E tudo se recomporá, com a ajuda da
China penetrante, da Rússia que também não deixa os seus créditos por mãos
alheias. É o que dá a entender o texto seguinte de Rita Cipriano que relata bem os acontecimentos no Afeganistão. O
Paquistão e a Índia também darão a sua ajudinha, vamos esperar.
Como em apenas três meses os talibãs
conseguiram entrar em Cabul e derrubar o governo afegão /premium
Em três meses, os talibãs derrubaram o
governo e o sonho de um Afeganistão democrático. O que se espera agora com a
chegada dos extremistas à capital. E o risco para as mulheres.
OBSERVADOR, 15 ago
2021
Em abril, quando os Estados Unidos da América anunciaram a
retirada total das suas tropas do território afegão, na sequência de um
acordo de paz firmado pela antiga Administração com os talibãs, a Missão de Assistência das Nações Unidas
no Afeganistão publicou um relatório que antecipava o pior dos cenários:
nos primeiros três meses de 2021, o número de vítimas mortais civis
provocadas pelo conflito tinha aumentado 29% em relação ao mesmo período do ano
anterior. No caso específico das mulheres, o crescimento tinha sido de 37% e,
nos menores, de 23%. Ao mesmo tempo que os Estados Unidos anunciavam a
retirada, a tensão no território era cada vez mais evidente. O desfecho
(anunciado) deu-se este domingo: 20 anos depois da invasão do
Afeganistão, os talibãs voltaram ao poder.
A guerra no Afeganistão começou em
2001. Após os atentados terroristas de 11 de setembro, o governo de George W.
Bush declarou guerra ao terrorismo e prometeu encontrar o líder da Al-Qaeda, o
grupo responsável pelos ataques, Osama bin Laden. Os talibãs, que lideravam o
Afeganistão desde o início dos anos 90 através de uma forma de governo
totalitária, recusaram-se a entregar Bin Laden, que teria encontrado refúgio na
região. Os Estados Unidos responderam militarmente e uma coligação
internacional juntou-se-lhes para derrubar os líderes talibãs. Um novo governo
apoiado pelos Estados Unidos foi estabelecido em 2004, mas os talibãs
nunca deixaram de exercer influência em certas zonas do território ou de
alimentar a guerra que, em 20 anos, custou
a vida a perto de 50 mil afegãos.
Nada que impedisse a assinatura de um
acordo de paz, a 29 de fevereiro de 2020. A retirada de tropas era um sonho antigo
dos Presidentes norte-americanos, de Barack Obama a Donald Trump. E Trump,
responsável pelo acordo, fez questão de que fosse concretizado o mais
rapidamente possível — após a assinatura, o número de militares no Afeganistão
foi rapidamente reduzido, preparando o terreno para a retirada total das forças
militares até 1 de maio de 2021, tal como previa o documento. Em
contrapartida, os talibãs deviam iniciar negociações de paz com o governo
afegão e trabalhar para impedir que qualquer grupo terrorista, nomeadamente a
Al-Qaeda, operasse no Afeganistão.
Apesar da vontade
dos norte-americanos, as negociações de paz, iniciadas em Setembro desse ano,
rapidamente arrefeceram, deixando o país mais ou menos no ponto em que estava
antes de começarem. Mas a retirada das tropas dos Estados Unidos continuou a
avançar, e quando Joe Biden assumiu o cargo presidencial a 20 de janeiro de
2021 restavam apenas 2.500 soldados e 16 mil civis auxiliares em solo afegão.
Assim que chegou à Casa Branca, Biden decidiu
suspender a operação, alegando que precisava de analisar melhor a situação.
Acabou por optar por dar continuidade à retirada, anunciando que, até 11 de setembro,
quando se assinalam os 20 anos dos ataques ao World Trade Center e do início da
guerra no Afeganistão, todas as tropas dos Estados Unidos no Afeganistão
voltariam para casa.
No mesmo dia de
abril, numa acção coordenada com os Estados Unidos, a NATO comunicou a retirada
das suas forças militares, também até 11 de setembro O governo afegão reagiu,
dizendo que apoiava todas as decisões dos Estados Unidos e das forças
internacionais, mostrando-se confiante de que seria capaz de responder sozinho
às dificuldades no terreno.
“As forças de segurança e defesa afegãs têm defendido
o nosso povo com moral alto nos últimos dois anos e, nos últimos tempos,
realizaram mais de 98% das operações de forma independente. São perfeitamente
capazes de continuar a fazê-lo no futuro”, defendeu
então Waheed Omer, conselheiro principal do Presidente
afegão.
