Cá por casa é sempre outra a música, quer em sentido
próprio, quer em figurado, embora não nos faltem boas gargantas. Mas tem a ver,
tal crise, com o tilintar das moedas ou com o escorrer das notas… como para
tudo o mais, de resto, e não só na música escolar, “Ai do lusíada, coitado!, / Antes
fosse p’ra soldado / Antes fosse p´r’ó Brasil!”… ou mesmo “p’ra outros sóis diferentes…” - o que
ele já faz.
A crise das Escolas do Ensino Artístico
Especializado em Portugal
A crise do EAE não é apenas
financeira é, também, uma crise de valorização da educação artística e do seu
papel essencial no desenvolvimento do nosso país.
CARLOS PINTO DA COSTA Director Pedagógico Escola de Música
de Esposende; membro do Departamento do EAE da AEEP; Direção da Associação de
Diretores Pedagógicos do EAE
OBSERVADOR, 19 fev. 2025, 00:09
Em Portugal, o Ensino Artístico
Especializado (EAE) constitui-se como um pilar fundamental da formação cultural
e artística das crianças e jovens. Actualmente com cerca de 130 escolas e 30.000 alunos, o EAE tem
desempenhado um papel essencial na promoção da criatividade, do pensamento
crítico e do desenvolvimento integral dos estudantes. Estas
escolas distribuem-se por diferentes regiões do país, muitas vezes em
territórios onde são a única oferta educativa e cultural especializada,
fortalecendo as comunidades locais e contribuindo para a coesão social.
O ensino de música em Portugal tem
raízes nos séculos V e VI, onde as
ordens monásticas desempenharam um papel crucial na formação de músicos,
consolidando-se ao longo dos séculos XII
e XIII, com o desenvolvimento das Sé
Catedrais. Durante o Antigo Regime, esse ensino visava formar
cantores e instrumentistas para a liturgia, além de compositores de repertório
sacro. A mudança
para um ensino especializado de carácter não religioso, aconteceu em 1835 com a
criação do ,«+, actualmente designado como Escola Artística de Música do Conservatório Nacional. Esse
evento marcou o início do ensino especializado da música no sector público. Poucas
décadas depois, em 1884, surgiu a Academia
dos Amadores de Música, um marco para a formação musical privada no país. Ao longo
do século XX, a rede de ensino musical expandiu-se. Somente em 1917 foi criado um segundo conservatório público, no Porto, e, em 1928, o Curso Silva Monteiro,
enquanto primeira escola privada desta cidade.
No final do século XX, existiam 10 escolas públicas de música, enquanto que o sector
privado, colmatando as falhas
existentes e dando resposta às necessidades do país nesta área, crescia
exponencialmente, oferecendo maior
diversidade pedagógica e abrangência geográfica.
Actualmente, o ensino especializado de música em Portugal é composto
por um sistema que se divide entre escolas públicas e privadas, uma rede de
escolas profissionais, com outra vocação, e cursos de ensino artístico
especializado oferecidos por algumas escolas do ensino regular. Existem,
assim, 23 escolas públicas com oferta especializada de
música. Destas, 12
são escolas do ensino artístico especializado, enquanto que as restantes são
agrupamentos escolares que oferecem cursos de música. A rede privada conta com
140 escolas, das quais 127 são escolas especializadas de música e 8 são escolas
profissionais.
Nas últimas décadas, surgiram diferentes modelos de ensino,
como o regime articulado, em 1983, que
permite que os alunos frequentem escolas de ensino regular, públicas ou
privadas, e tenham formação musical em escolas especializadas, e a introdução
de escolas profissionais de música, em 1989.
Apesar da sua relevância, este sector
atravessa uma crise sem precedentes. Desde
2009, o financiamento atribuído às escolas do EAE privado tem permanecido
praticamente inalterado, ignorando a inflação acumulada, o aumento dos custos
de vida, os impactos económicos da pandemia de COVID-19 e as actualizações
salariais previstas por lei. Esta estagnação compromete a
sustentabilidade das escolas, muitas das quais já enfrentam sérias
dificuldades em cumprir obrigações básicas com funcionários, fornecedores e
outros custos operacionais.
Com já referido, as escolas do EAE em
Portugal são, maioritariamente, de gestão privada (essencialmente associações e cooperativas),
operando em modelos de financiamento que dependem do apoio público para
garantir a sua viabilidade. Elas cumprem uma função educativa pública,
permitindo, no âmbito da escolaridade obrigatória, o acesso dos alunos a uma
formação de excelência, onde os dois
únicos critérios de admissão de alunos são as aptidões musicais dos candidatos
e a existência, ou não, do financiamento necessário.
No entanto, para além das fortes restrições na criação de vagas financiadas, a
ausência de actualizações no financiamento ao longo dos anos coloca estas
instituições numa situação de grande vulnerabilidade, obrigando-as a recorrer a
medidas de forte contenção orçamental, muitas vezes, em prejuízo dos seus
trabalhadores e na oferta pedagógica que, recorrentemente, é reconhecida como
excelente.
