Não pude resistir a copiar o texto de Eça, segundo o apelo final de JOSÉ MILHAZES nesta sua excelente análise das consequências da retirada americana do Afeganistão. A nós, leigos, resta-nos esperar. E temer. Mas uma coisa me parece certa: todas essas invasões de ingleses e americanos por essas paragens do mundo asiático, apesar do pioneirismo precedente, de portugueses e espanhóis, têm contribuído para o enriquecimento cultural dos povos, onde deixaram a sua dedada linguística. Mas veremos o que vai seguir-se, com a Rússia e a China a caminho, já.
Afeganistão: Putin e Xi Jinping não
leram Eça de Queirós /premium
O desastre militar norte-americano e
da NATO no Afeganistão vem dar novos argumentos aos países que desafiam o
poderio dos Estados Unidos no campo internacional, como é o caso da Rússia e da
China.
JOSÉ MILHAZES Colunista
do Observador. Jornalista e investigador
OBSERVADOR, 16 ago
2021, 00:021
A queda de Cabul na mão dos talibãs
ocorreu muito mais rapidamente do que muitos previam. A saída das tropas norte-americanas do
Afeganistão mais se assemelhou à fuga delas do Vietname do que a uma retirada
programada e ordeira. Um péssimo serviço ao combate contra o terrorismo e a
criação de um perigoso foco de instabilidade na Ásia Central, que se poderá
repercutir noutras regiões do planeta.
É um facto que um grupo extremista islâmico obrigou as tropas dos
Estados Unidos e da NATO a retirarem-se apressadamente do Afeganistão. Se os talibãs conseguiram isso,
porque é que outros movimentos radicais não conseguirão o mesmo noutros países
islâmicos? Este exemplo pode ser ainda mais contagioso entre as
camadas jovens, as mais atingidas pelo desemprego, a corrupção e a falta de
perspectivas nos seus países.
No que à União Europeia diz respeito, o gravíssimo erro estratégico
norte-americano e da NATO poderá reanimar ondas de atentados terroristas e de
imigração ilegal.
No próprio Afeganistão, os Estados
Unidos e a NATO traíram aqueles que confiaram na sua política e, agora, são
abandonados à sua sorte, que não deverá ser nada invejável. Os talibãs, não obstante todas as promessas, já
deram provas suficientes de fanatismo, intolerância e de vingança medieval.
Washington e os seus aliados
ocidentais poderiam ter dado alguns passos com vista a impedir o regresso dos
talibãs ao poder: pressionar o Paquistão a deixar de ser campo de treino dos
terroristas afegãos e a cortar-lhes o apoio logístico ou a criar uma elite e
instituições políticas e militares capazes de governar o país. Tiveram 20 anos
para fazer isso, mas pouco ou nada foi realizado.
O desastre militar
norte-americano e da NATO no Afeganistão vem dar novos argumentos aos países
que desafiam o poderio dos Estados Unidos no campo internacional, como é o caso
da Rússia e da China. Moscovo
tem razões para se regozijar e não esconde esse sentimento. As
razões para isso são duas: os
Estados Unidos enfraquecem fortemente as suas posições na Ásia Central, região
que a Rússia considera fazer parte da sua zona de influência. A segunda, consideram os dirigentes russos, é que
a retirada das tropas norte-americanas do Afeganistão é mais um exemplo do fracasso
da política de “unipolarismo” e da necessidade da Rússia de reforçar a sua
política e presença no campo internacional.
As razões da China não deverão divergir muito das do Kremlin, sendo também semelhantes os receios quanto ao
desenrolar da situação. Nem
chineses nem russos têm a certeza de que os talibãs e outros grupos extremistas
armados afegãos não pretendem fazer transbordar o conflito para lá das
fronteiras do Afeganistão. Pequim teme
que os extremistas afegãos possam incentivar o separatismo e a luta armada em
Xinjiang, região onde os muçulmanos constituem a maioria da população e são
vítimas de graves perseguições por parte das autoridades comunistas chinesas.
