 25 de Abril, que pôs fim à ocupação portuguesa, de 400 anos, nunca as colónias portuguesas se desenvolveram tanto. Ainda se mantiveram 14 anos, na cegueira (como a minha, impulsionada por idênticas crenças numa história pátria de grandes heroísmos de outrora) de uma confiança na inteireza de carácter e de amor pátrio de Salazar que, por isso mesmo, não tem direito ao Panteão Nacional.

Um texto de David Martelo, do seu excelente blog “A BIGORNA”, que me foi enviado por João Sena.

Comento, naturalmente, a sua sugestão final - «Podia ter servido como alerta e exemplo para Portugal. Não serviu.» Mas sei bem que não passa, o meu comentário, de resquícios da “lavagem ao cérebro” de que me acusava um colega meu, o Dr. Esteves Pinto, mais clarividente, é claro, do que eu, naquela altura em que vivíamos –por lá – as aflições da tal estabilidade fictícia, ajudada a manter pelas tropas portuguesas dentre as quais sobressaíram os Spínolas, os Otelos e C.ia da solução final, como sugere David Martelo, a exemplo da França e de De Gaulle…

 

1956/57 – CARTAS DE PARIS PARA SALAZAR

Ao iniciar-se a guerra na Argélia, o exército francês estava a retirar da Indochina, depois da humilhante derrota de Dien-Bien-Phu (Maio de 1954).

No espírito de muitos militares do quadro permanente desenvolveu-se, então, um forte sentimento de desforra, cuja aplicação prática – ao melhor estilo da guerra revolucionária de inspiração maoísta – incluiria o aliciamento da população através de uma mistura de acção psicossocial e de uma violência sem limites.

 O governo francês, de Pierre Mendès France, desde muito cedo que procurou uma solução negociada. Dessa missão foi encarregado Jacques Soustelle, governador-geral da Argélia desde Janeiro de 1955. Apesar da debilidade da guerrilha argelina nesses primeiros tempos da insurreição – ou, talvez, por isso mesmo –, a FLN (Front de Libération Nationale) não estava, nessa fase, interessada em fazer a paz. Por esse motivo, em 20 de Agosto de 1955, os rebeldes desencadearam, nos subúrbios de Philippeville, uma acção de grande envergadura em que massacraram 123 colonos – homens, mulheres e crianças. A resposta francesa materializou-se pelo aniquilamento de 1200 argelinos na mesma região, acção essa levada a cabo por milícias de voluntários pés-negros. (1) Como consequência desse agravamento da situação, foram abandonadas as diligências tendentes a uma negociação e declarado o estado de emergência em todo o território. Ao findar o ano de 1955, o corpo expedicionário francês na Argélia atingia os 400.000 homens. Essa grande mobilização era feita com o recurso aos militares conscritos, contrariamente ao que sucedera na Indochina. A razão desta diferença decorria da circunstância de o território argelino ser considerado como o conjunto de três departamentos franceses e não uma colónia.

Em Maio de 1956, o embaixador de Portugal em França, Marcello Mathias escreve a Salazar sobre a situação na Argélia, exprimindo a seguinte opinião: Eu não acredito que eles se aguentem na Argélia, apesar de que, desta vez, a maioria da nação quer bater-se e tem consciência da amputação mortal que a perda da Argélia representará, não só política e estrategicamente mas, sobretudo, economicamente. País que já perdeu a Indochina, Marrocos, Tunísia e se verá forçado a um compromisso que mascare a sua evicção da Argélia, como aguentará o seu alto nível de salários quando tiver perdido esses mercados indispensáveis à sua produção e as matérias-primas que de lá recebia em regime privilegiado?(2)

Entretanto, a-pouco-e-pouco, a Argélia transformava-se numa espécie de província militar, onde o poder político civil ia cedendo as suas prerrogativas aos chefes da guarnição militar. Com toda a naturalidade, portanto, em Janeiro de 1957, perante o agravar da situação, o general Massu, à frente da 10.ª Divisão Pára-quedista, foi encarregado da manutenção da ordem em Argel. A operação de limpeza da capital argelina – que ficaria conhecida como batalha de Argelesteve longe de ser um combate heróico. Foi, isso sim, um episódio policial sombrio, em que as tropas francesas responderam, com o uso indiscriminado da tortura, à violência do terrorismo da FLN. Foram feitos aprisionamentos em massa, desaparecendo, para sempre, cerca de 3000 argelinos então detidos, alguns deles destacados dirigentes da insurreição.