Ao longo de várias décadas, o
financiamento do EAE passou por mudanças significativas, reflectindo
diferentes abordagens e prioridades. Entre os anos 1990 e agosto de 2009, os
recursos eram assegurados pelo chamado Contrato de Patrocínio, um modelo
que cobria os custos reais do corpo docente e adicionava 40% para despesas operacionais das escolas.
Esta estrutura foi alterada com a
publicação do despacho nº 17932/2008, de 3 de julho de 2008, que introduziu
três níveis de financiamento. O
valor passou a ser fixo por aluno, variando conforme o regime de frequência e
os encargos com os docentes.
Em
janeiro de 2011, exceptuando as escolas localizadas nas regiões de Lisboa e
Vale do Tejo e Algarve, os cursos básicos e secundários do EAE deixaram de ser
financiados pelo Contrato de Patrocínio, passando a depender do Fundo Social
Europeu através do Programa Operacional Potencial Humano (POPH). Esta transição
trouxe sérias dificuldades financeiras, ameaçando a sobrevivência de muitas
instituições.
Foi, apenas, em setembro de 2015,
que todas as escolas do país voltaram ao modelo de financiamento via
Contrato de Patrocínio. No entanto, a portaria 224-A/2015, de 29 de julho,
eliminou os três escalões de financiamento previstos antes de 2011 e
estabeleceu um valor único por aluno inferior ao do escalão mais baixo da
versão anterior. Além disso, a atribuição de financiamento passou a depender de
um processo selectivo, condicionado
pelo número de vagas definido para cada Comunidade Intermunicipal e, dentro
delas, para cada escola.
Perante estas mudanças, torna-se
essencial avaliar os impactos de cada modelo e reflectir sobre um sistema de financiamento que esteja alinhado com
os objetivos do EAE, reflexão que não tem acontecido, em especial pelos
decisores políticos.
O modelo actual, inspirado no financiamento das escolas
profissionais e nos contratos de associação, parte de premissas equivocadas, resultando em ineficiência financeira e em
incentivos que não favorecem a qualidade do ensino, a distribuição equilibrada
pelo território ou a resposta adequada à procura crescente por esta modalidade
de ensino.
Contrastando
com esta realidade, observa-se o modelo de financiamento das escolas públicas
do EAE, onde os salários dos docentes são assegurados dentro do quadro definido
para cada instituição, acompanhando as respectivas progressões na carreira.
Assim, tanto professores quanto escolas podem concentrar-se exclusivamente na
excelência pedagógica e artística, garantindo um ensino de qualidade em
benefício e adequada ao percurso dos seus alunos.
É compreensível que, no seguimento das
crises financeiras das últimas décadas e das consequentes limitações mais
agudas à despesa do Estado e maior rigidez imposta pelas leis que regulam a actividade
financeira, o modelo financeiro do Contrato de Patrocínio exija maior
estabilidade e previsibilidade para o Estado. No entanto, essa segurança
não pode ser obtida à custa da instabilidade das escolas. A
imprevisibilidade no financiamento compromete investimentos de longo prazo,
prejudica a qualidade do ensino e impede a construção de um sistema pedagógico
sólido e sustentável.
Perante este cenário, é fundamental que o modelo de
financiamento do EAE, através do Contrato de Patrocínio, seja estruturado
com base em cinco princípios essenciais: Estabilidade – Garantia de uma relação
segura e contínua entre as escolas e o Estado no médio prazo; Previsibilidade –
Definição de condições claras e sustentáveis para o longo prazo; Neutralidade –
Um sistema que não interfira na autonomia pedagógica das escolas e docentes;
Fomento à estabilidade laboral – Incentivos para relações de trabalho mais
seguras e duradouras; Transparência no crescimento da rede – Critérios claros
para a expansão geográfica dos operadores deste serviço.
Um dos aspectos mais
preocupantes desta crise, como já identificado anteriormente, é a desigualdade
de tratamento face às escolas públicas. Enquanto
estas recebem um financiamento mais estável e proporcional às suas
necessidades, as escolas do EAE privadas enfrentam restrições financeiras severas,
apesar de desempenharem um papel educativo equivalente e em zonas onde a oferta
pública não existe. Esta disparidade reflecte-se directamente nas condições
laborais dos professores, por exemplo, que, muitas vezes, não vêem os seus
direitos plenamente assegurados devido à incapacidade das escolas em cumprir
integralmente o contrato coletivo de trabalho ou porque este é adaptado à excepcionalidade
da falta de financiamento do
EAE. Por outro lado, a ausência de condições adequadas impede as
escolas de planearem eficazmente os seus anos lectivos, comprometendo a
qualidade pedagógica que sempre as caracterizou. Em muitos casos, diretores e
professores são obrigados a fazer concessões que afectam negativamente o
ensino, com consequências directas para os alunos e suas famílias.