Descontentes com o adiamento da retirada
dos militares, que segundo o acordado em 2020 deveria acontecer até 1 de maio,
os talibãs ameaçaram boicotar todas as negociações de paz, paradas desde
setembro, e retomar os ataques às tropas internacionais. Apesar das ameaças, o
governo norte-americano parecia não acreditar que os rebeldes fossem capazes de
organizar uma resposta eficaz ao ponto de ameaçar a paz e estabilidade do país.
Uma possibilidade
que Joe Biden continuou a negar: em Julho, quando comunicou que a retirada dos
militares norte-americanos estaria concluída mais cedo do que era expectável,
até 31 de agosto, o Presidente dos Estados Unidos declarou que “a
probabilidade de os talibãs controlarem o país inteiro” era “extremamente
improvável”. Há dois meses que os
talibãs conquistavam territórios de norte a sul do país. Como poderá Biden ter
falhado o diagnóstico?
▲ O acordo de paz entre os Estados
Unidos da América e os talibãs foi assinado durante a Presidência de Donald
Trump MICHAEL REYNOLDS/EPA
A
apressada retirada das forças norte-americanas no Afeganistão não foi bem
vista. Bush, o Presidente que deu início à guerra em 2001,
considerou a decisão de Biden “um erro”, opinião que é partilhada por muitos
outros membros da oposição e também por democratas, que temem o regresso da
Al-Qaeda e o aumento do terrorismo no ocidente.
As críticas também se têm multiplicado
fora dos Estados Unidos. Ben Wallace,
ministro da Defesa do Reino Unido, mostrou-se igualmente contra a retirada das
tropas, que, na sua opinião, “causou muitos problemas”. “[A saída] deixa um
grande, grande problema. Foi por isso que disse que este não é o tempo nem a
altura certa, porque provavelmente a Al-Qaeda vai voltar”, disse, em
entrevista à Sky News. “Estados falhados levam à instabilidade e à insegurança,
uma ameaça para nós e para os nossos interesses.”
Com
o agravamento da situação em agosto, também o governo afegão decidiu
apontar o dedo à Administração Biden, apesar
de inicialmente ter mostrado o seu apoio. Num discurso feito no início deste
mês no parlamento afegão, o Presidente, Ashraf Ghani, declarou que “a situação actual” se devia “à brusca decisão de
Washington” de retirar as suas tropas até ao final de agosto.
Na
mesma ocasião, Ghani disse ter preparado um plano para conter os avanços das forças
talibãs, que eram já bastante significativos. Porém, não adiantou quaisquer
detalhes sobre o que planeava fazer, uma situação que se repetiria com a
chegada dos talibãs às portas de Cabul. Desde o início que o governo afegão
mostra ser incapaz de reagir e fazer frente aos rebeldes.
Uma conquista relâmpago em
três meses
A
assinatura das tréguas entre norte-americanos e talibãs não fez a violência
desaparecer, como mostra o relatório da Missão de Assistência das Nações Unidas
no Afeganistão divulgado em Abril. No início do ano, ainda antes do anúncio de
Biden, já se registava um aumento significativo de vítimas civis.
A
situação piorou drasticamente a partir de maio, quando os talibãs, atentos às
movimentações internacionais, decidiram aproveitar o aceleramento do processo
de retirada das tropas dos Estados Unidos para avançar pelo território. O grupo
extremista começou por dominar áreas rurais, procurando depois controlar as
grandes cidades e capitais de província, que foram caindo, uma a uma, como um
baralho de cartas. Na maioria
das localidades, não encontraram qualquer resistência.
A
conquista foi avançando a bom ritmo e, em Julho, enquanto
Joe Biden negava a probabilidade de os talibãs tomarem conta do poder no Afeganistão,
o grupo garantia que já
dominava cerca de 85% do território. A
entrada do mês de agosto trouxe um agravamento da situação que, por essa
altura, começava a parecer irreversível: em apenas oito dias, os talibãs
capturaram perto de metade das capitais de província, obtendo o controlo sobre
a maior parte do norte, oeste e sul do país.
Com
o cerco a fechar-se em torno da capital, Canadá, Estados Unidos e Reino
Unido anunciaram o envio de militares para retirar os diplomatas e outros cidadãos
e os colaboradores afegãos. Enquanto as forças internacionais se mobilizavam, o
governo afegão mantinha um perturbador silêncio.
Esse
silêncio só foi quebrado este sábado de manhã, quando parecia que já não havia
nada que se pudesse fazer para conter o avanço dos talibãs e impedir a
conquistar de Cabul. Apenas três cidades permaneciam sob domínio
governamental. Numa mensagem previamente gravada e transmitida pela televisão
nacional, o Presidente do Afeganistão falou na remobilização das forças
militares, a “grande prioridade”, e prometeu tentar ajudar os vários milhões de
deslocados provocados pelo conflito.