A Rússia vai concentrar os seus esforços para que os movimentos
armados radicais não se infiltrem em países como a Quirguízia, Tadjiquistão,
Uzbequistão e Cazaquistão e, daí, nas regiões muçulmanas da Federação da Rússia. Para evitar esses cenários,
as diplomacias de Moscovo e Pequim, andam, há muito tempo, a “namorar” os talibãs,
receberam os mais altos responsáveis de uma organização cujo nome, por exemplo,
na Rússia, só pode ser pronunciado acompanhado da definição “grupo
terrorista”. Deste modo, russos e chineses legitimizam os
“barbudos afegãos” na esperança de que estes controlem a situação no
Afeganistão, contribuam na luta contra o terrorismo e o tráfico de droga na
região.
Porém,
esta será uma tarefa colossal tendo em conta os problemas étnicos e políticos
no Afeganistão. Alguns analistas chamam a atenção para o facto de não
haver unidade mesmo no seio dos talibãs.
Se os “velhos talibãs”, cansados de décadas de guerra, podem aceitar as
propostas russas e chinesas, os “novos talibãs” querem continuar a luta sagrada
contra os infiéis e levá-la a novos territórios. Os talibãs não são a
única organização terrorista a lutar no Afeganistão.
Na Rússia são muitos os que receiam
que o seu país se possa envolver num conflito armado e recordam a triste e
desastrosa experiência da direcção comunista, que decidiu ocupar militarmente o
Afeganistão e teve de se retirar dez anos depois.
Não se pode excluir a possibilidade
maquiavélica de os Estados Unidos terem abandonado tão rapidamente o
Afeganistão para provocar uma forte dor de cabeça a russos e chineses. Estes
terão de resolver os problemas que os Estados Unidos e a NATO não conseguiram.
Duvido
que líderes americanos como George W. Bush, Barack Obama, Donald Trump ou Joe
Biden tenham lido “Cartas de Inglaterra” de Eça de Queirós, mas, como ele escreve que “a História é uma velhota
que se repete sem cessar”, aconselho a que as embaixadas
da Rússia e da China enviem urgentemente traduções para os seus dirigentes. O
texto da carta sobre o Afeganistão é breve, mas muito instrutivo.
AFEGANISTÃO MUNDO RÚSSIA CHINA ESTADOS
UNIDOS DA AMÉRICA AMÉRICA
1ª
CARTA DE INGLATERRA de EÇA DE QUEIRÓS:
(in “CARTAS DE INGLATERRA”):
I - AFEGANISTÃO E IRLANDA
«Os Ingleses estão experimentando, no seu
atribulado império da Índia, a verdade desse humorístico lugar comum do século
XVIII: “A História é uma velhota que se repete sem cessar».
O Fado ou a Providência, ou a Entidade
qualquer que de lá de cima dirigiu os episódios da campanha do Afeganistão em
1847, está fazendo simplesmente uma cópia servil, revelando assim uma
imaginação exausta.
Em 1847 os Ingleses, “por uma razão de
Estado, uma necessidade de fronteiras científicas, a segurança do Império, uma
barreira ao domínio russo da Ásia…” e outras coisas vagas que os políticos da
Índia rosnam sombriamente, retorcendo os bigodes – invadem o Afeganistão, e aí
vão aniquilando tribos seculares, desmantelando vilas, assolando searas e
vinhas: apossam-se, por fim, da santa cidade de Cabul; sacodem do serralho um
velho emir apavorado; colocam lá outro de raça mais submissa, que já trazem
preparado nas bagagens, com escravas e tapetes; e logo que os correspondentes
dos jornais têm telegrafado a vitória, o exército, acampando à beira dos
arroios e nos vergéis de Cabul, desaperta o correame, e fuma o cachimbo da paz...
Assim é exactamente em 1880.
