Contradições
Entre teorias e práticas, próprias dum “ pensant” que não passa dum “roseau”, quantas vezes.
A luta pela verdade(3)
A política sempre foi um jogo de sombras, mas os espaços de
entendimento foram desfeitos. E como as sociedades estão muito divididas e já
não partilham um terreno comum, passou a disputar-se a verdade
17 fev. 2025, 00:209
1O regime da igualdade
A
modernidade de que somos herdeiros, moldada pelo pensamento contratualista,
assenta em dois princípios políticos fundamentais: igualdade
e liberdade, como correspondendo à condição natural do
homem e que o contrato social
procuraria reproduzir, de maneiras diferentes pelos diferentes contratualistas,
com a instituição do estado civil. Não é, por isso, surpreendente que
as revoluções liberais que deram origem ao paradigma contemporâneo tenham
conduzido, com tempo e adaptações, ao regime político antigo que institucionalizava
aqueles dois valores: a democracia
seria o governo do povo, pelo povo e para o povo na medida em que todos os
cidadãos teriam o direito igual de participar na governação do país e
a determinar as suas leis, ou seja, as suas condições de liberdade.
Francis Fukuyama usa o termo isotimia para referir que a democracia
assenta no desejo de reconhecimento como igual, o que a distinguiria de regimes
aristocráticos, em que o reconhecimento é procurado pela minoria que se
responsabiliza pela cidade. Mas a igualdade que a democracia promete reconhecer é,
necessariamente, uma ficção: o regime
democrático ficciona que todos os cidadãos são iguais, apesar de todas as
diferenças – intelectuais, físicas, de competências – que dão forma às pessoas
reais. A realidade é, por excelência, o domínio da diferença.
A verdade é que, da mesma forma que nem todos podemos ser o melhor jogador do mundo,
nem todos podemos ambicionar ser políticos carismáticos. Mas as
ficções são dotadas de um tal poder que somos levados, pelas suas narrativas, a
tomar como real o que é mera abstração. E é pelo efeito desse poder que, nas
sociedades democráticas, se tende a considerar que todas as opiniões são
igualmente válidas e legítimas, independentemente do conhecimento e das
competências específicas que se aplicam em cada área (na ciência, na arte, no
desporto).
Platão, como vimos,
posiciona-se especificamente contra esta ficção de igualdade epistemológica,
propondo antes um regime sofiocrático, na expressão de Freitas do Amaral,
em que o governo caberia aos filósofos. Trata-se de uma
tentação pelo poder que pauta, com regularidade, a história da filosofia, com
muitos filósofos a reclamar o papel de conselheiros de monarcas esclarecidos ou
de inspiradores de regimes autoritários e totalitários. É
possível, no entanto, conciliar filosofia e democracia se optarmos por ler
Sócrates como Hannah Arendt nos
propõe. Ao contrário da
versão platónica de detentor de uma verdade absoluta, Arendt sugere que o papel
do filósofo seria ajudar a criar um espaço comum de entendimento por forma
a que os cidadãos tornassem as suas doxoi mais esclarecidas e os
projectos colectivos pudessem ser prosseguidos.
2O regime da liberdade
Esse papel caberia à elite política que, com
mais conhecimento do que a restante população, seria capaz de construir um espaço
de entendimento comum, em particular, reforçando as normas partilhadas que
permitem a coesão social (uma
espécie de “filósofos públicos” ao serviço do bem comum). Aquele desejo
de reconhecimento de igualdade exigiria, nessa medida, a condição de que uma
minoria garantisse essas condições de igualdade e foi, em certo sentido, esse o
caminho percorrido desde os tempos protodemocráticos (pensemos nas ideias de
Edmund Burke ou nas ideias e actos dos Founding
Fathersnorte-americanos) até às grandes figuras políticas da primeira
metade do século XX.
Essa elite política esclarecida e
comprometida com o bem comum permitiu construir uma narrativa partilhada apesar
das desigualdades reais e garantir um forte consenso em torno do regime
democrático e das regras democráticas. Reconheciam
que é necessária uma moralidade partilhada para que a confiança pública
subsista em torno das instituições políticas e sabiam que cabe à elite o papel
fundamental de reforçar essa moralidade partilhada e, em certo sentido, de se
sacrificar por ela.
