quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Eterna questão

 

Cá por casa é sempre outra a música, quer em sentido próprio, quer em figurado, embora não nos faltem boas gargantas. Mas tem a ver, tal crise, com o tilintar das moedas ou com o escorrer das notas… como para tudo o mais, de resto, e não só na música escolar, “Ai do lusíada, coitado!, / Antes fosse p’ra soldado / Antes fosse p´r’ó Brasil!”… ou mesmo “p’ra outros sóis diferentes…” - o que ele já faz.

A crise das Escolas do Ensino Artístico Especializado em Portugal

A crise do EAE não é apenas financeira é, também, uma crise de valorização da educação artística e do seu papel essencial no desenvolvimento do nosso país.

CARLOS PINTO DA COSTA Director Pedagógico Escola de Música de Esposende; membro do Departamento do EAE da AEEP; Direção da Associação de Diretores Pedagógicos do EAE

OBSERVADOR, 19 fev. 2025, 00:09

Em Portugal, o Ensino Artístico Especializado (EAE) constitui-se como um pilar fundamental da formação cultural e artística das crianças e jovens. Actualmente com cerca de 130 escolas e 30.000 alunos, o EAE tem desempenhado um papel essencial na promoção da criatividade, do pensamento crítico e do desenvolvimento integral dos estudantes. Estas escolas distribuem-se por diferentes regiões do país, muitas vezes em territórios onde são a única oferta educativa e cultural especializada, fortalecendo as comunidades locais e contribuindo para a coesão social.

O ensino de música em Portugal tem raízes nos séculos V e VI, onde as ordens monásticas desempenharam um papel crucial na formação de músicos, consolidando-se ao longo dos séculos XII e XIII, com o desenvolvimento das Sé Catedrais. Durante o Antigo Regime, esse ensino visava formar cantores e instrumentistas para a liturgia, além de compositores de repertório sacro. A mudança para um ensino especializado de carácter não religioso, aconteceu em 1835 com a criação do ,«+, actualmente designado como Escola Artística de Música do Conservatório Nacional. Esse evento marcou o início do ensino especializado da música no sector público. Poucas décadas depois, em 1884, surgiu a Academia dos Amadores de Música, um marco para a formação musical privada no país. Ao longo do século XX, a rede de ensino musical expandiu-se. Somente em 1917 foi criado um segundo conservatório público, no Porto, e, em 1928, o Curso Silva Monteiro, enquanto primeira escola privada desta cidade.

No final do século XX, existiam 10 escolas públicas de música, enquanto que o sector privado, colmatando as falhas existentes e dando resposta às necessidades do país nesta área, crescia exponencialmente, oferecendo maior diversidade pedagógica e abrangência geográfica.

Actualmente, o ensino especializado de música em Portugal é composto por um sistema que se divide entre escolas públicas e privadas, uma rede de escolas profissionais, com outra vocação, e cursos de ensino artístico especializado oferecidos por algumas escolas do ensino regular. Existem, assim, 23 escolas públicas com oferta especializada de música. Destas, 12 são escolas do ensino artístico especializado, enquanto que as restantes são agrupamentos escolares que oferecem cursos de música. A rede privada conta com 140 escolas, das quais 127 são escolas especializadas de música e 8 são escolas profissionais.

Nas últimas décadas, surgiram diferentes modelos de ensino, como o regime articulado, em 1983, que permite que os alunos frequentem escolas de ensino regular, públicas ou privadas, e tenham formação musical em escolas especializadas, e a introdução de escolas profissionais de música, em 1989.

Apesar da sua relevância, este sector atravessa uma crise sem precedentes. Desde 2009, o financiamento atribuído às escolas do EAE privado tem permanecido praticamente inalterado, ignorando a inflação acumulada, o aumento dos custos de vida, os impactos económicos da pandemia de COVID-19 e as actualizações salariais previstas por lei. Esta estagnação compromete a sustentabilidade das escolas, muitas das quais já enfrentam sérias dificuldades em cumprir obrigações básicas com funcionários, fornecedores e outros custos operacionais.

Com já referido, as escolas do EAE em Portugal são, maioritariamente, de gestão privada (essencialmente associações e cooperativas), operando em modelos de financiamento que dependem do apoio público para garantir a sua viabilidade. Elas cumprem uma função educativa pública, permitindo, no âmbito da escolaridade obrigatória, o acesso dos alunos a uma formação de excelência, onde os dois únicos critérios de admissão de alunos são as aptidões musicais dos candidatos e a existência, ou não, do financiamento necessário.

No entanto, para além das fortes restrições na criação de vagas financiadas, a ausência de actualizações no financiamento ao longo dos anos coloca estas instituições numa situação de grande vulnerabilidade, obrigando-as a recorrer a medidas de forte contenção orçamental, muitas vezes, em prejuízo dos seus trabalhadores e na oferta pedagógica que, recorrentemente, é reconhecida como excelente.

