Do nosso tempo, a apelar para a atenção
do mundo. Mas, como já o disse Reinaldo
Ferreira, no seu poema «RECEITA PARA FAZER UM HERÓI», este Ahmad
Massoud “servir-se-á - também
- morto”, embora tenha carradas de
razão, nos seus princípios nacionalistas:
Tome-se um homem,
Feito de nada, como nós,
E em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
Lentamente,
Duma certeza aguda, irracional,
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois, perto do fim,
Agite-se um pendão
E toque-se um clarim.
Serve-se morto.
Que Alá proteja este herói afegão dos nossos tempos da
solidariedade oportunista, para espectáculo…
Quem é Ahmad Massoud, que resiste aos talibãs?
E tem alguma hipótese de vencer? /premium
Cercado, Ahmad Massoud quer negociar
mas admite lutar e dar continuidade ao legado do pai, o lendário “Leão de
Panshir” que resistiu à União Soviética e aos talibãs. Conseguirá repetir a
história?
OBSERVADOR, 23 ago
2021, 20:2816
Entre 1980 e 1985, enquanto a União Soviética ocupava o Afeganistão, o
Vale de Panshir foi alvo de pelo menos nove tentativas de captura por parte das
tropas soviéticas, todas elas fracassadas.
O guião viria a repetir-se anos mais tarde, durante o regime talibã, com aquela
província no norte do país a resistir ao controlo dos extremistas islâmicos.
Tanto num caso como no outro, a resistência deveu-se sobretudo à liderança de
um homem: Ahmad Shah Massoud.
Quase vinte anos
depois da queda do primeiro regime talibã, que vigorou entre 1996 e
2001, e numa altura em que os islamistas
controlam praticamente todo o Afeganistão após uma série de operações militares relâmpago cujo
auge se deu com a conquista da capital, apenas uma província continua a
resistir: precisamente o Vale de Panshir, onde milhares de
guerrilheiros estão ao lado de Ahmad Massoud, filho do histórico mujahideen
assassinado pela Al-Qaeda a 9 de setembro de 2001, dois dias antes dos ataques
às Torres Gémeas e ao Pentágono que viriam a mudar o mundo.
Quando o seu pai foi assassinado, num atentado suicida perpetrado pela
Al Qaeda, visto
como uma forma de agradar aos talibãs que protegiam o líder jihadista Osama bin
Laden, Ahmad
Massoud, hoje com 32 anos, tinha apenas 12
anos. Dias depois, os Estados Unidos invadiam o Afeganistão e o jovem Massoud
acabaria por prosseguir os seus estudos no Irão, no ensino secundário, e no
Reino Unido, no ensino superior, onde se especializou em questões militares e
política internacional, bases que seriam fundamentais para depois regressar ao
Afeganistão e dar continuidade ao legado do pai, iniciando um movimento de resistência aos talibãs, quando
se tornou claro que os Estados Unidos acabariam por abandonar o Afeganistão,
deixando o país novamente nas mãos dos extremistas islâmicos.
E
assim foi. Enquanto o exército e os líderes políticos afegãos entregavam o
poder, sem dar luta, aos talibãs, Ahmad Massoud anunciava, no
Vale de Panshir, o início da resistência armada aos islamistas — e, num artigo de opinião publicado na semana passada
no The Washington Post, garantia estar “pronto para seguir
os passos” do pai e “enfrentar mais uma vez os talibãs.”“Temos munições e armas
que armazenámos desde a época de meu pai, porque sabíamos que este dia podia
chegar”, assegurou Massoud.
Além de Massoud, líder da Frente Nacional de Resistência (FNR), a oposição
aos talibãs é encabeçada por Amrullah Saleh, vice-presidente afegão durante o
mandato de Ashraf Ghani (que fugiu para os Emirados Árabes Unidos), que,
desafiando os islamistas, garante que é o Presidente em funções; e Bismillah
Khan Mohammadi, ministro da Defesa deposto. A FNR tem afirmado que está
disponível para conversar com os talibãs, mas garante também que está disposta
a recorrer à força caso os extremistas islâmicos não cedam nas suas pretensões
ou decidam avançar para a conquista do Vale de Panshir. “Enfrentámos a União Soviética, e seremos
capazes de enfrentar os talibãs”, garantiu Massoud, declarações que deixam no
ar a possibilidade de uma guerra civil.
