“Ai não, não é”
“Pois é”. Era isto que cantava Amália Rodrigues, em resposta
a uma série de perguntas de hipotética resposta afirmativa ou negativa,
ficando-se pela graça da ambiguidade desconcertante e maliciosa, na cantiga
“É ou não é”, na sua interpretação de encanto não ambíguo:
Digam lá se é assim ou não é?
Ai, não, não é! Ai, não, não é!
Digam lá se é assim ou não é?
Ai, não, não é! Pois é!
Infelizmente não se trata de uma canção,
mas de uma tragédia que vamos vivendo na distância, e no horror da impotência
perante o sofrimento das vítimas e a crueldade imbecil dos algozes. E no
desprezo por um homem manso e inepto causador dela, numa dimensão de velhacaria,
burrice e hipocrisia traiçoeira, de consequências trágicas devastadoras. Não,
não é um homem decente, Joe Biden. O que ele é,
é um anormal com poder para destruir, sem pesos na consciência, que revelou não
ter, como eu também ouvi, através do seu discurso justificativo. Paulo Tunhas o define,
descrevendo os horrores da tragédia que continua a processar-se, de gente que
pretende fugir de outra gente, que o mundo, afinal, acarinha. Como, de resto, sempre
acarinhou o terrorismo, também o sentimos em tempos idos. Lembramos o bonitão
do Kennedy, a entreter-se com as descolonizações africanas,
esquecido de que também ele ocupava largos espaços pertencentes a gente que os seus
antepassados chacinaram, lavando ele as mãos disso, como os demais Pôncios Pilatos
deste mundo… Leiamos, sim, Paulo Tunhas a respeito do Joe Biden e respondamos à sua pergunta retórica. Mas sei bem que o “não”, com a alternativa do “ai não, não é” da nossa sempre
querida Amália não é uníssono. Ou unânime, pois a
democracia baralhou os quesitos. E os sentimentos, de passagem. Paulo Tunhas o demonstra
bem.
Biden. É isto um homem decente? /premium
O que disse Joe Biden? Na substância,
que não teve culpa alguma em tudo aquilo. Entretanto, os afegãos que procuram
desesperadamente fugir da tomada do poder pelos talibãs que se lixem.
PAULO TUNHAS
OBSERVADOR, 19 ago
2021
Se
houve algo de quase palpável na comunicação de Joe Biden na passada segunda-feira, em que explicava as suas
razões para a retirada total das forças americanas do Afeganistão, e que se
misturavam nas nossas cabeças com as imagens de pânico e desespero no aeroporto
de Cabul, foi o sentimento de uma dissonância absoluta. As palavras e as imagens não eram compatíveis umas
com as outras, o desconcerto entre ambas era patente. As palavras,
aparentemente, falavam de sóbrias razões, as imagens mostravam desespero e
caos. O grau de insensibilidade necessário para não experimentar esse
sentimento de dissonância transcende a imaginação. Mas há espíritos capazes
desses prodígios.
O que disse Joe
Biden? Na substância, que não teve
culpa alguma em tudo aquilo. Que
tinha herdado o problema do Afeganistão dos três presidentes anteriores e que
não o queria deixar para o próximo. Que
a embaixada americana tinha sido fechada em segurança. Que, se os Estados Unidos não evacuavam mais colaboradores
afegãos, tal devia-se ao facto de eles não terem querido ser evacuados. Que honrou a sua promessa de acabar
com o envolvimento americano na guerra afegã. Que só podia fazer o que fez ou aumentar a escala do conflito,
coisa impensável. Que a culpa
era de Trump, que tinha iniciado negociações com os talibãs. Que a culpa era também dos afegãos,
que eram uns cobardolas ingratos e incompetentes com quem ele tinha gasto uma
data de dinheiro em vão. E
acrescentou, sem por um momento reparar na contradição em que incorria, que com
ele acabavam os passa-culpas. “The buck stops here“, nas palavras célebres
de Truman, que citou. Ele, Biden, era a responsabilidade em pessoa, a
responsabilidade virtuosa e assumida.
Entretanto, os afegãos que procuram
desesperadamente fugir da tomada do poder pelos talibãs, como consequência
directa do abandono americano decretado por Biden, nomeadamente da perda do
auxílio militar aéreo, que se lixem. Que
se preparem para sofrer a tirania sem piedade do fundamentalismo islâmico e da
sharia. A repressão, o assassinato, a violência, a humilhação, a degradação das
mulheres e toda a panóplia de terror que o fanatismo inventa com indisfarçável
prazer. O retorno a uma vida que ilusoriamente tinham julgado, desde há vinte
anos, fazer parte do passado, retorno que só os americanos poderiam evitar. Nem a Grã-Bretanha, a única força militar efectiva da Europa ocidental,
o poderia fazer, daí ter sido forçada, com um desprazer que a diplomacia
obrigou Boris Johnson a disfarçar, a seguir a América.
Com os Estados Unidos de fora, tudo o que se pode fazer – e os
ingleses, têm sido os mais vocais nesse aspecto – é acolher os refugiados que
chegarão em massa, tentando escapar ao terror.
Mesmo que se seja sensível aos problemas que a emigração coloca, neste caso
particular não pode haver dúvidas: é mesmo um dever, o único que, depois da
catástrofe, podemos cumprir.
