Mais tarde. Já morto, Salazar. Pelo
contrário, naquele espaço de 14 anos que mediou entre o início da guerra colonial
e o 25 de Abril, que pôs fim à ocupação portuguesa, de 400 anos, nunca as
colónias portuguesas se desenvolveram tanto. Ainda se mantiveram 14 anos, na
cegueira (como a minha, impulsionada por idênticas crenças numa história pátria
de grandes heroísmos de outrora) de uma confiança na inteireza de carácter e de
amor pátrio de Salazar que, por isso mesmo, não tem direito ao Panteão
Nacional.
Um texto de David
Martelo, do seu excelente blog “A BIGORNA”, que me foi
enviado por João Sena.
Comento, naturalmente, a sua sugestão final - «Podia ter servido como alerta e exemplo para Portugal. Não serviu.» Mas sei bem que não passa, o meu comentário, de resquícios da “lavagem ao cérebro” de que me acusava um colega meu, o Dr. Esteves Pinto, mais clarividente, é claro, do que eu, naquela altura em que vivíamos –por lá – as aflições da tal estabilidade fictícia, ajudada a manter pelas tropas portuguesas dentre as quais sobressaíram os Spínolas, os Otelos e C.ia da solução final, como sugere David Martelo, a exemplo da França e de De Gaulle…
1956/57 – CARTAS DE PARIS PARA SALAZAR
Ao iniciar-se a guerra na Argélia, o exército francês estava a
retirar da Indochina, depois da humilhante derrota de Dien-Bien-Phu (Maio de
1954).
No espírito de muitos militares do
quadro permanente desenvolveu-se, então, um forte sentimento de desforra, cuja
aplicação prática – ao melhor estilo da guerra revolucionária de inspiração
maoísta – incluiria o aliciamento da população através de uma mistura de acção
psicossocial e de uma violência sem limites.
O
governo francês, de Pierre
Mendès France, desde muito cedo que procurou uma solução
negociada. Dessa missão foi encarregado Jacques
Soustelle, governador-geral da Argélia desde
Janeiro de 1955. Apesar da
debilidade da guerrilha argelina nesses primeiros tempos da insurreição – ou,
talvez, por isso mesmo –, a FLN (Front de Libération Nationale) não estava, nessa fase, interessada em fazer a paz.
Por esse motivo, em 20 de Agosto de 1955, os rebeldes desencadearam, nos subúrbios de Philippeville, uma acção de grande envergadura em que
massacraram 123 colonos – homens, mulheres e crianças. A resposta francesa
materializou-se pelo aniquilamento de 1200 argelinos na mesma
região, acção essa levada a cabo por milícias de voluntários pés-negros. (1) Como
consequência desse agravamento da situação, foram abandonadas as diligências
tendentes a uma negociação e declarado o estado de emergência em todo o
território. Ao findar o ano de 1955, o corpo expedicionário francês na Argélia
atingia os 400.000 homens. Essa
grande mobilização era feita com o recurso aos militares conscritos,
contrariamente ao que sucedera na Indochina. A
razão desta diferença decorria da circunstância de o território argelino ser
considerado como o conjunto de três departamentos franceses e não uma colónia.
Em Maio de 1956, o embaixador de Portugal em França,
Marcello Mathias escreve a Salazar
sobre a situação na Argélia, exprimindo a seguinte opinião: Eu não
acredito que eles se aguentem na Argélia, apesar de que, desta vez, a maioria
da nação quer bater-se e tem consciência da amputação mortal que a perda da
Argélia representará, não só política e estrategicamente mas, sobretudo,
economicamente. País que já perdeu a Indochina, Marrocos, Tunísia e se verá
forçado a um compromisso que mascare a sua evicção da Argélia, como aguentará o
seu alto nível de salários quando tiver perdido esses mercados indispensáveis à
sua produção e as matérias-primas que de lá recebia em regime privilegiado?(2)
Entretanto,
a-pouco-e-pouco, a Argélia transformava-se numa espécie de província
militar, onde o poder político civil ia cedendo as suas prerrogativas aos
chefes da guarnição militar. Com toda a
naturalidade, portanto, em Janeiro de 1957, perante o agravar da situação, o general
Massu, à frente da 10.ª Divisão
Pára-quedista, foi encarregado da manutenção da ordem em Argel. A
operação de limpeza da capital argelina – que ficaria conhecida como batalha
de Argel – esteve longe de ser um combate
heróico. Foi, isso sim, um episódio policial sombrio, em que as tropas
francesas responderam, com o uso indiscriminado da tortura, à violência do
terrorismo da FLN. Foram feitos aprisionamentos em massa, desaparecendo,
para sempre, cerca de 3000 argelinos então detidos, alguns deles destacados
dirigentes da insurreição.
