Que terei pena de perder. São de Jaime Nogueira Pinto e uma vez
mais se debruçam sobre um modernismo que constrói o seu enriquecimento
tecnológico plutocrático que tudo avassala e engole, qual maré gigantesca galgando
barreiras universais, a caminho, talvez, do buraco negro do esquecimento
absoluto, para além da pretensão de uma esquerda monopolizadora de ideais de “humanidade”
generalizada - excepto para com os da convenção antiga, pautada pela sensatez
ideológica assente no saber da escrita antiga. Não posso deixar de as guardar, de
admirar a expressão de saber e ironia que as percorre, tentando agredir, mas
não fazendo efeito, montanha gemebunda, não parindo um rato, mas pelos ratos roída.
Que ratos - alguns - comentadores bem o assinalam, mangando, ou agredindo. Mas a montanha dos
seres que nela se escondem, intimamente a apreciando e com ela compartilhando a
ideologia e a angústia - mas que o medo e a inércia retêm - assim se deixa
engolir e apagar, quais dinossauros que apenas perdurarão nas ossadas e nos
trilhos de um mundo desaparecido um dia próximo.
A ofensiva/premium
O
modo como em algumas instituições académicas se instalou o terrorismo
intelectual contra os dissidentes ou não alinhados lembra a categoria de
"Unmensch", usada pelos nazis contra os inimigos.
JAIME NOGUEIRA
PINTO, Colunista do Observador
OBSERVADOR, 07 AGO 2021
Brincando aos Clássicos
Foi
numa conferência sobre o “O Futuro dos Clássicos”,
na Society of Classical Studies, em Janeiro de 2019, que Dan-el Padilla
Peralta, professor de História de Roma em Princeton e doutorado por Stanford, montou
a tenda: a fundamentação da escravatura, da ciência racial, do
colonialismo, do nazismo tinham sido semeadas no Ocidente euro-americano pelos
Estudos Clássicos, que, ao longo dos séculos, tinham vindo a promover o racismo
no ensino superior. O Partenon era o símbolo por excelência da
“civilização branca”, um monumento à opressão e à “branquitude”, e a herança
clássica, da Grécia e de Roma, alimento secular de uma cultura feita de
racismo, machismo, esclavagismo e elitismo civilizacional.
Mas
talvez ainda houvesse um futuro para os Clássicos. Um futuro com Peralta,
evidentemente, que reivindicava desde logo o feudo, sugerindo um estudo mais
participativo e apelativo da Antiguidade e dos seus branqueados abismos de
opressão e exclusão, um estudo-denúncia, envolvendo role-playing, sem o
discriminatório estorvo do conhecimento do Grego e do Latim – línguas
mortas que Peralta dominava e a que podia, por isso, dar vida, traduzindo-as
para os alunos de forma mais cativante, mais envolvente, mais actual, mais
“desperta”. Assim não sendo, não antevia grande futuro para os Estudos
Clássicos.
Mary
Frances Williams, uma
investigadora da Califórnia, contestou Padilla, argumentando que os conceitos de “liberdade,
igualdade e democracia” também tinham nascido nesse “opressivo mundo clássico”
e que não se encontravam vestígios deles em qualquer outra cultura ou
civilização antigas, do Oriente, da África ou da América. Burburinho na
sala. Revirar de olhos. Rasgar de vestes. Ainda podia ter acrescentado que a
própria admissão do contraditório, que abria caminho às sociedades modernas e
até à actual desconstrução das sociedades modernas, era também tributária da
cultura clássica, mas já não foi a tempo.
Esta
tentativa de debate pareceu-me um bom ponto de partida para falar da ofensiva
cultural que hoje assalta o mundo ocidental, especialmente na academia
euro-americana. Se é que ainda há espaço político e cultural para a discutir.
Porque
é um debate que a esquerda radical quer, desde logo, matar no ovo e transformar
em monólogo, eliminando uma parte da equação e silenciando toda e qualquer
oposição. E não são
precisos, ou são até desaconselháveis, grandes estudos para o monólogo
pretendido: bastam alguns olheiros, um punhado de certezas, um bom casting de
vítimas, de agressões e de crimes e um frenesi de alertas e SOS, uma vez que é
de entretenimento de massas que se trata e não de confronto dialéctico, de
debate académico livre e crítico de diferentes experiências históricas e
culturais, de cruzamento de percepções, estudos ou de opiniões.
