domingo, 15 de agosto de 2021

A questão do Afeganistão


De consequências mais catastróficas ainda, que os talibans não são flor que se cheire, e não tarda que dêem que falar. Pobres dos homens, mas, talvez mais, das mulheres afegãs, que retornam aos seus esconderijos próprios de radicalismos estúpidos… Embora compreenda as razões de Biden, centradas num cansaço de dispêndio de homens e de dinheiros, julgo que teve uma atitude bastante traiçoeira com o povo afegão – e com o mundo, afinal. Veremos.

 

Biden assume papel de conciliador dentro do próprio partido

Afeganistão, Cuomo, pandemia e um partido dividido: 4 pontos que explicam as tensões e insucessos dos primeiros 200 dias de Biden /premium

A situação no Afeganistão complica-se a cada dia, metas da vacinação falharam, Cuomo ofuscou vitória do Presidente e divisões no Partido Democrata dão dores de cabeça a Biden: os primeiros 200 dias.

JOSÉ CARLOS DUARTE  .Texto

OBSERVADOR, 13 ago 2021,

“Os líderes afegãos têm de lutar por eles mesmos, pela sua nação. Não me arrependo da minha decisão.” Esta foi a resposta de Joe Biden na terça-feira quando confrontado com a possibilidade de voltar atrás com a decisão de retirada das tropas norte-americanas do Afeganistão, num momento que os talibã controlam cada vez mais regiões do país e estão a aproximar-se de Cabul — esta sexta-feira, as forças rebeldes conseguiram conquistar uma cidade a 50 quilómetros da capital.

A cumprir os 200 dias de mandato, o problema afegão não é o único que tem tirado brilho à administração de Joe Biden — um Presidente muito longe de conseguirunir o país e sarar a América”, como prometeu no discurso após a vitória nas eleições. Desde a pandemia, que está novamente fora de controlo nos Estados Unidos, à divisão dentro do Partido Democrata, passando pela demissão do governador de Nova Iorque (ex-aliado do Presidente), são vários os motivos que têm dado dores de cabeça ao Presidente norte-americano nestes primeiros tempos. Tudo isto num contexto em que o chefe de Estado continua ainda com o fantasma de Donald Trump (cuja aprovação ainda é significativa na sociedade norte-americana) e de uma possível recandidatura em 2024.

 A própria popularidade de Joe Biden já teve melhores dias. Segundo uma sondagem da Universidade Quinnipiac, a aprovação do Presidente dos EUA sofreu uma queda em agosto — 46% dos americanos aprova a sua actuação, enquanto 43% responderam negativamente. Em maio, 49% dos inquiridos eram favoráveis, contra 41%.

Biden insiste em retirar tropas do Afeganistão e arrisca assistir ao controlo do país pela Al-Qaeda

“A probabilidade de os talibã controlarem o país inteiro é extremamente improvável.” Esta frase foi proferida em julho por Joe Biden — numa altura em que a situação no Afeganistão não se tinha agravado tanto como nos últimos dias. No entanto, passado um mês, as tropas rebeldes estão a conseguir conquistar grandes parcelas do território afegão — e já há várias reacções da comunidade internacional e dentro dos EUA a contestar a decisão do Presidente norte-americano.

As críticas somam-se e vêm de vários sectores da sociedade. Ryan Crocker, ex-embaixador norte-americano no Afeganistão, denunciou “a desordem” a que Joe Biden vetou o país. Paul Rieckhoff, um veterano de guerra que esteve no conflito no Bagdade e em Cabul, alertou para o facto de líderes americanos poderem vir a arrepender-se caso não decidam ajudar militarmente o país: “Quando os talibã começarem a mandar vídeos de pessoas decapitadas, vai ser impossível voltar atrás”.

Já o líder republicano no Senado, Mitch McConnell , vincou que a “estratégia de Biden transformou uma situação estável e imperfeita numa humilhação e numa emergência global”. Em termos políticos, mesmo dentro do Partido Democrata, tem existido alguma oposição à retirada das tropas, principalmente da ala mais moderada.

A "estratégia de Biden transformou uma situação estável e imperfeita numa humilhação e numa emergência global"

Internacionalmente, o ministro da Defesa britânico, Ben Wallace, também já veio criticar publicamente a retirada de tropas do Afeganistão. “Estrategicamente, a decisão dos Estados Unidos causou muitos problemas”, afirmou, admitindo mesmo o retorno da Al-Qaeda: “Estados falhados levam à instabilidade e à insegurança”.

Pandemia: a meta que só chegou um mês depois

O 4 de julho é tradicionalmente celebrado pelos norte-americanos por ser o Dia de Independência do país. Em 2021 haveria, supostamente, mais motivos para festejar: Joe Biden prometera que nesse dia os EUA atingiriam a meta dos 70% de adultos com pelo menos uma dose da vacina contra a Covid-19 administrada. Mas o objectivo acabou por não se concretizar — só foi alcançado um mês depois, a 2 de agosto.

