O
mundo, em definição de Cesário Verde. Não obsta a que se pense que foi traição vergonhosa o abandono repentino. Mas o texto de Diana Soller parece excelente análise, repondo dados. Acrescento os dizeres (extraídos
do jornal PÚBLICO), comprovativos dos actos de terror, que começam a abundar:
«A
facilidade com que os extremistas estão a reconquistar o país é uma prova de
que o Governo de Cabul é um cenário virtual mantido pela força da maior
potência militar do mundo. Sem esse poder de fogo, o Afeganistão começou a
regressar à
realidade do terror taliban. (EDITORIAL
de 10/821)
Na
província de Ghazni, as mulheres deixaram de poder ser locutoras de rádio. Na
província de Herat, acabaram as aulas mistas nas universidades. As mulheres só
podem ir a aulas de “professoras virtuosas” e “varões anciãos”. Von der Leyen
diz que UE não vai dar um cêntimo a um regime que nega direitos às mulheres. (PÚBLICO com agências
21 de Agosto de 2021)
Notas sobre a retirada americana do Afeganistão /premium
A direita norte-americana tudo fará
para que este seja o momento definidor da presidência Biden, agravando a
situação da polarização interna e fraqueza relativa internacional dos Estados
Unidos.
DIANA SOLLER Colunista do
Observador
OBSERVADOR, 20 ago
2021
Vou começar
este texto exactamente como o vou acabar: não é possível que o que está a
acontecer no Afeganistão não cause comoção. Comoções de várias ordens. A aflição
das pessoas comuns a tentarem sair do país, a ideia de que as mulheres voltarão
a uma existência miserável e até, para alguns de nós, aquela espécie de fuga
mal orquestrada dos norte-americanos, que despertou em muitos que viveram nos
anos 1970 memórias de Saigão e de um dos períodos mais conturbados da história
norte-americana. No entanto, a
comoção não é boa conselheira, muito menos quando se tenta pensar em
questões políticas com várias dimensões, incluindo potenciais crises
humanitárias. O que se segue são breves notas que distinguem dois
problemas que, apesar de interligados, não são o mesmo. Primeiro analisa-se a inevitabilidade da
retirada. Depois a retirada em si, cujos danos podiam ter sido evitáveis.
O Afeganistão não foi uma guerra da
escolha. Foi a
região onde foram treinados e onde se refugiavam os operacionais da Al-Qaeda
que perpetraram os ataques do 11 de Setembro.
Era politicamente inviável não fazer uma tentativa de destruir o safe
haven de quem tinha levado a cabo um
acto de terror que abalou o mundo mas, principalmente, a América e a sua
segurança.
A
posteriori, um conjunto de comentadores argumenta que devia ter sido um ataque
cirúrgico. Mas em
2001 não se pensava assim. Estava enraizada na mentalidade ocidental (não me
refiro só aos EUA), que uma invasão implicava uma reconstrução, se possível,
aproximando os povos invadidos aos hábitos e instituições ocidentais. Acreditava-se
que a democracia era um direito universal e havia poder de sobra – os Estados
Unidos eram a única potência no sistema internacional, sem vislumbre de mais
nenhuma – para que invasores assumissem as suas responsabilidades.
Rapidamente, e também devido à intervenção no Iraque, estas guerras
tornaram-se guerras malditas entre a população norte-americana. Percebeu-se que
estavam mal planeadas e não havia hipótese de as vencer, pelo menos,
politicamente. Barack
Obama, Donald Trump e Joe Biden foram eleitos com o mandato de acabar com elas. Os dois primeiros não conseguiram, apesar de Trump se
ter empenhado num acordo com os talibã para tentar evitar o desastre a que
agora estamos a assistir.
