segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Mais uma viragem para um futuro incógnito


Não pude resistir a copiar o texto de Eça, segundo o apelo final de JOSÉ MILHAZES nesta sua excelente análise das consequências da retirada americana do Afeganistão. A nós, leigos, resta-nos esperar. E temer. Mas uma coisa me parece certa: todas essas invasões de ingleses e americanos por essas paragens do mundo asiático, apesar do pioneirismo precedente, de portugueses e espanhóis, têm contribuído para o enriquecimento cultural dos povos, onde deixaram a sua dedada linguística. Mas veremos o que vai seguir-se, com a Rússia e a China a caminho, já.

Afeganistão: Putin e Xi Jinping não leram Eça de Queirós /premium

O desastre militar norte-americano e da NATO no Afeganistão vem dar novos argumentos aos países que desafiam o poderio dos Estados Unidos no campo internacional, como é o caso da Rússia e da China.

JOSÉ MILHAZES Colunista do Observador. Jornalista e investigador

OBSERVADOR, 16 ago 2021, 00:021

A queda de Cabul na mão dos talibãs ocorreu muito mais rapidamente do que muitos previam. A saída das tropas norte-americanas do Afeganistão mais se assemelhou à fuga delas do Vietname do que a uma retirada programada e ordeira. Um péssimo serviço ao combate contra o terrorismo e a criação de um perigoso foco de instabilidade na Ásia Central, que se poderá repercutir noutras regiões do planeta.

É um facto que um grupo extremista islâmico obrigou as tropas dos Estados Unidos e da NATO a retirarem-se apressadamente do Afeganistão. Se os talibãs conseguiram isso, porque é que outros movimentos radicais não conseguirão o mesmo noutros países islâmicos? Este exemplo pode ser ainda mais contagioso entre as camadas jovens, as mais atingidas pelo desemprego, a corrupção e a falta de perspectivas nos seus países.

No que à União Europeia diz respeito, o gravíssimo erro estratégico norte-americano e da NATO poderá reanimar ondas de atentados terroristas e de imigração ilegal.

No próprio Afeganistão, os Estados Unidos e a NATO traíram aqueles que confiaram na sua política e, agora, são abandonados à sua sorte, que não deverá ser nada invejável. Os talibãs, não obstante todas as promessas, já deram provas suficientes de fanatismo, intolerância e de vingança medieval.

Washington e os seus aliados ocidentais poderiam ter dado alguns passos com vista a impedir o regresso dos talibãs ao poder: pressionar o Paquistão a deixar de ser campo de treino dos terroristas afegãos e a cortar-lhes o apoio logístico ou a criar uma elite e instituições políticas e militares capazes de governar o país. Tiveram 20 anos para fazer isso, mas pouco ou nada foi realizado.

O desastre militar norte-americano e da NATO no Afeganistão vem dar novos argumentos aos países que desafiam o poderio dos Estados Unidos no campo internacional, como é o caso da Rússia e da China. Moscovo tem razões para se regozijar e não esconde esse sentimento. As razões para isso são duas: os Estados Unidos enfraquecem fortemente as suas posições na Ásia Central, região que a Rússia considera fazer parte da sua zona de influência. A segunda, consideram os dirigentes russos, é que a retirada das tropas norte-americanas do Afeganistão é mais um exemplo do fracasso da política de “unipolarismo” e da necessidade da Rússia de reforçar a sua política e presença no campo internacional.

As razões da China não deverão divergir muito das do Kremlin, sendo também semelhantes os receios quanto ao desenrolar da situação. Nem chineses nem russos têm a certeza de que os talibãs e outros grupos extremistas armados afegãos não pretendem fazer transbordar o conflito para lá das fronteiras do Afeganistão. Pequim teme que os extremistas afegãos possam incentivar o separatismo e a luta armada em Xinjiang, região onde os muçulmanos constituem a maioria da população e são vítimas de graves perseguições por parte das autoridades comunistas chinesas.