No nosso tempo, precisamente em 1847,
chefes enérgicos, messias indígenas, vão percorrendo o território, e com os
grandes nomes do Pátria e de Religião, pregam a guerra santa: as tribos reúnem-se,
as famílias feudais correm com os seus troços de cavalaria, príncipes rivais
juntam-se no ódio hereditário contra o estrangeiro, o homem vermelho e em pouco tempo é todo um rebrilhar de fogos de acampamento
nos altos das serranias, dominando os desfiladeiros que são o caminho, a
estrada da Índia… E quando por ali aparecer, enfim, o grosso exército inglês, à
volta de Cabul, atravancado de artilharia, escoando-se espessamente, por entre
as gargantas das serras, no leito seco das torrentes, com as suas longas
caravanas de camelos, aquela massa bárbara rola-lhe em cima e aniquila-o.
Foi assim em 1847, é assim em 1880. Então
os restos debandados do exército refugiam-se em alguma das cidades da
fronteira, que ora é Gasnat ora Candaar: os Afegãos correm, põem o cerco, cerco
lento, cerco de vagares orientais: o general sitiado, que nessas terras asiáticas
pode sempre comunicar, telegrafa para o vizo-rei da Índia, reclamando com furor
reforços, chá e açúcar! (Isto é
textual; foi o general Roberts que soltou há dias este grito de gulodice
britânica; o Inglês, sem chá, bate-se frouxamente). Então o governo da Índia,
gastando milhões de libras, como quem gasta água, manda a toda a pressa fardos
disformes de chá reparador. Brancas colinas de açúcar, e dez ou quinze mil
homens. De Inglaterra partem esses negros e monstruosos transportes de guerra,
arcas de Noé a vapor, levando acampamentos, rebanhos de cavalos, parques de
artilharia, toda uma invasão temerosa… foi assim em 1847, assim é em 1880.
Esta hoste desembarca no Indostão,
junta-se a outras colunas de tropa índia, e é dirigida dia e noite sobre a
fronteira em expressos a cinquenta milhas por hora; daí começa uma marcha
assoladora, com cinquenta mil camelos de bagagens, telégrafos, máquinas
hidráulicas e uma cavalgada eloquente de correspondentes de jornais. Uma manhã
avista-se Candaar ou Gasnat; - e num momento é aniquilado, disperso no pó da
planície o pobre exército afegão, com as suas cimitarras de melodrama, e as
suas caravanas colubrinas, do modelo das que outrora fizeram fogo em Diu.
Gasnat está livre! Candaar está livre! Hurra! – Faz-se imediatamente disto uma
canção patriótica; e a façanha é por toda a Inglaterra popularizada numa
estampa, em que se vê o general libertador e o general sitiado apertando-se a
mão com veemência, no primeiro plano, entre cavalos empinados e granadeiros
belos como apolos, que expiram em atitude nobre! Foi assim em 1847; há-de ser
assim em 1880.
No entanto, em desfiladeiro e monte,
milhares de homens que, ou defendiam a pátria ou morriam pela fronteira científica, lá ficam, pasto de
corvos – o que não é, no Afeganistão, uma respeitável imagem retórica: aí são
os corvos que nas cidades fazem a limpeza das ruas – comendo as imundícies, e
em campos de batalha purificam o ar, devorando os restos das derrotas.
E de tanto sangue, tanta agonia, tanto
luto, que resta por fim? Uma canção patriótica, uma estampa idiota nas salas de
jantar, mais tarde uma linha de prosa numa página de crónica…
Consoladora filosofia das guerras!
No entanto a Inglaterra goza por algum
tempo a “grande vitória do Afeganistão” – com a certeza de ter de recomeçar
daqui a dez anos ou quinze anos, porque nem pode conquistar e anexar um vasto
reino, que é grande como a França, nem pode consentir, colados à sua ilharga,
uns poucos de milhões de homens fanáticos, batalhadores e hostis. A política é debilitá-los
periodicamente, com uma invasão arruinadora. São as fortes cidades dum grande
império. Antes possuir apenas um quintalejo, com uma vaca para o leite e dois
pés de alface para as merendas de verão…
Outra história melancólica é a da Irlanda
……»
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