quinta-feira, 26 de agosto de 2021

Reflexão matinal

 

Trata-se do livro de SaramagoO Ano da Morte de Ricardo Reisda insónia nocturna, livro que, de resto, também dá para as leituras do prazer diurno, que Saramago definitivamente provoca, com o seu estilo acumulativo de referências estilhaçadas e mordazes, que, ao invés de traduzir uma capacidade ficcional desenhadora de intrigas e caracteres, põe em destaque, essencialmente, a figura sardónica do observador Saramago, ainda que integrado na pele das personagens que vai definindo segundo o seu próprio credo de astúcia política ferozmente observadora e condenatória da natureza humana, esta, de subserviências ou arrogâncias, em pormenor analítico que o estilo de “oralidade”, de fluxo contínuo, longo e acumulativo de pormenor - ressonância, talvez, das histórias outrora contadas à lareira, pelas tias ou avós, desenterradas aquelas da tradição secular - mas apenas no pormenor rítmico da pontuação, pois que o conteúdo em tudo diverge, no seu extraordinário relevo de pensamento e brilho de linguagem, em que a ausência da pontuação tradicional implica uma aplicação de curiosidade mais atenta e fascinada de cada leitor. É certo que, dificilmente as personagens têm autonomia própria, sendo resultado de um fio condutor dirigido pelo narrador omnisciente, lembrando, neste caso de “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, figuras pertencentes ao conteúdo poético, como essa tal da “interlocutora” Lídia, introdutória das “ODES” de Ricardo Reis, transformada, na trama romanesca de Saramago, em criada de hotel, servidora do hóspede Ricardo Reis que do Brasil chegara. Ficção de uma riqueza de pensamento e originalidade de trama e astúcia de linguagem dificilmente imitável, mas de absurda dificuldade de tradução para outras línguas, julgo. No fundo, o que encontraremos sempre, é a figura do autor-narrador, na tortuosidade do seu pensamento de troça e de sátira, de extraordinária sagacidade psicológica e crítica, cada personagem, como figura não autónoma, porque acima de tudo manipulada pelo seu omnisciente e pretensioso autor-narrador, sempre, em todo o caso, brilhante e sagazmente corrosivo.

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