De Bush a Biden, o mundo mudou consideravelmente. Já não estamos no momento unipolar em que os
EUA eram a única potência no sistema internacional. Obama iniciou
um retraimento estratégico que cada presidente a seguir tem gerido como acha
mais eficiente. Em competição com a China e com a pressão da opinião pública, a
saída do Afeganistão era inevitável. E o resultado seria o mesmo,
independentemente do quando. Se vinte anos não foram suficientes para escudar o
povo afegão do avanço talibã, mais cinco ou dez não fariam grande diferença.
Se
não tenho muitas dúvidas da inevitabilidade do fim deste conflito – Biden
explicou bem as razões no discurso à nação sobre o assunto – é preciso
acrescentar um conjunto de pontos relevantes.
A retirada foi muitíssimo
ineficiente. Apesar de o presidente norte-americano
ter afirmado que os afegãos estavam prontos, treinados pelas forças
norte-americanas, para fazer face ao avanço dos talibãs, a realidade prova exactamente
o contrário. Ainda que
seja cedo para assacar responsabilidades, parece uma falha estrondosa dos
serviços de informação e dos responsáveis pelo planeamento desta retirada. Os
talibãs avançaram pelo Afeganistão quase sem resistência e parece terem
apanhado desprevenidos americanos, aliados e organizações internacionais. Uma
grande potência que tem pretensões a ter uma palavra a dizer no mundo, não
pode, simplesmente, ter uma inteligência que não funciona.
O desespero dos afegãos, a fuga atabalhoada dos estrangeiros e a
tomada de poder pelos talibãs transformaram, por muito tempo, a imagem
internacional dos Estados Unidos. Visto de qualquer ângulo é uma pesada derrota
(não venceram a guerra política, nem souberam sair de forma ordeira), que muito
dificilmente pode ser explicada sem fazer uso da palavra incompetência.
Os
aliados dos norte-americanos ficam em apuros. Num momento em que Biden tenta
reconquistá-los, este tipo de posição pode prejudicar muito esta reconciliação. Especialmente porque, tudo indica, a retirada gerará
uma crise de refugiados que tende a atingir
a Europa, especialmente vulnerável a este tipo de problema. O
espaço de influência afegão já estava a ser ocupado pelo Paquistão, a China, a
Rússia e mesmo pelo Irão, que se esforçam por branquear a imagem dos talibãs
perante o mundo. O Ocidente
tem dado uma ajuda. Por razões de culpa; a ideia dos anos 1990 e 2000 que era
preciso deixar os povos melhor do que quando se chegou ainda tem muita força
entre a esquerda norte-americana e europeia, que quer apaziguar os seus
fantasmas.
A direita norte-americana tudo fará para que este seja o momento
definidor da presidência Biden, agravando a situação da polarização interna e a
fraqueza relativa internacional dos Estados Unidos.
A
comoção com que vemos o desenrolar da tragédia afegã nas nossas televisões é
confrangedora. Não é possível ficarmos indiferentes à torrente de pessoas que
quer fugir e à sorte das mulheres a quem os talibãs prometem salvaguardar os
direitos humanos “dentro da lei islâmica”.
Mas
se analisarmos o que aconteceu nos últimos vinte anos, há dois momentos: por
um lado, aquele em que Biden toma ou leva a cabo a decisão já tomada por Trump
de retirar do Afeganistão. E
essa decisão está certa. Não só
porque praticamente todas as tentativas de reconstrução de Estados alheios só
pioraram situações que já eram más (ver, por exemplo o excelente At
War’s End, de Roland Paris), como já
não era tolerável, para os americanos, continuarem numa guerra que não
conseguiam vencer vinte anos depois.
Por outro lado, o segundo
momento – a retirada – não podia ter corrido pior. A palavra “Saigão” saiu dos anais da História para
trazer velhos fantasmas e novas (e velhas) divisões. Demostrou a enorme
inaptidão dos Estados Unidos para liderarem o mundo, num momento em que
Washington precisa desesperadamente de credibilizar a sua liderança. Ficámos a
sentir que ali se perdeu qualquer coisa de essencial, que pode bem ser
irreparável.
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