Nesse início de 1957, Marcello Mathias procura manter informado o governo português sobre a evolução do sentimento político dominante na sociedade francesa, recentemente abalada pelo fiasco da intervenção no Suez e já não conseguindo dissimular o cansaço resultante dos empenhamentos coloniais. Em carta para Salazar, dizia Mathias:

 

(1) Pieds-noirs - Designação dos colonos europeus. (2) Correspondência Marcello Mathias/Salazar, Difel, Lisboa, 1984, p. 340.

Pág. 2:

Acontece assim que se começa criando a consciência da inutilidade do esforço histórico que a França veio realizando, por toda a parte, fora da metrópole, neste último século. Não só ficam perdidos, para a soberania francesa, para a sua economia, para a sua estratégia e expansão cultural, as terras e os povos até há pouco integrados na União Francesa; não se perdem apenas as fontes de matérias-primas, os mercados preferências para a sua indústria, as riquezas criadas pelo génio francês, as pontes, hospitais, cais, estradas, escolas, minas e fábricas, tudo aquilo que lá se edificou, valorizou, e representa a civilização do nosso tempo... Perde-se a própria alma (como poderá dizer-se sem excessiva retórica), porque depois dos morticínios, dos incêndios de tudo o que é francês, só fica nesse rescaldo o ódio à França e a tudo o que possa representar uma sobrevivência da sua presença passada. [...] Está-se, assim, formando uma convicção, que começa a ter uma audiência cada vez mais vasta, de que a obra de colonização é um inútil sorvedoiro de capitais e de esforços, no fim do qual, através dum processo histórico sempre idêntico, a França só encontra a expulsão ou o abandono voluntário, a perda do esforço feito e o ódio dos povos colonizados. A salvação deste país encontrar-se-ia, portanto, segundo os mais melancólicos ou exaltados promotores desta evolução política, na renúncia imediata, completa, displicente e corajosa do que resta de territórios franceses no continente africano. Se replier sur elle-même, aplicar no seu território continental todas as riquezas até agora dispersas pela vasta ingratidão e incompreensão da União Francesa, diminuindo os impostos que pesam na economia do país para fins extra-europeus, elevando o nível de vida da nação, assim privada de expedições militares longínquas, e semeando, pelo território da metrópole, os hospitais e asilos, as creches e escolas que tanto por cá escasseiam e uma política de prestígio a cada passo vem edificando em África.

Para finalizar a carta, Mathias regressa em força ao tema colonial e conclui:

Vai já demasiado longa a epístola, que aliás nada contém de novo; uma só realidade contém, todavia: a França está fatigada da regência americana, e a nação francesa está farta de ter colónias... Com estes dois sentimentos haverá que julgar o futuro. Ora, a meu ver, ninguém presentemente pode na Europa passar sem os Estados Unidos, salvo se decidir passar para o comunismo; e o desmoronar da África Francesa será um fenómeno histórico de alcance mundial.(3)

É curioso verificar que a narrativa de Mathias, ao transmitir uma ideia que crescia na sociedade francesa a favor de uma prioridade à metrópole acabaria, anos mais tarde, por ser assumida pelo general Charles de Gaulle, primeiro presidente da V República, quando, ao dissertar sobre a independência da Argélia, deixava este desabafo: «Que provação moral seria para mim transmitir a esses territórios o nosso poder, dobrar as nossas bandeiras, fechar um grande livro da nossa história!» (4). «Mas poderia eu imaginar o prolongamento do statu quo? Não! Porque isso significaria manter a França envolvida política, financeira e militarmente numa ruína sem fundo, quando deveria, pelo contrário, ter as mãos livres para cumprir no seu próprio interior a transformação exigida pelo século e exercer sem hipotecas a sua acção no exterior (5).

 

Podia ter servido como alerta e exemplo para Portugal. Não serviu.

David Martelo – Junho de 2021

 

(3) Correspondência Marcello Mathias/Salazar, pp. 362-365. (4) DE GAULLE, Charles, Mémoires d’espoir, p. 42. 5 Ibidem, pp. 49-50.

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