O combate à pandemia é algo que não está a correr como o esperado e o Presidente norte-americano já admitiu isso mesmo num tweet: “Ainda há muito por fazer”. Desde julho de 2021, os casos diários de Covid-19 não param de subir nos EUA e já chegaram a ultrapassar em vários dias os 100 mil, uma marca que já não era registada desde fevereiro deste ano. Na origem do aumento de infecções estará a variante Delta, que representa 93% dos contágios, e cuja transmissão cresceu exponencialmente — em maio contabilizava 3% do total das infecções. “Este ressurgimento do vírus tem o potencial de ser o pior que enfrentámos até agora”, disse à CNN o médico Jerome Adams, que já trabalhou na Casa Branca.

As hospitalizações também estão a crescer mais de 30% por semana, segundo dados do Centro de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC). Na semana de 27 de julho a 3 de agosto, em média, 89.977 pessoas foram hospitalizadas devido a complicações associadas com o vírus. Os hospitais dos estados do sul do país são os mais afectados e estão perto da ruptura, algo que coincide com o facto de a vacinação não estar tão avançada.

No Mississippi, por exemplo, verificou-se uma “subida fenomenal” dos casos diários, que “é inteiramente atribuível à variante Delta, que está a varrer o estado como um tsunami“, indicou Thomas Dobbs, responsável sanitário do estado à CNN, acrescentando que “são os não vacinados que estão a causar o aumento de casos — 89% da hospitalizações e 85% das mortes ocorrem em pessoas que não foram inoculadas”. Num estado com praticamente três milhões de habitantes, restam apenas dezenas de camas nas unidades de cuidados intensivos dos hospitais estatais.

O cenário é idêntico no Louisiana. Com os casos a aumentar e com quase três mil utentes hospitalizados, o estado atingiu novos máximos nos últimos dias, quer em termos de casos diários, quer em termos de internamentos. Segundo a contabilização oficial deste estado do sul dos EUA, 90% das infecções ocorrem entre pessoas que não receberam duas doses da vacina e 91% dos internados também não tinham o esquema vacinal completo.

Este é um problema que Joe Biden terá de resolver — combater a resistência às vacinas, que se sente particularmente nos estados do sul. O Presidente norte-americano já sugeriu oferecer 100 dólares (cerca de 85 euros) a quem decidir vacinar-se e já se reuniu com vários directores executivos de empresas para tentar obrigar a que os trabalhadores ou sejam inoculados ou tenham de apresentar um teste negativo regularmente.

Quanto à resposta à pandemia, 53% dos norte-americanos vê como favorável a actuação da administração Biden em comparação com os 40% que a desaprovam. Em maio, 65% concordava com a gestão da saúde pública e 30% eram contra. De acordo com o analista político Tim Malloy da Universidade de Quinnipiac, o  optimismo” da Casa Branca em relação a “um verão de liberdade” foi “prematuro” — e isso teve impacto na credibilidade do Presidente.

Em termos médios, os EUA têm 71,2% dos adultos vacinados e 61,2% já têm o esquema vacinal completo, apesar de os dados serem muito díspares entre os diferentes estados — enquanto que no Vermont 87,4% das pessoas com mais de 18 anos já tomaram pelo menos uma dose da vacina, no Mississippi essa percentagem é apenas de 52,3%. Em comparação com outras realidades, o país esteve desde o arranque da vacinação até meados de junho à frente da União Europeia, ou mesmo do vizinho Canadá.

Contudo, à medida que os meses foram avançando, a campanha de vacinação nos EUA começou a perder fôlego. Esta sexta-feira, a média europeia de adultos vacinados com pelo menos uma dose da vacina situa-se, de acordocom o Centro Europeu de Controlo e Doenças (ECDC, sigla em inglês), nos 73% — 1,5 pontos percentuais à frente da norte-americana (71,5%). Com a vacinação completa, já estão 62,3% dos adultos europeus, enquanto que há 61,3% de norte-americanos totalmente imunizados.

A polémica Cuomo: de “aliado” a activo  tóxico para o Presidente

Os últimos dias de Joe Biden também ficaram marcados pela demissão do governador de Nova Iorque, que decidiu sair após ser acusado de assediar onze mulheres. Ambos pertencentes ao Partido Democrata, os dois trabalharam durante décadas juntos e, em 2016, Anthony Cuomo disse que via Biden como um “amigo para o qual podia ligar em situações de emergência”. De acordo com o The New York Times, os dois eram tidos, o ano passado, como os “pilares moderados do Partido Democrata”.