Mas, desta vez, apesar das promessas
de resistência ao regime talibã, os combatentes leais a Ahmad Massoud muito
dificilmente conseguirão impedir que os extremistas islâmicos consigam fazer o
que britânicos, no século XIX, e soviéticos e talibãs, na década de 1990, não
conseguiram, uma vez que os insurgentes têm vindo a avançar no terreno a enorme
velocidade, quando já têm o resto do país praticamente todo sob seu controlo.
Esta segunda-feira, Zabihullah
Mujahid, porta-voz dos talibãs, disse que a FNR está “sitiada dentro de
Panshir” e garantiu que os extremistas islâmicos estão a negociar a rendição da resistência na única
província afegã que ainda não controlam, numa altura em que continuam a
conquistar localidades nas proximidades, como Takhar, Badakhshan e Andarab,
isolando ainda mais as forças de Massoud.
“Panshir está cercada
pelos talibãs por todos os lados.Se os talibãs não lutarem e mantiverem a
região cercada, penso que dentro de alguns meses as pessoas não vão conseguir
sobreviver e terão de sair. É por isso que os talibãs não estão preocupados.
Panshir não é uma grande dor de cabeça para eles”, afirma ao Observador, a
partir da Suécia, o analista Abdul
Sayed, especializado em questões de segurança do Afeganistão, notando que os talibãs querem “evitar
um banho de sangue” em Panshir, que tem assumido um “papel simbólico” para a
resistência afegã ao longo das décadas.
O
vale isolado do resto do país e o “Leão de Panshir”, que virou uma “celebridade
nacional romantizada”
A rápida conquista do poder por parte
dos talibãs, que nem precisaram de esperar pelo
dia 31 de agosto, data oficial para a retirada norte-americana do Afeganistão, faz
com que não seja de descartar a possibilidade da queda daquela província poder
por estar por horas, embora a mesma tenha particularidades que possam tornar
tudo mais complicado para os islamistas.
Desde
logo, a localização geográfica do Vale de Panshir — cujo nome é traduzido por“Vale
dos Cinco Leões”, em referência aos cinco picos montanhosos da província —
torna-o um alvo bastante difícil de conquistar para os seus adversários. Panshir,
localizado a 150 quilómetros de Cabul, fica praticamente isolado do resto do
país, e o único acesso ao Vale é através de um desfiladeiro no rio Panshir, o
que torna as operações de defesa da província mais fáceis e as ofensivas
militares mais difíceis de serem bem sucedidas.
“A província de Panshir é o sonho do
defesa e o pesadelo do atacante”, escreveu o veterano do exército indiano
Ronnie Rajkumar no Financial Express.
A localização geográfica, de resto,
ajuda a explicar a resistência da província durante a ocupação soviética, sendo
que, conforme nota a Sky News, ainda hoje
são visíveis os tanques enferrujados na província, que, sob a liderança de Ahmad
Shah Massoud, resistiu a várias vagas de ataques soviéticos,
inclusive ataques militares com forças terrestres e de helicópteros.
Pelo
papel de liderança que desempenhou, Ahmad Shah “Massoud” (cujo nome de guerra significa “o afortunado” ou “o
beneficiário”) ficou também conhecido como o “Leão de Panshir”, criando-se uma lenda em torno deste mujahideen que, logo após o fim da invasão soviética, em 1989,
viria a assumir um papel chave na guerra civil afegã.
▲ Ahmad
Shah Massoud liderou a Aliança do Norte contra os talibãs. Morreu num atentado
suicida perpetrado pela Al Qaeda
GETTY IMAGES
É precisamente durante a guerra civil que se seguiu à invasão soviética
que várias facções de combatentes se digladiaram entre si, e os talibãs
começaram a ganhar força até conseguirem chegar ao poder em 1996. Apesar de também defender valores conservadores para o
Afeganistão, Ahmad Shah Massoud
divergia da visão extremista dos talibãs e, por isso, decidiu resistir no
Vale de Panshir. É nesse
contexto que cria e lidera a Aliança do Norte, uma organização maioritariamente
composta por uzbeques e tajiques — a maioria dos cerca de 150 mil habitantes do
Vale de Panshir são da etnia tajique, enquanto os talibãs são pashtuns — que
não só liderou a resistência naquela província, como teve um papel importante
para que, em parceria com outros senhores da guerra, conseguir manter o
controlo de praticamente todo o nordeste afegão.
O
papel de Ahmad Shah Massoud
enquanto líder da resistência afegã tornou-o um alvo constante dos talibãs, que
viram o seu principal adversário ser assassinado pela Al-Qaeda. Antes desse ataque, no entanto, Massoud tornou-se um
dos principais aliados do Ocidente no combate aos islamistas, viajando pelos
Estados Unidos e pela Europa em busca de apoios para combater os talibãs.
