De consequências
mais catastróficas ainda, que os talibans não são flor que se cheire, e não
tarda que dêem que falar. Pobres dos homens, mas, talvez mais, das mulheres
afegãs, que retornam aos seus esconderijos próprios de radicalismos estúpidos…
Embora compreenda as razões de Biden, centradas num cansaço de dispêndio de
homens e de dinheiros, julgo que teve uma atitude bastante traiçoeira com o
povo afegão – e com o mundo, afinal. Veremos.
Biden assume papel de conciliador dentro do próprio
partido
Afeganistão, Cuomo, pandemia e um
partido dividido: 4 pontos que explicam as tensões e insucessos dos primeiros
200 dias de Biden /premium
A situação no
Afeganistão complica-se a cada dia, metas da vacinação falharam, Cuomo ofuscou
vitória do Presidente e divisões no Partido Democrata dão dores de cabeça a
Biden: os primeiros 200 dias.
OBSERVADOR, 13 ago
2021,
“Os
líderes afegãos têm de lutar por eles mesmos, pela sua nação. Não me arrependo
da minha decisão.” Esta foi a resposta de Joe Biden na terça-feira quando confrontado com a possibilidade de voltar atrás com a decisão
de retirada das tropas norte-americanas do Afeganistão, num momento que os
talibã controlam cada vez mais regiões do país e estão a aproximar-se de Cabul
— esta sexta-feira, as forças rebeldes conseguiram conquistar uma cidade a 50
quilómetros da capital.
A
cumprir os 200 dias de mandato, o problema afegão não é o único que tem tirado
brilho à administração de Joe Biden — um Presidente muito longe de conseguir
“unir o país e sarar a América”, como
prometeu no discurso após a vitória nas eleições. Desde a pandemia, que está
novamente fora de controlo nos Estados Unidos, à divisão dentro do Partido
Democrata, passando pela demissão do governador de Nova Iorque (ex-aliado do
Presidente), são vários os motivos que têm dado dores de cabeça ao Presidente
norte-americano nestes primeiros tempos. Tudo isto num contexto em que o
chefe de Estado continua ainda com o fantasma de Donald Trump (cuja
aprovação ainda é significativa na sociedade norte-americana) e de uma possível
recandidatura em 2024.
A própria popularidade de Joe Biden já teve
melhores dias. Segundo uma sondagem
da Universidade Quinnipiac, a aprovação do Presidente dos EUA sofreu uma queda
em agosto — 46% dos americanos aprova a sua actuação, enquanto 43% responderam
negativamente. Em maio, 49% dos inquiridos eram favoráveis, contra 41%.
Biden
insiste em retirar tropas do Afeganistão e arrisca assistir ao controlo do país
pela Al-Qaeda
“A probabilidade de os talibã
controlarem o país inteiro é extremamente improvável.” Esta frase foi proferida em julho
por Joe Biden — numa altura em que a situação no Afeganistão não se tinha
agravado tanto como nos últimos dias. No entanto, passado um mês, as tropas
rebeldes estão a conseguir conquistar grandes parcelas do território afegão — e
já há várias reacções da comunidade internacional e dentro dos EUA a contestar
a decisão do Presidente norte-americano.
As
críticas somam-se e vêm de vários sectores da sociedade. Ryan Crocker,
ex-embaixador norte-americano no Afeganistão, denunciou “a
desordem” a que Joe Biden vetou o país. Paul Rieckhoff, um veterano de guerra
que esteve no conflito no Bagdade e em Cabul, alertou para o facto de líderes
americanos poderem vir a arrepender-se caso não decidam ajudar militarmente o
país: “Quando os talibã começarem a mandar vídeos de pessoas decapitadas, vai
ser impossível voltar atrás”.
Já
o líder republicano no Senado, Mitch McConnell , vincou que a “estratégia de Biden transformou uma situação
estável e imperfeita numa humilhação e numa emergência global”. Em termos políticos, mesmo dentro do Partido Democrata, tem existido
alguma oposição à retirada das tropas, principalmente da ala mais moderada.
A
"estratégia de Biden transformou uma situação estável e imperfeita numa
humilhação e numa emergência global"
Internacionalmente,
o ministro da Defesa britânico, Ben Wallace, também já veio criticar
publicamente a retirada de tropas do Afeganistão. “Estrategicamente,
a decisão dos Estados Unidos causou muitos problemas”, afirmou, admitindo mesmo
o retorno da Al-Qaeda: “Estados falhados levam à instabilidade e à
insegurança”.
Pandemia: a meta
que só chegou um mês depois
O 4 de julho é tradicionalmente
celebrado pelos norte-americanos por ser o Dia de Independência do país. Em 2021 haveria, supostamente, mais motivos para
festejar: Joe Biden prometera que nesse dia os EUA atingiriam a meta dos 70% de
adultos com pelo menos uma dose da vacina contra a Covid-19 administrada. Mas o
objectivo acabou por não se concretizar — só foi alcançado um mês depois, a 2
de agosto.