Ao longo de várias décadas, o financiamento do EAE passou por mudanças significativas, reflectindo diferentes abordagens e prioridades. Entre os anos 1990 e agosto de 2009, os recursos eram assegurados pelo chamado Contrato de Patrocínio, um modelo que cobria os custos reais do corpo docente e adicionava 40% para despesas operacionais das escolas.

Esta estrutura foi alterada com a publicação do despacho nº 17932/2008, de 3 de julho de 2008, que introduziu três níveis de financiamento. O valor passou a ser fixo por aluno, variando conforme o regime de frequência e os encargos com os docentes.

Em janeiro de 2011, exceptuando as escolas localizadas nas regiões de Lisboa e Vale do Tejo e Algarve, os cursos básicos e secundários do EAE deixaram de ser financiados pelo Contrato de Patrocínio, passando a depender do Fundo Social Europeu através do Programa Operacional Potencial Humano (POPH). Esta transição trouxe sérias dificuldades financeiras, ameaçando a sobrevivência de muitas instituições.

Foi, apenas, em setembro de 2015, que todas as escolas do país voltaram ao modelo de financiamento via Contrato de Patrocínio. No entanto, a portaria 224-A/2015, de 29 de julho, eliminou os três escalões de financiamento previstos antes de 2011 e estabeleceu um valor único por aluno inferior ao do escalão mais baixo da versão anterior. Além disso, a atribuição de financiamento passou a depender de um processo selectivo, condicionado pelo número de vagas definido para cada Comunidade Intermunicipal e, dentro delas, para cada escola.

Perante estas mudanças, torna-se essencial avaliar os impactos de cada modelo e reflectir sobre um sistema de financiamento que esteja alinhado com os objetivos do EAE, reflexão que não tem acontecido, em especial pelos decisores políticos.

O modelo actual, inspirado no financiamento das escolas profissionais e nos contratos de associação, parte de premissas equivocadas, resultando em ineficiência financeira e em incentivos que não favorecem a qualidade do ensino, a distribuição equilibrada pelo território ou a resposta adequada à procura crescente por esta modalidade de ensino.

Contrastando com esta realidade, observa-se o modelo de financiamento das escolas públicas do EAE, onde os salários dos docentes são assegurados dentro do quadro definido para cada instituição, acompanhando as respectivas progressões na carreira. Assim, tanto professores quanto escolas podem concentrar-se exclusivamente na excelência pedagógica e artística, garantindo um ensino de qualidade em benefício e adequada ao percurso dos seus alunos.

É compreensível que, no seguimento das crises financeiras das últimas décadas e das consequentes limitações mais agudas à despesa do Estado e maior rigidez imposta pelas leis que regulam a actividade financeira, o modelo financeiro do Contrato de Patrocínio exija maior estabilidade e previsibilidade para o Estado. No entanto, essa segurança não pode ser obtida à custa da instabilidade das escolas. A imprevisibilidade no financiamento compromete investimentos de longo prazo, prejudica a qualidade do ensino e impede a construção de um sistema pedagógico sólido e sustentável.

Perante este cenário, é fundamental que o modelo de financiamento do EAE, através do Contrato de Patrocínio, seja estruturado com base em cinco princípios essenciais: Estabilidade – Garantia de uma relação segura e contínua entre as escolas e o Estado no médio prazo; Previsibilidade – Definição de condições claras e sustentáveis para o longo prazo; Neutralidade – Um sistema que não interfira na autonomia pedagógica das escolas e docentes; Fomento à estabilidade laboral – Incentivos para relações de trabalho mais seguras e duradouras; Transparência no crescimento da rede – Critérios claros para a expansão geográfica dos operadores deste serviço.

Um dos aspectos mais preocupantes desta crise, como já identificado anteriormente, é a desigualdade de tratamento face às escolas públicas. Enquanto estas recebem um financiamento mais estável e proporcional às suas necessidades, as escolas do EAE privadas enfrentam restrições financeiras severas, apesar de desempenharem um papel educativo equivalente e em zonas onde a oferta pública não existe. Esta disparidade reflecte-se directamente nas condições laborais dos professores, por exemplo, que, muitas vezes, não vêem os seus direitos plenamente assegurados devido à incapacidade das escolas em cumprir integralmente o contrato coletivo de trabalho ou porque este é adaptado à excepcionalidade da falta de financiamento do EAE. Por outro lado, a ausência de condições adequadas impede as escolas de planearem eficazmente os seus anos lectivos, comprometendo a qualidade pedagógica que sempre as caracterizou. Em muitos casos, diretores e professores são obrigados a fazer concessões que afectam negativamente o ensino, com consequências directas para os alunos e suas famílias.