Em
França, escreve o Politico, Massoud tornou-se mesmo numa espécie de “celebridade
nacional romantizada”, depois de, em 1998, o jornalista e realizador Christophe
de Ponfilly ter feito um documentário sobre o mujahideen, intitulado “Massoud, o Afegão”. Além disso, Massoud deu
nome a um caminho nos jardins dos Campos Elísios, em Paris. No Afeganistão,
após a queda dos talibãs, o dia da morte
de Massoud — 9 de setembro — tornou-se feriado nacional, dando força à imagem lendária que adquiriu no país.
Perante
este legado de resistência, com os
talibãs de volta ao poder, não é de estranhar que as atenções se
tenham virado para o filho do “Leão
de Panshir”, que
entrou na vida política em 2019, e está muito longe de ter o carisma e a
experiência do seu pai.
“Massoud não é um líder tão
carismático como o seu pai. É muito jovem, passou a sua vida na Europa. Não há
qualquer comparação com o seu pai, que era uma lenda, alguém que era visto como
um lutador pela soberania do Afeganistão, que não lutava pelos seus
interesses”, sublinha o analista Abdul Sayed.
Apesar
disso, Ahmad Massoud está à
procura de aliados externos, e o
artigo de opinião que escreveu no Washington Post é prova disso, com o líder da
FNR a admitir que os “os recursos militares e logísticos [da resistência] não
serão suficientes”, daí apelar à ajuda dos “amigos no Ocidente”, nomeadamente
aos Estados Unidos, França e Reino Unido no envio de armas.
Se é no apoio dos Estados Unidos e da
Administração Biden que a resistência afegã deposita as suas maiores
esperanças, Ahmad Massoud aposta também em força na França para angariar
apoios. Em março, antes de os talibãs tomarem Cabul, Ahmad Massoud viajou até
França, onde se encontrou com o Presidente francês Emmanuel Macron e com a
presidente da Câmara de Paris, Anne Hidalgo.
Já
depois da chegada ao poder dos islamistas, escreveu
uma carta a Bernard-Henri Lévy,
publicada pelo Journal du Dimanche,
apelando a a que o influente filósofo francês interpele diretamente
Macron para que o chefe de Estado francês não desista do Afeganistão, uma vez
que a “a França é o nosso único recurso, a única esperança que nos resta”. Ao
telefone, conforme o próprio Lévy revelou, Massoud disse-lhe que a resistência
“apenas está a começar” e que “desistir
não faz parte do seu vocabulário”.
O
número de combatentes nas fileiras da FNR não é certo — estima-se que seja
entre seis a dez mil combatentes,
de acordo com as declarações dos últimos dias de alguns membros da organização
—, mas Ali Nazary, porta-voz do grupo, garantiu, numa
entrevista à BBC esta
segunda-feira, que a FNR tem “milhares de forças prontas para a resistência”.
Entre essas forças, conforme o
próprio Ahmad Massoud tem afirmado em entrevistas e artigos de opinião, estão militares que fugiram
após a tomada do poder por parte dos talibãs, além de outros resistentes que
vieram de vários pontos do Afeganistão para se juntarem à sua resistência
armada, além de ativistas pelos direitos humanos, intelectuais, mulheres e
políticas que se sentem ameaçados pelos talibãs.
Ahmad Massoud garante que a prioridade da FNR é dialogar e chegar a
um acordo de paz, que, para a organização de resistência, poderá passar pela
cedência de poder, dando mais autonomia às etnias minoritárias afegãs — em
suma, um governo mais descentralizado e não totalmente controlado pelos talibãs.
No seio da resistência há, no
entanto, algumas divisões, e o vice-presidente deposto Amrullah Saleh, por exemplo, não quer ceder e tem sido muito crítico
em relação ao Paquistão,
considerado um aliado dos talibãs afegãos, enquanto Massoud defende
maior proximidade com o país vizinho.
Com o Vale de Panshir cercado, as hipóteses da FNR, que já admitiu
estar pronta para um conflito de longo prazo, diminuem, embora tenha do seu
lado o valor simbólico da província que resistiu aos soviéticos e ao primeiro
regime talibã. Irá a história repetir-se? A resposta poderá ser conhecida em
breve, enquanto no Vale de Panshir se aguardam as respostas de Washington e
Paris aos pedidos de ajuda.
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