A Rússia vai concentrar os seus esforços para que os movimentos armados radicais não se infiltrem em países como a Quirguízia, Tadjiquistão, Uzbequistão e Cazaquistão e, daí, nas regiões muçulmanas da Federação da Rússia. Para evitar esses cenários, as diplomacias de Moscovo e Pequim, andam, há muito tempo, a “namorar” os talibãs, receberam os mais altos responsáveis de uma organização cujo nome, por exemplo, na Rússia, só pode ser pronunciado acompanhado da definição “grupo terrorista”. Deste modo, russos e chineses legitimizam os “barbudos afegãos” na esperança de que estes controlem a situação no Afeganistão, contribuam na luta contra o terrorismo e o tráfico de droga na região.

Porém, esta será uma tarefa colossal tendo em conta os problemas étnicos e políticos no Afeganistão. Alguns analistas chamam a atenção para o facto de não haver unidade mesmo no seio dos talibãs. Se os “velhos talibãs”, cansados de décadas de guerra, podem aceitar as propostas russas e chinesas, os “novos talibãs” querem continuar a luta sagrada contra os infiéis e levá-la a novos territórios. Os talibãs não são a única organização terrorista a lutar no Afeganistão.

Na Rússia são muitos os que receiam que o seu país se possa envolver num conflito armado e recordam a triste e desastrosa experiência da direcção comunista, que decidiu ocupar militarmente o Afeganistão e teve de se retirar dez anos depois.

Não se pode excluir a possibilidade maquiavélica de os Estados Unidos terem abandonado tão rapidamente o Afeganistão para provocar uma forte dor de cabeça a russos e chineses. Estes terão de resolver os problemas que os Estados Unidos e a NATO não conseguiram.

Duvido que líderes americanos como George W. Bush, Barack Obama, Donald Trump ou Joe Biden tenham lido “Cartas de Inglaterra” de Eça de Queirós, mas, como ele escreve que “a História é uma velhota que se repete sem cessar”, aconselho a que as embaixadas da Rússia e da China enviem urgentemente traduções para os seus dirigentes. O texto da carta sobre o Afeganistão é breve, mas muito instrutivo.

AFEGANISTÃO  MUNDO  RÚSSIA  CHINA  ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA  AMÉRICA

 

1ª CARTA DE INGLATERRA de EÇA DE QUEIRÓS: (in “CARTAS DE INGLATERRA”):

I - AFEGANISTÃO E IRLANDA

«Os Ingleses estão experimentando, no seu atribulado império da Índia, a verdade desse humorístico lugar comum do século XVIII: “A História é uma velhota que se repete sem cessar».

O Fado ou a Providência, ou a Entidade qualquer que de lá de cima dirigiu os episódios da campanha do Afeganistão em 1847, está fazendo simplesmente uma cópia servil, revelando assim uma imaginação exausta.

Em 1847 os Ingleses, “por uma razão de Estado, uma necessidade de fronteiras científicas, a segurança do Império, uma barreira ao domínio russo da Ásia…” e outras coisas vagas que os políticos da Índia rosnam sombriamente, retorcendo os bigodes – invadem o Afeganistão, e aí vão aniquilando tribos seculares, desmantelando vilas, assolando searas e vinhas: apossam-se, por fim, da santa cidade de Cabul; sacodem do serralho um velho emir apavorado; colocam lá outro de raça mais submissa, que já trazem preparado nas bagagens, com escravas e tapetes; e logo que os correspondentes dos jornais têm telegrafado a vitória, o exército, acampando à beira dos arroios e nos vergéis de Cabul, desaperta o correame, e fuma o cachimbo da paz... Assim é exactamente em 1880.