Trump
tinha, é claro, querido tirar as forças americanas do Afeganistão. Como o
tinham querido, antes dele, George W. Bush e Barack Obama. A aliança
internacional, comandada pelos Estados Unidos, que invadiu o Afeganistão, fê-lo
com objectivos precisos e limitados a um tempo que tinha de ser medido pelo
grau de necessidade da sua presença. E Trump negociou, é verdade, em 2020, uma
retirada dos americanos com os talibãs.
Se fez bem ou mal, não sei. Mas lembro que, por cá, Mário Soares, nos
tempos a seguir ao 11 de Setembro de 2001, recomendava enfaticamente um diálogo
com os terroristas. E lembro
também que, como qualquer pessoa pode verificar facilmente, as
negociações com os talibãs estipulavam uma série de condições a serem cumpridas
por estes, sem as quais a retirada das tropas americanas não se verificaria. De resto, o mais verosímil é que Trump acabasse por
não retirar os americanos do Afeganistão e tivesse dado ouvidos (o que Biden
não fez) aos avisos sobre os riscos da retirada. Quanto mais não seja – e, por
uma vez, vale a pena usar aqueles argumentos psicológicos que abundavam na
literatura jornalística sobre ele –, com medo da humilhação que tal retirada
para ele representaria. Biden, o “homem decente” que toda a gente gostava de
celebrar, não teve esses problemas.
Porque
Biden, lembram-se?, é um “homem decente”. Se
tiverem dúvidas, leiam a vasta literatura lírico-analítica que sobre ele a
comunicação social portuguesa abundantemente produziu, por falta de juízo ou,
num caso ou outro, por pura patetice. Os
adjectivos quase faltavam para descrever a nova maravilha dos nossos tempos,
que rompia com o ignominioso passado recente representado por
Trump. America is back! A América boa, a América dos nossos sonhos e
dos nossos desvelos. A América multilateral e civilizada do diálogo. A América
da compaixão. A América com quem a Europa e o mundo podem contar. A América que
desmentirá a legião de “trumpinhos” – designação que servia para indicar todos
aqueles que se recusassem a aceitar que tudo o que Trump fazia era por
definição perverso e errado – que constituem a “direita radical” portuguesa e
mundial. Se fosse dado
a esse estilo (não sou), poderia escrever um artigo inteiro com a enumeração
detalhada de todos os elogios incondicionais feitos a Biden, com citações que ocupariam páginas e páginas e com um
lamento final, de dedinho em riste, sobre o “silêncio ensurdecedor” dos seus
líricos admiradores face à situação presente.
A extrema-esquerda, é claro, delira de contentamento com tudo isto,
exibindo a sua costumeira insensibilidade para com o terror e o sofrimento
humano. Yanis Varoufakis, um ídolo seu durante o período da troika (e não apenas
seu como de largas franjas do PS), celebrou o retorno dos talibãs ao poder como
o fim do “imperialismo liberal neoconservador”, aconselhando perversamente
coragem às mulheres afegãs. Suponho que,
no seu espírito, elas devem aceitar todo o horror por que passarão como as
necessárias dores de parto dos magníficos tempos que aí virão. E o Bloco de
Esquerda, juntando a ignorância, a estupidez e o fanatismo como só ele sabe
fazer, convida quem na altura apoiou a invasão do Afeganistão a fazer um
balanço destes últimos vinte anos, que não fizeram mais do que fomentar o
terrorismo: “a invasão ajudou à exaltação do terrorismo em largas partes do
mundo”. De acordo com a visão sub specie aeternitatis do Bloco,
deduz-se que foi a invasão do Afeganistão que motivou os ataques de 11 de
Setembro de 2001.
De um outro ponto de vista, e no meio
das críticas a Biden de republicanos e democratas, a extrema-esquerda do
Partido Democrata (Ilhan Omar, por exemplo), na qual muitos ignorantes depositam
uma sanguínea esperança para salvar o mundo, aplaudiu a retirada americana. Este ponto é importante, porque ilustra uma
consonância que contrasta fortemente com a dissonância a que me referi no
início deste artigo. Porque há mesmo uma consonância entre Biden, o tal
“homem decente”, e o Black Lives Matter e o movimento woke em geral, uma
consonância que não se limita à coreografia do joelho no chão de Kaepernick. E
essa consonância desdobra-se numa outra, a aparentemente paradoxal consonância
entre o movimento woke e os talibãs, que é efectiva para lá da óbvia
desproporção do ponto de vista do terror. É que em
ambos os casos, para lá da comum paixão pela eliminação do passado (não só sob
a forma da destruição das estátuas – lembram-se dos Budas de Bamiyan?), há a
mesma tentativa totalitária de regulamentar, contra o uso comum da liberdade,
todo o comportamento público e privado e toda a linguagem disponível. Não é por
isso surpreendente que não se ouçam, vindas dessas bandas, quaisquer críticas
ao mundo mental dos talibãs. Tal como estes, os adeptos da wokeness
interessam-se apenas na modificação integral da sua sociedade de acordo com
padrões que querem impor, amiúde à força, a todos os outros. Ambos têm –
involuntariamente num caso, voluntariamente no outro – o apoio do “homem
decente” que tanto entusiasmo gerou nos costumeiros opinantes que se habituaram
desde muito cedo, sem vergonha nenhuma, a respirar as mais absurdas certezas.
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