Após a demissão do vice-governador, Joe Biden confessou estar “triste”, porque via no governador demissionário alguém competente e que fez um “grande trabalho” — principalmente no sector das infraestruturas — em Nova Iorque. Contudo, o Presidente norte-americano, que já tinha sido uma voz a favor da demissão de Cuomo, respeitou a sua decisão, mas salientou que apenas se deveu ao comportamento “fora dos assuntos institucionais”.

Apesar de vários analistas acreditarem não ser expectável que a demissão de Cuomo tenha impacto na popularidade da administração Biden, a renúncia ao cargo acabou por ofuscar uma das grandes vitórias de Biden, na terça-feira: a aprovação pelo Senado (com o apoio de muitos senadores republicanos) do maior investimento em obras públicas nos EUA a dez anos, que está estimado em 3,2 mil milhões de dólares (cerca de um três mil milhões de euros). Com o objectivo de reparar estradas e de fomentar a da ferrovia, este pacote de medidas criará cerca de um milhão de empregos.

O timing da demissão do ex-governador de Nova Iorque coincidiu com o anúncio da vitória no Senado. David Axelrod, comentador político, considera suspeito que os dois acontecimentos tenham ocorrido ao mesmo tempo. “A semana passada, o Presidente dos Estados Unidos pediu ao seu velho aliado para demitir-se”, começa por dizer, referindo que “hoje [passada terça-feira] Cuomo anunciou que ia demitir-se à mesma hora que o Senado dava a Biden uma grande vitória nas infraestruturas”. “Talvez seja coincidência, mas Cuomo sobrepôs-se à grande vitória de Biden”, frisou o analista.

Progressistas e moderados em luta dentro do Partido Democrata

Joe Biden conseguiu provar que o bipartidarismo ainda é possível com os republicanos a darem a mão aos democratas para que o plano de investimentos nas infraestruturas fosse aprovado. As cedências que o Presidente teve de fazer em troca do voto favorável republicano levou, no entanto, a que a corrente progressista dentro do próprio partido olhasse com desconfiança para Biden — e começasse a considerar excessiva a sua moderação.

Alexandria Ocasio-Cortez, uma das vozes progressistas mais firmes dentro do Partido Democrata, considerou que da união entre republicanos e democratas não significa que daí surja algo “bom”. “A guerra foi bipartidária. O corte de impostos para os ricos foi bipartidário. As ofertas de combustíveis fósseis são bipartidárias”, escreveu na sua conta pessoal do Twitter, acrescentando que “só porque algo é bipartidário não o torna intrinsecamente bom”. “A substância importa”, reforçou.

A representante deixou ainda críticas ao plano, afirmando que os “EUA são mais do que os subúrbios”. “As comunidades fora deles não são descartáveis”, sublinhou. Da ala mais à esquerda do Partido Democrata, também Ro Khanna condenou a união entre os dois partidos e acusou os centristas de não se comprometerem “da maneira como os progressistas têm feito”.

Além da aprovação deste plano, o Partido Democrata vai ter de chegar a um consenso sobre o que fazer com os mais de três mil milhões de euros destinados a cobrir assuntos no âmbito da justiça social, que incide em áreas como a saúde, a educação e o clima. Este pacote de investimentos foi aprovado na quarta-feira apenas pela maioria democrata no Senado, mas ainda terá de haver decisão sobre em que áreas o montante será empregue.

“Juntar todas as peças será um desafio”, reconheceu o senador democrata Chris Van Hollen, citado pelo the Wall Street Journal. O consenso parece complicado, existindo uma oposição entre moderados, que criticam os gastos com plano de justiça social e o aumento de impostos, e progressistas, que querem ir mais longe nesta matéria.

Joe Manchin, senador democrata pertencente à ala centrista, considera que os gastos com este plano estão a “níveis irresponsáveis”, pondo em risco a capacidade de os EUA “responder a crises”. Por seu turno, Bernie Sanders, mais progressista e que até propôs que o investimento chegasse aos seis mil milhões de euros, considerou que o plano “vai providenciar uma grande ajuda às crianças, aos pais e aos mais velhos” e também “restaurar a crença de que na América se pode ter um governo que trabalha para todos, não só para alguns”.

Joe Manchin diz que gastos com plano de justiça social "são irresponsáveis" e Bernie Sanders propôs que o investimento chegasse aos seis mil milhões de euros

No meio de todas estas críticas e de um partido totalmente dividido, Biden já veio reforçar a importância do pacote de investimentos na área da justiça social, bem como assegurar, na quarta-feira, que a agenda do plano social “era fiscalmente responsável” e um “investimento de longo prazo”. Ainda que nem sempre esteja a resultar, este parece ser o papel que o Presidente dos EUA quer assumir: o de conciliador.

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