Segundo
as contas das Nações Unidos, desde maio, o conflito provocou 250 mil
deslocados, dos quais 80% são mulheres e crianças. “Na situação actual, a remobilização das nossas forças
de defesa e segurança é a nossa grande prioridade. Passos sérios foram tomados
nesse sentido”, declarou Ashraf Ghani.
Sem
explicar que passos seriam esses,
Ghani, que parecia não ter consciência da gravidade da situação, revelou
que tinha iniciado consultas com outros membros do governo, líderes políticos,
representantes afegãos e parceiros internacionais com o objectivo de encontrar
“uma solução política razoável e certeira” que assegurasse a paz e estabilidade
no Afeganistão. O resultado desses encontros seria anunciado em breve. “Entendo
que estão preocupados com o vosso futuro. Asseguro-vos como vosso Presidente
que vou concentrar-me em evitar a expansão da instabilidade, da violência e dos
deslocados”, declarou.
▲ Desde maio, o
conflito no Afeganistão provocou 250 mil deslocados, dos quais 80% são mulheres
e crianças GETTY IMAGES
Pouco
mais de 24 horas depois, quando os talibãs se preparavam para invadir Cabul,
Ashraf Ghani abandonou o país, entregando o governo a uma “administração de
transição”. O ministro do Interior, a quem coube anunciar a queda do governo do
Afeganistão, garantiu que a passagem será pacífica e que as forças de segurança
irão manter-se na capital para assegurar a “segurança de Cabul” e dos seus
habitantes.
Num comunicado emitido horas depois,
Ghani explicou que saiu do Afeganistão para evitar um “banho de sangue”. “Os
talibãs ganharam e são agora responsáveis pela honra, a posse e a
autopreservação do seu país”, disse, apelando a que todos os afegãos,
homens, mulheres e crianças, sejam protegidos.
Um Estado falhado
Ao
longo de duas décadas de conflito, os Estados Unidos centraram grande parte dos
seus recursos (financeiros e humanos) em formar
forças armadas afegãs que fossem capazes de assegurar a unidade do país no
pós-retirada. A Blitz talibã
provou que as forças leais ao governo afegão não estavam minimamente preparadas
para resistir ao avanço.
Em parte, graças à corrupção
estrutural de um Estado que nunca chegou a sê-lo. À medida que entravam no território, sempre sem grande
resistência, os talibãs conseguiram comprar a desistência das
forças governamentais (e armas de origem norte-americana) a troco de dinheiro e
promessas de poder.
Em igual medida, o anúncio da retirada
das tropas norte-americanas desmobilizou e desmotivou umas forças armadas
afegãs já de si impreparadas. Assim que perceberam que os Estados Unidos
estariam efectivamente de saída e que o governo afegão seria incapaz de segurar
o país, os militares foram desistindo de resistir ao avanço afegão — em muitos
casos, a conquista de territórios deu-se sem que fosse trocado um único tiro.
E agora, que futuro? China,
Rússia, Paquistão e Índia têm uma palavra a dizer
Com a transição de poder em
curso, surgem questões relacionadas com o futuro do Afeganistão. O maior receio
é que as forças talibãs tentem recuperar o antigo regime totalitário, marcado
por restrições à liberdade da grande maioria da população e violações dos
direitos humanos, e que este fomente o regresso em força de grupos terroristas
como a Al-Qaeda, uma preocupação para os governos ocidentais.
Por enquanto,
os talibãs têm optado por um discurso “pacifista”, com os líderes dos rebeldes
a assegurarem à população afegã que nada lhes acontecerá e que os seus direitos
estarão assegurados. Foi precisamente isso que
Suhail Shaheen disse a um jornalista da BBC, numa altura em que as forças
rebeldes já se encontravam dentro da capital. “Asseguramos ao povo do Afeganistão, e em particular da cidade de
Cabul, que as suas propriedades e as suas vidas estão asseguradas”, declarou o
porta-voz. “Somos servos deste povo e deste país.”
O mesmo foi dito
à Associated Press, já depois de terem controlado o palácio presidencial,
durante a noite deste domingo: o objectivo,
disseram as forças talibãs, é formar um “governo aberto, inclusivo e islâmico”.
Uma
das preocupações da comunidade internacional é que a chegada ao poder dos
talibãs volte a fazer do Afeganistão um viveiro de terroristas sem controlo
possível. Recorde-se que foi essa a grande motivação assumida pelos
norte-americanos para invadir o país.