No nosso tempo, precisamente em 1847, chefes enérgicos, messias indígenas, vão percorrendo o território, e com os grandes nomes do Pátria e de Religião, pregam a guerra santa: as tribos reúnem-se, as famílias feudais correm com os seus troços de cavalaria, príncipes rivais juntam-se no ódio hereditário contra o estrangeiro, o homem vermelho e em pouco tempo é todo um rebrilhar de fogos de acampamento nos altos das serranias, dominando os desfiladeiros que são o caminho, a estrada da Índia… E quando por ali aparecer, enfim, o grosso exército inglês, à volta de Cabul, atravancado de artilharia, escoando-se espessamente, por entre as gargantas das serras, no leito seco das torrentes, com as suas longas caravanas de camelos, aquela massa bárbara rola-lhe em cima e aniquila-o.

Foi assim em 1847, é assim em 1880. Então os restos debandados do exército refugiam-se em alguma das cidades da fronteira, que ora é Gasnat ora Candaar: os Afegãos correm, põem o cerco, cerco lento, cerco de vagares orientais: o general sitiado, que nessas terras asiáticas pode sempre comunicar, telegrafa para o vizo-rei da Índia, reclamando com furor reforços, chá e açúcar! (Isto é textual; foi o general Roberts que soltou há dias este grito de gulodice britânica; o Inglês, sem chá, bate-se frouxamente). Então o governo da Índia, gastando milhões de libras, como quem gasta água, manda a toda a pressa fardos disformes de chá reparador. Brancas colinas de açúcar, e dez ou quinze mil homens. De Inglaterra partem esses negros e monstruosos transportes de guerra, arcas de Noé a vapor, levando acampamentos, rebanhos de cavalos, parques de artilharia, toda uma invasão temerosa… foi assim em 1847, assim é em 1880.

Esta hoste desembarca no Indostão, junta-se a outras colunas de tropa índia, e é dirigida dia e noite sobre a fronteira em expressos a cinquenta milhas por hora; daí começa uma marcha assoladora, com cinquenta mil camelos de bagagens, telégrafos, máquinas hidráulicas e uma cavalgada eloquente de correspondentes de jornais. Uma manhã avista-se Candaar ou Gasnat; - e num momento é aniquilado, disperso no pó da planície o pobre exército afegão, com as suas cimitarras de melodrama, e as suas caravanas colubrinas, do modelo das que outrora fizeram fogo em Diu. Gasnat está livre! Candaar está livre! Hurra! – Faz-se imediatamente disto uma canção patriótica; e a façanha é por toda a Inglaterra popularizada numa estampa, em que se vê o general libertador e o general sitiado apertando-se a mão com veemência, no primeiro plano, entre cavalos empinados e granadeiros belos como apolos, que expiram em atitude nobre! Foi assim em 1847; há-de ser assim em 1880.

No entanto, em desfiladeiro e monte, milhares de homens que, ou defendiam a pátria ou morriam pela fronteira científica, lá ficam, pasto de corvos – o que não é, no Afeganistão, uma respeitável imagem retórica: aí são os corvos que nas cidades fazem a limpeza das ruas – comendo as imundícies, e em campos de batalha purificam o ar, devorando os restos das derrotas.

E de tanto sangue, tanta agonia, tanto luto, que resta por fim? Uma canção patriótica, uma estampa idiota nas salas de jantar, mais tarde uma linha de prosa numa página de crónica…

Consoladora filosofia das guerras!

No entanto a Inglaterra goza por algum tempo a “grande vitória do Afeganistão” – com a certeza de ter de recomeçar daqui a dez anos ou quinze anos, porque nem pode conquistar e anexar um vasto reino, que é grande como a França, nem pode consentir, colados à sua ilharga, uns poucos de milhões de homens fanáticos, batalhadores e hostis. A política é debilitá-los periodicamente, com uma invasão arruinadora. São as fortes cidades dum grande império. Antes possuir apenas um quintalejo, com uma vaca para o leite e dois pés de alface para as merendas de verão…

Outra história melancólica é a da Irlanda ……»


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