As enfadonhas lutas pelo pão de cada dia
do operariado, do campesinato e do povo trabalhador são também para estas
esquerdas coisas do passado, até porque empalidecem perante o apetecível circo
das novas minorias de oprimidos, os prazeres inquisitoriais da perseguição, da
acusação, do insulto e da destruição, as glórias narcísicas da reivindicação de
superioridade moral. Entre o
pão alheio ou a falta dele e o circo próprio, venha então o circo. Herança greco-latina? Homero, Tácito,
Tucídides, Virgílio, Políbio? Branquitude, branquitude, nada mais que
branquitude.
E é
nisto que estamos. Russel Ronald Reno identifica esta mudança no Wall Street
Journal de 6 de Junho e explica porque é que, nos últimos anos, tem
evitado contratar licenciados pelas universidades americanas da Ivy League: é
que o mundo do trabalho não se compadece, nem com activistas com o narcisismo à
flor da pele e o insulto na ponta da língua, atentos a ciscos e cegos a traves,
nem com a maioria dos outros estudantes, que, não sendo activistas, tiram
nestas universidades um curso paralelo de consentimento silencioso para evitar
condenações por pecados de dissidência. Por mais intimidatório que possa ser o
actual ambiente académico, que o é, Reno lamenta, mas reafirma a sua relutância
em contratar quem não esteja disposto a pagar o preço de quebrar o silêncio quando
em discordância.
A nova censura
Há
quase um século, nos anos vinte e trinta do século passado, houve um
crepúsculo do liberalismo, identificado com a decadência e incapaz de resistir
aos movimentos totalitários de Moscovo e de Roma. Nestes, surgia uma linha de autoridade ou de unidade
de opinião, prescrita e instalada pelo poder político, pela censura, pelos
aparelhos do Estado.
Ao contrário de então, a censura da
cultura do cancelamento que agora se afirma, não vem do Estado. Vem da própria
Academia e das suas correias de transmissão na opinião pública, promovendo a
denúncia e a autocensura e secando a criatividade e o pensamento crítico no
meio académico e da opinião. E conseguindo do poder político cedências e apoios.
Quando,
em Agosto de 2015, os tractores, os explosivos e as marretas dos Talibãs do
Estado Islâmico caíram furiosamente sobre o templo de Baal-Shamin, em Palmira, um templo do II a.C classificado como Património
Mundial da Humanidade, o choque foi generalizado. Estranhamente, quando assistimos, dentro de portas, à
destruição de estátuas, ao cancelamento dos Clássicos, à reescritura da
História e dos contos tradicionais e infantis ou à sua submissão às “alterações
climáticas” e às “mudanças de género” dos “novos tempos”, sob o escrupuloso
lápis azul dos chamados “sensitivity readers”, o choque dá muitas vezes lugar a
um encolher de ombros, como se de uma loucura passageira se tratasse.
E
no entanto, a brutal destruição de Palmira ilustra bem o presente ideário e as
persistentes práticas da cultura ocidental do cancelamento: a “sharia”
pode ser outra, mas é a mesma fé cega, a mesma tentativa violenta de calar o
contraditório, de apagar um passado “errado”, pecaminoso ou simplesmente
adverso ao conjunto de dogmas que compõem o credo que se quer impor.
Talvez tudo isto nos mereça mais do que
um encolher de ombros. Até porque, quando cai em ambiente de incultura e de
ignorância histórica, quando se abate sobre um desinteresse temeroso
generalizado, uma ânsia de “modernidade” e um desejo de mostrar serviço à
“tolerância”, a loucura tende a instalar-se e a tornar-se tudo menos passageira.