O
combate à pandemia é algo que não está a correr como o esperado e o Presidente norte-americano já admitiu isso mesmo
num tweet: “Ainda há muito por fazer”. Desde julho de 2021, os casos diários de
Covid-19 não param de subir nos EUA e já chegaram a ultrapassar em vários dias
os 100 mil, uma marca que já não era registada desde fevereiro deste ano. Na
origem do aumento de infecções estará a variante Delta, que representa 93% dos
contágios, e cuja transmissão cresceu exponencialmente — em maio
contabilizava 3% do total das infecções. “Este ressurgimento do vírus tem o
potencial de ser o pior que enfrentámos até agora”, disse à CNN o médico Jerome Adams, que já trabalhou na Casa
Branca.
As
hospitalizações também estão a crescer mais de 30% por semana, segundo dados do Centro de Controlo e Prevenção de Doenças
(CDC). Na semana de 27 de julho a 3 de agosto, em média, 89.977 pessoas foram
hospitalizadas devido a complicações associadas com o vírus. Os
hospitais dos estados do sul do país são os mais afectados e estão perto da ruptura,
algo que coincide com o facto de a vacinação não estar tão avançada.
No
Mississippi, por exemplo, verificou-se uma “subida fenomenal” dos casos
diários, que “é inteiramente atribuível à variante Delta, que está a varrer
o estado como um tsunami“, indicou Thomas Dobbs, responsável sanitário do
estado à CNN, acrescentando que “são os não vacinados que estão a causar o
aumento de casos — 89% da hospitalizações e 85% das mortes ocorrem em pessoas
que não foram inoculadas”. Num estado com praticamente três milhões de
habitantes, restam apenas dezenas de camas nas unidades de cuidados intensivos
dos hospitais estatais.
O
cenário é idêntico no Louisiana. Com os casos a aumentar e com quase três mil
utentes hospitalizados, o estado atingiu novos máximos nos últimos dias, quer
em termos de casos diários, quer em termos de internamentos. Segundo a contabilização oficial
deste estado do sul dos EUA, 90% das infecções ocorrem entre pessoas
que não receberam duas doses da vacina e 91% dos internados também não tinham o
esquema vacinal completo.
Este
é um problema que Joe Biden terá de resolver — combater a resistência às
vacinas, que se sente particularmente nos estados do sul. O Presidente
norte-americano já sugeriu
oferecer 100 dólares (cerca de 85 euros) a quem decidir vacinar-se e
já se reuniu com vários directores executivos de empresas para tentar obrigar a
que os trabalhadores ou sejam inoculados ou tenham de apresentar um teste
negativo regularmente.
Quanto
à resposta à pandemia, 53% dos norte-americanos vê como favorável a actuação da
administração Biden em comparação
com os 40% que a desaprovam. Em maio, 65% concordava com a gestão da saúde
pública e 30% eram contra. De acordo com o analista político Tim Malloy da Universidade
de Quinnipiac, o optimismo”
da Casa Branca em relação a “um verão de liberdade” foi “prematuro” — e isso teve impacto
na credibilidade do Presidente.
Em
termos médios, os EUA têm 71,2% dos adultos vacinados e 61,2% já têm o esquema
vacinal completo, apesar de os dados serem muito díspares entre os diferentes
estados — enquanto que no Vermont 87,4% das pessoas com mais de 18 anos já
tomaram pelo menos uma dose da vacina, no Mississippi essa percentagem é apenas
de 52,3%. Em comparação com outras realidades, o país esteve desde o arranque
da vacinação até meados de junho à frente da União Europeia, ou mesmo do
vizinho Canadá.
Contudo,
à medida que os meses foram avançando, a campanha de vacinação nos EUA
começou a perder fôlego. Esta sexta-feira, a média europeia de adultos
vacinados com pelo menos uma dose da vacina situa-se, de acordocom
o Centro Europeu de Controlo e Doenças (ECDC, sigla em inglês), nos 73% — 1,5
pontos percentuais à frente da norte-americana (71,5%). Com a vacinação
completa, já estão 62,3% dos adultos europeus, enquanto que há 61,3% de
norte-americanos totalmente imunizados.
A polémica Cuomo: de “aliado” a activo tóxico para o Presidente
Os
últimos dias de Joe Biden também ficaram marcados pela demissão
do governador de Nova Iorque, que decidiu
sair após ser acusado de assediar onze mulheres. Ambos pertencentes ao
Partido Democrata, os dois trabalharam durante décadas juntos e, em 2016,
Anthony Cuomo disse que via Biden como um “amigo para o qual podia ligar em
situações de emergência”. De acordo com o The New York Times, os dois eram tidos, o ano
passado, como os “pilares moderados do Partido Democrata”.