Quando falamos em “escolas públicas” versus “escolas privadas”, estamos, na verdade, a falar de alunos que, devendo ser todos iguais aos olhos da lei e das condições de acesso, são discriminados por se encontrarem impedidos de frequentar uma escola pública. Isto quando a oferta educativa e a qualidade dessa oferta são absolutamente semelhantes num caso e noutro.

A estagnação do financiamento é ainda mais preocupante quando analisada à luz do aumento dos custos gerais. Desde 2009, a inflação acumulada em Portugal tem superado os 20%, enquanto os custos operacionais das escolas – desde salários a materiais pedagógicos e infraestruturas – têm aumentado significativamente. A pandemia de COVID-19 agravou esta realidade, impondo novas despesas relacionadas com a adaptação de infraestruturas e protocolos de segurança, por exemplo. Nada disto é tido em conta na hora de definir os valores de financiamento às escolas.

As escolas estão, portanto, a operar num modelo financeiro completamente desactualizado, que ignora a realidade económica actual e torna impossível a sustentabilidade a médio e longo prazo. Se nada for feito, o encerramento de muitas instituições é uma possibilidade real, com consequências devastadoras para alunos, famílias e comunidades inteiras.

Diversos estudos internacionais têm demonstrado a importância da música no desenvolvimento das crianças. Segundo a plataforma “Bigger Better Brains”, por exemplo, a aprendizagem musical melhora significativamente as competências cognitivas, emocionais e sociais dos alunos. Estudos apontam que o envolvimento com música desde cedo promove o desenvolvimento da memória, da concentração e do pensamento abstracto, além de estimular a criatividade e o bem-estar emocional.

No contexto português, a música desempenha um papel crucial na construção da identidade cultural e na coesão social. As escolas do EAE não formam apenas artistas, mas também cidadãos completos, dotados de competências que os preparam para os desafios do século XXI que, como sabemos, são muitos, em especial ao nível do uso das novas tecnologias. Uma formação artística de qualidade será, provavelmente, o último refúgio de um desenvolvimento intelectual estruturado e capaz de preparar as nossas crianças para os desafios futuros que ainda estamos a descobrir.

As escolas do EAE da música em Portugal, têm vindo a formar um elevado número de excelentes músicos. São centenas os alunos cuja base de estudos musicais aconteceu nestas escolas e que, hoje em dia, integram as orquestras do nosso país, passando-se o mesmo em dezenas de orquestras por esse mundo fora. O mesmo se passa com músicos que desenvolvem carreiras de solistas internacionais e, outros, que são professores de grande nível.

Mas, estas escolas são, ainda, mais do que esta dimensão artística. Da mais pequena escola às grandes escolas, o trabalho do EAE, ultrapassa, em larga medida, o seu papel de formação de futuros músicos. Fruto da natureza artística da sua função, estas escolas têm um papel de acção nas comunidades absolutamente fundamental, ao nível da formação dos mais variados tipos de alunos, contaminando artisticamente as comunidades escolares, famílias e comunidade em geral. Também ao nível da programação nas ofertas locais e regionais de fruição artística e cultural, estes são, muitas vezes, os principais agentes locais dessas dinâmicas.

São as escolas do EAE que dinamizam, com diversos parceiros – desde logo, os municípios – inúmeros eventos que vão desde festivais, concursos, concertos, cursos, intercâmbios, até encontros de coros e orquestras. São as escolas do EAE que, com os seus agrupamentos, realizam milhares de concertos por todos o país, encomendam obras a compositores portugueses, dão palco a maestros e solistas. É toda uma actividade cultural e artística, altamente relevante nas dinâmicas locais de programação, muito reconhecidas local e regionalmente, mas cuja acção, aparentemente, é pouco reconhecida a um nível mais central do poder político.

Neste contexto, as diferentes associações do sector têm apelado à actualização urgente do financiamento e à correção das desigualdades face à rede pública. Esta é uma questão de justiça e de visão estratégica. O Ensino Artístico Especializado não é um luxo, mas uma necessidade para o progresso cultural e educativo do país. A música é uma linguagem universal que transcende barreiras, une comunidades e transforma vidas. Garantir o financiamento adequado destas escolas é, portanto, uma responsabilidade que todos devemos assumir.

A crise do EAE não é apenas financeira é, também, uma crise de valorização da educação artística e do seu papel essencial no desenvolvimento do nosso país. Ao ignorarmos o apelo destas instituições, estamos, também, a comprometer o futuro cultural, social e económico do país.

As escolas do Ensino Artístico Especializado são um património educativo e cultural que não podemos deixar desaparecer. A música e a educação artística moldam não apenas os talentos, mas cidadãos plenos, capazes de enriquecer a sociedade de múltiplas formas.

É imperativo que os decisores políticos reconheçam a gravidade da situação e actuem para garantir a sustentabilidade deste sector vital.

MÚSICA      CULTURA

 

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