Há quem defenda que uma cultura
oficial, generalizada, superficial, vulgarizada, massificada, uma cultura que
cancela o pensamento, que sufoca a independência crítica e que policia a
criatividade, é necessariamente um nado-morto, e que será só uma questão de
tempo até que uma qualquer cultura viva, ou uma pluralidade de culturas vivas,
a destronem. Mas a antevisão de uma longínqua falência anunciada
não nos pode impedir de reagir à ofensiva real, substancial, e articulada, à
ofensiva com fortes alavancas nas Academias, nas Fundações, em Governos,
em lobbies sociais e mediáticos e em grandes empresas que está a
varrer a chamada “cultura ocidental”. E que está a
fazê-lo contando, sobretudo, com o medo dos potenciais opositores de parecerem
mal, de passarem por intolerantes, desactualizados, reaccionários, fascistas,
racistas, homofóbicos.
As
esquerdas clássicas não atribuem grande valor a estas novas causas ou aos seus
comissários políticos – fantasias reais e gramaticais de multiplicação de
géneros e apoucamento de realidades, pré-determinações raciais, humanização de
animais e desumanização de humanos, discriminatórias cegueiras inclusivas,
mortes assistidas e vidas descartadas – mas deixam andar, cobrando até apoios
políticos dos seus partidários e procurando também não passar por
reaccionárias.
As
direitas conservadoras preocupam-se, mas esperam que alguém – alguns radicais –
resista por elas.
Deste
modo, as minorias activistas da cultura do cancelamento, animadas pela fé
ardente de um novo resgate utópico, por um reacender da construção de
sociedades perfeitas, esquecem ou demarcam-se do que aconteceu no século
passado com a implantação de outras utopias e propõem a destruição das
identidades pessoais, familiares, comunitárias, nacionais, para implantar
outras, mais “científicas” e globais (e mais estéreis, solitárias e suicidas).
Tudo
isto é apresentado como um progresso da Humanidade. Mas onde é que isto tudo
começou?
Há
muitas teses e explicações, desde o hedonismo dos Philosophes franceses ao
materialismo da burguesia inglesa, combinados com o processo desconstructor do
marxismo-leninismo.
As raízes do
mal
O
século das Luzes, entre a Enciclopédia, Voltaire e Sade, abriu a porta ao
individualismo radical, a uma soberania absoluta do Eu – de um
homem-super-homem, liberto de transcendências divinas, de lealdades
comunitárias, de limitações naturais –,
numa linha que viria, no século XX, a desaguar em
Sartre e na sua forma “de niilismo como libertação”. No século XIX, o espírito material da burguesia
inglesa, sem o sentido cristão com que Dickens a redimiu, marcou um
imperialismo comercial sem limites. E, logo a seguir, Marx e Engels
criaram um aparelho interpretativo pseudo-científico da História de que
resultou a redução dos valores institucionais a servos da opressão económica –
e que serviu de base teórica aos despotismos comunistas.
Estes
despotismos foram vencidos há 30 anos, com a morte da União Soviética. Só que,
depois da vitória, as sociedades ocidentais vencedoras – e vencedoras graças à
força e à fé de personalidades como o Papa S. João Paulo II, Ronald Reagan e
Margaret Thatcher – afundaram-se no triunfalismo fácil e eufórico do globalismo
económico e do imperialismo democrático, empenharam-se em guerras absurdas,
esmagaram povos e culturas por toda a parte e humilharam os vencidos. E
arruinaram e marginalizaram os seus próprios povos, vítimas da cartilha
optimista do fim da História.
Como
aconteceu outras vezes, com a vitória e a sua euforia veio a decadência. A
revolução das mentalidades, em vez de evoluir no sentido dos valores de
identidade e resistência que tinham tornado possível, com uma política de apoio
aos povos oprimidos e invadidos, da Europa Oriental ao Afeganistão, aguentar e
vencer a URSS, tomou a vitória como o triunfo exclusivo dos valores do
liberalismo económico e daquilo a que Flaubert chamou o “pensamento baixo”, sem
metafísica, da média-burguesia.
E
foi, outra vez, a marcha para a decadência da Euro-América. O sistema
espalhou-se por todo o mundo, os capitais emigraram para um universo sem
fronteiras, onde as tiranias colectivas sobreviventes lhes garantiam um
capitalismo selvagem igual ao da primeira metade do século XIX (o tal que Marx
escrutinou e desmontou). No chamado Ocidente, as classes trabalhadoras foram
marginalizadas pela desindustrialização e pela migração das indústrias para o
Oriente e abandonadas pelos políticos.