Nesse
início de 1957, Marcello Mathias
procura manter informado o governo português sobre a evolução do sentimento
político dominante na sociedade francesa, recentemente abalada pelo fiasco da
intervenção no Suez e já não conseguindo dissimular o cansaço resultante dos
empenhamentos coloniais. Em carta para Salazar, dizia Mathias:
(1) Pieds-noirs - Designação dos colonos europeus. (2) Correspondência
Marcello Mathias/Salazar, Difel, Lisboa, 1984, p. 340.
Pág. 2:
Acontece
assim que se começa criando a consciência da inutilidade do esforço histórico
que a França veio realizando, por toda a parte, fora da metrópole, neste último
século. Não só ficam perdidos, para a soberania francesa, para a sua economia,
para a sua estratégia e expansão cultural, as terras e os povos até há pouco
integrados na União Francesa; não se perdem apenas as fontes de
matérias-primas, os mercados preferências para a sua indústria, as riquezas
criadas pelo génio francês, as pontes, hospitais, cais, estradas, escolas,
minas e fábricas, tudo aquilo que lá se edificou, valorizou, e representa a
civilização do nosso tempo... Perde-se a própria alma (como poderá dizer-se sem
excessiva retórica), porque depois dos morticínios, dos incêndios de tudo o que
é francês, só fica nesse rescaldo o ódio à França e a tudo o que possa representar
uma sobrevivência da sua presença passada. [...] Está-se, assim, formando
uma convicção, que começa a ter uma audiência cada vez mais vasta, de que a
obra de colonização é um inútil sorvedoiro de capitais e de esforços, no fim do
qual, através dum processo histórico sempre idêntico, a França só encontra a
expulsão ou o abandono voluntário, a perda do esforço feito e o ódio dos povos
colonizados. A salvação deste país encontrar-se-ia, portanto, segundo os mais
melancólicos ou exaltados promotores desta evolução política, na renúncia
imediata, completa, displicente e corajosa do que resta de territórios
franceses no continente africano. Se
replier sur elle-même, aplicar no seu território continental todas as
riquezas até agora dispersas pela vasta ingratidão e incompreensão da União
Francesa, diminuindo os impostos que pesam na economia do país para fins extra-europeus,
elevando o nível de vida da nação, assim privada de expedições militares
longínquas, e semeando, pelo território da metrópole, os hospitais e asilos, as
creches e escolas que tanto por cá escasseiam e uma política de prestígio a
cada passo vem edificando em África.
Para finalizar a carta, Mathias regressa
em força ao tema colonial e conclui:
Vai
já demasiado longa a epístola, que aliás nada contém de novo; uma só realidade
contém, todavia: a França está fatigada da regência americana, e a
nação francesa está farta de ter colónias... Com estes dois sentimentos haverá
que julgar o futuro. Ora, a meu
ver, ninguém presentemente pode na Europa passar sem os
Estados Unidos, salvo se decidir passar para o comunismo; e o desmoronar da
África Francesa será um fenómeno histórico de alcance mundial.(3)
É curioso verificar que a narrativa
de Mathias, ao transmitir uma ideia que crescia na sociedade
francesa a favor de uma prioridade à metrópole acabaria, anos mais tarde, por
ser assumida pelo general Charles de Gaulle, primeiro
presidente da V República, quando, ao dissertar sobre a independência da
Argélia, deixava este desabafo: «Que provação moral seria para mim
transmitir a esses territórios o nosso poder, dobrar as nossas bandeiras,
fechar um grande livro da nossa história!» (4). «Mas poderia eu imaginar o prolongamento do
statu quo? Não! Porque isso significaria manter a França envolvida política,
financeira e militarmente numa ruína sem fundo, quando deveria, pelo contrário,
ter as mãos livres para cumprir no seu próprio interior a transformação exigida
pelo século e exercer sem hipotecas a sua acção no exterior (5).
Podia ter servido como alerta e exemplo para Portugal. Não serviu.
David Martelo – Junho de 2021
(3) Correspondência Marcello
Mathias/Salazar, pp. 362-365. (4) DE
GAULLE, Charles, Mémoires d’espoir, p. 42. 5 Ibidem, pp. 49-50.
Nenhum comentário:
Postar um comentário