Após
a demissão do vice-governador, Joe Biden confessou estar “triste”, porque via no governador demissionário alguém
competente e que fez um “grande trabalho” — principalmente no sector das
infraestruturas — em Nova Iorque. Contudo, o Presidente norte-americano, que
já tinha sido uma voz a favor da demissão de Cuomo, respeitou a sua decisão,
mas salientou que apenas se deveu ao comportamento “fora dos assuntos
institucionais”.
Apesar
de vários analistas acreditarem não ser expectável que a demissão de Cuomo
tenha impacto na popularidade da administração Biden, a renúncia ao cargo
acabou por ofuscar uma das grandes vitórias de Biden, na terça-feira: a
aprovação pelo Senado (com o apoio de muitos senadores republicanos) do maior
investimento em obras públicas nos EUA a dez anos, que está estimado em 3,2 mil
milhões de dólares (cerca de um três mil milhões de euros). Com o objectivo
de reparar estradas e de fomentar a da ferrovia, este pacote de medidas criará
cerca de um milhão de empregos.
O timing da demissão do ex-governador
de Nova Iorque coincidiu com o anúncio da vitória no Senado. David Axelrod,
comentador político, considera suspeito que os dois acontecimentos tenham
ocorrido ao mesmo tempo. “A semana passada, o Presidente dos Estados Unidos
pediu ao seu velho aliado para demitir-se”, começa por dizer, referindo que
“hoje [passada terça-feira] Cuomo anunciou que ia demitir-se à mesma hora que o
Senado dava a Biden uma grande vitória nas infraestruturas”. “Talvez seja
coincidência, mas Cuomo sobrepôs-se à grande vitória de Biden”, frisou o
analista.
Progressistas e moderados em luta dentro do Partido Democrata
Joe
Biden conseguiu provar que o bipartidarismo ainda é possível com os
republicanos a darem a mão aos democratas para que o plano de investimentos nas
infraestruturas fosse aprovado. As cedências que o Presidente teve de fazer
em troca do voto favorável republicano levou, no entanto, a que a corrente
progressista dentro do próprio partido olhasse com desconfiança para Biden — e
começasse a considerar excessiva a sua moderação.
Alexandria
Ocasio-Cortez, uma das vozes progressistas mais firmes dentro do Partido
Democrata, considerou que da união entre republicanos e democratas não
significa que daí surja algo “bom”.
“A guerra foi bipartidária. O corte de impostos para os
ricos foi bipartidário. As ofertas de combustíveis fósseis são bipartidárias”, escreveu na sua conta pessoal do Twitter,
acrescentando que “só porque algo é bipartidário não o torna
intrinsecamente bom”. “A substância importa”, reforçou.
A
representante deixou ainda críticas ao plano, afirmando que os “EUA são mais
do que os subúrbios”. “As comunidades fora deles não são descartáveis”,
sublinhou. Da ala mais à esquerda do Partido Democrata, também Ro Khanna condenou a união entre os dois partidos e acusou os centristas
de não se comprometerem “da maneira como os progressistas têm feito”.
Além
da aprovação deste plano, o Partido Democrata vai ter de chegar a um consenso
sobre o que fazer com os mais de três mil milhões de euros destinados a cobrir
assuntos no âmbito da justiça
social, que incide
em áreas como a saúde, a educação e o clima. Este pacote de
investimentos foi aprovado na quarta-feira apenas pela maioria democrata no
Senado, mas ainda terá de haver decisão sobre em que áreas o montante será
empregue.
“Juntar
todas as peças será um desafio”, reconheceu o senador democrata Chris Van
Hollen, citado pelo the Wall Street Journal. O consenso parece
complicado, existindo uma oposição entre moderados, que criticam os gastos com
plano de justiça social e o aumento de impostos, e progressistas, que querem ir
mais longe nesta matéria.
Joe
Manchin, senador democrata pertencente à ala centrista, considera que os gastos com este plano estão a “níveis
irresponsáveis”, pondo em risco a capacidade de os EUA “responder a crises”. Por
seu turno, Bernie Sanders, mais progressista e que até propôs que o
investimento chegasse aos seis mil milhões de euros, considerou que o plano “vai
providenciar uma grande ajuda às crianças, aos pais e aos mais velhos” e
também “restaurar a crença de que na América se pode ter um governo que
trabalha para todos, não só para alguns”.
Joe
Manchin diz que gastos com plano de justiça social "são
irresponsáveis" e Bernie Sanders propôs que o investimento chegasse aos
seis mil milhões de euros
No meio de todas estas críticas e de
um partido totalmente dividido, Biden já veio reforçar a importância do pacote
de investimentos na área da justiça social, bem como assegurar, na
quarta-feira, que a agenda do plano social “era fiscalmente responsável” e um
“investimento de longo prazo”. Ainda que nem sempre esteja a resultar, este
parece ser o papel que o Presidente dos EUA quer assumir: o de conciliador.
JOE BIDEN ESTADOS
UNIDOS DA AMÉRICA AMÉRICA MUNDO CORONAVÍRUS SAÚDE PÚBLICA SAÚDE AFEGANISTÃO
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