Agora
é a vez das classes médias, esse fantasma dos leninistas embaraçados por tudo o
que lhes empecilhava a dicotomia Burguesia/Proletariado.
Maniqueísmo
E com isto instalou-se visivelmente a
decadência, até no modo semi resignado com que as sociedades ocidentais têm
vivido e enfrentado a pandemia. Mas, sobretudo, na forma como têm vindo a
viver, a consentir ou até a encorajar esta ofensiva interna.
É
uma nova forma delirante de niilismo, com o uso como arma de arremesso do “género” – que
é infinitamente individual, mutável e operável, que pode estar sempre em aberto
e que não pode ser confundido com o sexo – e da raça – que não se compadece com subtilezas e mestiçagens e é
infinitamente imutável
no seu conveniente preto e branco.
Um uso e abuso que, na acusação ou na beatificação, são tão opressores e tão redutores para os
“opressores” como para os “oprimidos”, numa cópia servil da agenda puritana
do novo radicalismo norte-americano, com os seus rituais de contrição e punição
de pecados seculares e de ofensas geracionais complexas que se multiplicam ao
sabor das conveniências, e os seus próprios sacramentos, generosamente
franqueados a todos os que, condenados à raça, ao “género”, ao povo ou à
convicção política ou religiosa erradas, queiram arrepender-se e redimir-se,
recomeçando uma vida nova como comissários das “minorias”.
E tudo isto com apóstolos sem
regras nem limites, que agem segundo uma linha de maniqueísmo absoluto,
retirando aos que pretendem resistir-lhes qualquer dignidade ou humanidade. O modo
como em algumas instituições académicas, sobretudo norte-americanas, se
instalou o terrorismo intelectual contra os dissidentes ou não alinhados lembra
as categorias de Unmensch, que os nazis, nos anos trinta, atribuíram aos
judeus – e a outros inimigos – para os poderem exterminar à vontade e em boa
consciência. Ou o modo como os comunistas classificaram como “inimigos do povo”
os que também exterminaram.
Este ódio vesgo e categorial está
a invadir a Europa e até esta velha nação, que não costumava ter estas barreiras
de pele, opção ou condição, mas que sofre o embate do maniqueísmo ideológico
importado, quantas vezes por elementos estranhos, acolhidos pela generosidade
das nossas leis e costumes.
Um
dos grandes progressos da modernidade euroamericana foi a transposição para
as guerras ideológicas do conceito de “inimigo justo”, retirado da ordem
internacional, um conceito que fazia de um inimigo ideológico, civil, interno,
mesmo o radical, alguém que era, tal como nós, humano, e que não tínhamos
necessariamente de odiar para combater.
Mas foi conceito que caiu em desuso. E o que é talvez mais preocupante nesta ofensiva e nos
que a prosseguem, além do absurdo das suas certezas, do irrealismo das suas
pretensões e da ignorância interessada que promovem, é o ódio destruidor contra
todos os que se lhes pretendem opor, um
ódio que faz
de quem lhes resiste uma espécie de filhos das Trevas contra os quais tudo é
legítimo e lícito. E se pensarmos que partem do “direito à diferença” e
de uma exigência de respeito pelo que é “singular”, que vivem nos observatórios
e que são sérios candidatos aos certificados de qualidade para verificação de
factos, podemos equacionar o grau de perturbação a que chegámos.
A SEXTA
COLUNA CRÓNICA OBSERVADOR CENSURA SOCIEDADE HISTÓRIA CULTURA
Um Comentário (entre 88):
José Carvalho: Bem faz Santo
Jaime de Lisboa ao denunciar a decadência em que resvala a sociedade ocidental,
empurrada pela extrema-esquerda e o seu séquito. Infelizmente, só os peixes o
escutam. Já se anunciam amanhãs que voltam a cantar e a felicidade eterna até
agora sempre adiada. Apesar da fabulosa inteligência que levou a humanidade ao
conhecimento do diâmetro da Terra, dos buracos negros, dos quarks e do ARN
mensageiro, nunca aprendemos a defender-nos de charlatães.
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