Além disso, como recorda a National
Public Radio (NPR), a subida ao poder dos talibãs pode desestabilizar a
região, em particular o Paquistão, um dos poucos países que, no passado, entre
1996 e 2001, reconheceu o Emirado Islâmico do Afeganistão.
A
aparente proximidade do Paquistão aos talibãs explica-se, em parte, como contrapeso
à crescente influência indiana no Afeganistão. Existe, por isso, uma disputa
pelos recursos do território afegão e pelo domínio da região.
Depois (ou sobretudo) entra a China: os dois países têm interesses
estratégicos no país — rico em cobre, lítio, mármore e urânio — e um
regime simpático (logo, sem influência norte-americana) permitirá ligar a China
ao Paquistão para a Nova Rota da Seda.
A influência da China no território é, aliás, cada vez mais evidente. A 28 de
julho, o chefe da diplomacia da China, Wang Yi, recebeu, em Tianjin, uma delegação
dos talibãs que incluía o seu líder político, o mullah Abdul Ghani Baradar.
Nesse encontro, Wang Yi não
escondeu ao que ia: a retirada das tropas norte-americanas e da NATO
revelava “o falhanço das políticas da América” e Pequim esperava “desempenhar
um papel importante no processo de reconciliação pacífica e reconstrução no
Afeganistão”, assumiu o responsável chinês. Novamente de acordo com a
NPR, a China já terá prometido grandes investimentos na área das
infraestruturas e da energia.
Moscovo, por sua vez,
quer evitar a todo o custo que o Afeganistão, com quem partilha fronteiras e
com quem, no passado, já travou um sangrento e traumático conflito, permita o
reforço de organizações terroristas como o Daesh.
Uma ameaça apontada ao coração
das afegãs
Em relação às mulheres, tem sido também garantido que nada mudará com a
tomada do poder. Shaheen afirmou mesmo que os talibãs estão dispostos a
“respeitar os direitos das mulheres”, contrariando assim as políticas
ultraconservadoras anteriormente impostas, que negavam qualquer tipo de
educação às mulheres. “A nossa política é a de que as
mulheres terão acesso à educação e ao trabalho e usarão o hijab”, afirmou, citado pelo The
Guardian. O hijab difere da burka por
permitir às mulheres mostrarem a cara, mantendo o cabelo e pescoço escondidos.
Mas as
promessas poderão não passar disso mesmo. O medo de um retrocesso torna-se mais
real quando se olha para as localidades que já se encontram efectivamente nas
mãos dos talibãs. Em Kandahar, as nove funcionárias de um banco foram obrigadas a abandonar
os seus postos de trabalho, sendo-lhes dito que iam ser substituídas por homens. Em Kunduz, onde um novo
presidente da câmara já tomou posse, foi anunciado que as mulheres que
trabalham para o governo devem ficar em casa, assim como os assessores de
imprensa, contou o The New York Times. Não há
lugar para eles no novo regime.
As mudanças em
Kunduz não ficaram por aqui. A venda de bebidas alcoólicas foi proibida esta
quarta-feira, o dia em que deixaram de vender frangos congelados na cidade. O
anúncio foi feito pelo novo autarca, Gul Mohammad Elias, durante uma reunião
com os empregados da câmara. Elias fez questão de se fazer acompanhar por uma
escolta de homens armados, mas manteve o tom tranquilo com que, durante essa
semana, tentou convencer os funcionários a voltarem ao trabalho.
Com o avanço das tropas talibãs e a
queda do governo local, muitos trabalhadores deixarem de ir trabalhar. Uma
situação que Elias tentou reverter através do uso da retórica e da demonstração
de armas: segundo relata o The New York Times, combatentes do grupo extremista
começaram a ir de porta em porta à procura dos funcionários públicos que,
paralisados, insistiam em ficar em casa, ao mesmo tempo que foram estabelecidos
pontos de controlo em vários locais da cidade. À entrada do hospital, foi
colocada uma nota alertando os funcionários que deviam regressar ou seriam
castigados.
Apesar de Gul Mohammad Elias ter
garantido ao jornal norte-americano que a sua luta “não é contra o município”,
mas contra as forças que ocuparam o território, os habitantes de Kunduz
estão assustados. “Tenho medo, porque não sei o que vai acontecer e o que
irão fazer”, admitiu um residente que não quis ser identificado. “Temos de
lhes sorrir, porque estamos assustados, mas no fundo estamos muito infelizes.”
AFEGANISTÃO MUNDO TALIBÃ TERRORISMO
Nenhum comentário:
Postar um comentário