Quando falamos em “escolas
públicas” versus “escolas privadas”, estamos, na verdade, a falar de alunos
que, devendo ser todos iguais aos olhos da lei e das condições de acesso, são discriminados por se
encontrarem impedidos de frequentar uma escola pública. Isto quando a
oferta educativa e a qualidade dessa oferta são absolutamente semelhantes num
caso e noutro.
A estagnação do financiamento é ainda
mais preocupante quando analisada à luz do aumento dos custos gerais. Desde 2009, a inflação acumulada em
Portugal tem superado os 20%, enquanto os custos operacionais das escolas –
desde salários a materiais pedagógicos e infraestruturas – têm aumentado
significativamente. A pandemia de COVID-19 agravou esta
realidade, impondo novas despesas relacionadas com a adaptação de
infraestruturas e protocolos de segurança, por exemplo. Nada
disto é tido em conta na hora de definir os valores de financiamento às
escolas.
As escolas estão, portanto, a operar num
modelo financeiro completamente desactualizado, que ignora a realidade
económica actual e torna impossível a sustentabilidade a médio e longo prazo. Se nada
for feito, o encerramento de muitas instituições é uma possibilidade real, com
consequências devastadoras para alunos, famílias e comunidades inteiras.
Diversos estudos internacionais têm
demonstrado a importância da música no desenvolvimento das crianças. Segundo a
plataforma “Bigger Better Brains”, por exemplo, a aprendizagem musical melhora significativamente as competências
cognitivas, emocionais e sociais dos alunos. Estudos apontam que o
envolvimento com música desde cedo promove o desenvolvimento da memória, da
concentração e do pensamento abstracto, além de estimular a criatividade e o
bem-estar emocional.
No contexto português, a música desempenha
um papel crucial na construção da identidade cultural e na coesão social. As
escolas do EAE não formam apenas artistas, mas também cidadãos completos,
dotados de competências que os preparam para os desafios do século XXI que,
como sabemos, são muitos, em especial ao nível do uso das novas tecnologias. Uma
formação artística de qualidade será, provavelmente, o último refúgio de um
desenvolvimento intelectual estruturado e capaz de preparar as nossas crianças
para os desafios futuros que ainda estamos a descobrir.
As escolas do EAE da música em
Portugal, têm vindo a formar um elevado número de excelentes músicos. São centenas os alunos cuja base de
estudos musicais aconteceu nestas escolas e que, hoje em dia, integram as
orquestras do nosso país, passando-se o mesmo em dezenas de orquestras por esse
mundo fora. O mesmo se passa com músicos que desenvolvem carreiras
de solistas internacionais e, outros, que são professores de grande nível.
Mas, estas escolas são, ainda, mais do
que esta dimensão artística. Da mais pequena escola às grandes escolas, o
trabalho do EAE, ultrapassa, em larga medida, o seu papel de formação de
futuros músicos. Fruto da natureza artística da sua função, estas escolas
têm um papel de acção nas comunidades absolutamente fundamental, ao nível da
formação dos mais variados tipos de alunos, contaminando artisticamente as
comunidades escolares, famílias e comunidade em geral. Também ao nível
da programação nas ofertas locais e regionais de fruição artística e cultural,
estes são, muitas vezes, os principais agentes locais dessas dinâmicas.
São as escolas do EAE que dinamizam, com diversos parceiros – desde
logo, os municípios – inúmeros eventos que vão desde festivais, concursos,
concertos, cursos, intercâmbios, até encontros de coros e orquestras. São as escolas do EAE que, com os seus
agrupamentos, realizam milhares de concertos por todos o país, encomendam obras
a compositores portugueses, dão palco a maestros e solistas. É
toda uma actividade cultural e artística, altamente relevante nas dinâmicas
locais de programação, muito reconhecidas local e regionalmente, mas cuja acção,
aparentemente, é pouco reconhecida a um nível mais central do poder político.
Neste contexto, as diferentes associações do sector têm apelado à actualização
urgente do financiamento e à correção das desigualdades face à rede pública. Esta é uma questão de justiça e de visão
estratégica. O Ensino Artístico Especializado não é um luxo, mas uma necessidade para o
progresso cultural e educativo do país. A música é uma linguagem
universal que transcende barreiras, une comunidades e transforma vidas.
Garantir o financiamento adequado destas escolas é, portanto, uma
responsabilidade que todos devemos assumir.
A crise do EAE não é apenas
financeira é, também, uma crise de valorização da educação artística e do seu
papel essencial no desenvolvimento do nosso país. Ao ignorarmos o apelo destas
instituições, estamos, também, a comprometer o futuro cultural, social e
económico do país.
As escolas do Ensino Artístico
Especializado são um património educativo e cultural que não podemos deixar
desaparecer. A música e a educação artística moldam não apenas os talentos, mas
cidadãos plenos, capazes de enriquecer a sociedade de múltiplas formas.
É imperativo que os decisores
políticos reconheçam a gravidade da situação e actuem para garantir a
sustentabilidade deste sector vital.
Nenhum comentário:
Postar um comentário