Contudo, as circunstâncias começaram a mudar na
segunda metade do século XX, com a
promoção daquilo que Francis Fukuyama designa como “a grande ruptura”, e que se caracteriza por uma profunda mudança
nos valores em resultado da ascensão de um paradigma de individualismo moral. O individualismo
moral pode ser visto como uma radicalização do princípio da
liberdade e traduz-se no esforço
permanente de subversão e libertação das regras sociais que, impostas e não
escolhidas, promoveriam a repressão da personalidade individual.
Esta
grande revolução cultural foi promovida pelas elites nas últimas décadas e pode
ser encontrada – quer à esquerda, quer à direita – na ideia de que todas as
regras que decorrem das normas sociais e morais tradicionais são modos de
violência exercidos sobre o indivíduo e de que não é necessária qualquer
moralidade partilhada para que uma sociedade possa ser bem-sucedida.
Mas, como diz Fukuyama, “Como as pessoas depressa descobriram,
havia sérios problemas com uma cultura de individualismo desenfreado, em que a
subversão das regras se tornava, de certo modo, a única regra remanescente. O
primeiro tinha a ver com o facto de os valores morais e as regras sociais não
serem simplesmente restrições arbitrárias à liberdade de escolha individual;
pelo contrário, são a pré-condição essencial a qualquer espécie de
empreendimento colectivo.” (sublinhado meu)
3A luta pela verdade
Ao destruir a moralidade comum e a partilha de valores que permitiam
o diálogo e o compromisso comunitário, as elites económicas e intelectuais dos
países ocidentais enfraqueceram a confiança social e abriram espaço para as divisões sociais
que, aos poucos, têm minado as nossas sociedades. Perante a lassidão social, à esquerda e à
direita têm-se registado reacções identitárias em resultado da necessidade
pessoal de pertença ao grupo, à tribo, recuperando algum sentido de pertença.
O efeito passa, inevitavelmente, pela criação de uma arena de
confronto e conflito. Se o espaço comum de valores foi destruído, cada
grupo passa a impor uma nova moralidade que é apresentada como a sua verdade. E
a política transforma-se numa arena de luta pela verdade em que cada acontecimento
é interpretado de modo diferente e irredutível, sem possibilidade de
compromisso.
Recordemos como Arendt usa a expressão
dos antigos dokei moi: o mundo aparece-nos sempre de modo
diferente. E isso não se alterou. O que se tornou diferente nos nossos tempos é
que destruímos o terreno comum a partir do qual nos podíamos entender apesar
dessas diferenças. O dissenso deixou de ser um caminho para o
consenso, e tornou-se ele mesmo o próprio resultado do sistema democrático.
Não é, por isso, surpreendente
que os nossos tempos sejam marcados por expressões como “fake news” ou
“desinformação” – como se a mentira política tivesse sido criada
em 2016. A política foi sempre um jogo permanente de sombras, mas hoje as
possibilidades de entendimento colectivo foram desfeitas. E como as
sociedades se encontram profundamente divididas e deixaram de partilhar um
terreno comum, a disputa pela verdade passou a reflectir essas divisões: perante o mesmo facto surgem diferentes
interpretações e leituras sem que nenhuma se consiga impor. O consenso
tornou-se, assim, uma impossibilidade e a sensação de desconfiança e caos
generalizou-se.
A expressão “pós-verdade” para descrever os nossos tempos não remete,
assim, para o conceito de verdade em sentido platónico, mas para o sentido de
amizade aristotélica, sem a qual a comunidade não pode existir.
COMENTÁRIOS~
António Alberto Barbosa Pinho: Muito bem, Sra
Professora. Todavia, como sair daqui e como ficaremos depois? Américo Silva: Há verdades naturais, e verdades imaginárias, e tudo
são verdades: é uma verdade natural que os filhos de ambos os pais com olhos
azuis têm olhos azuis; e é uma verdade imaginária que uma nota de 20 euros vale
20 euros, e assim é e pode ser comprovado, muito embora a nota seja uma
representação de nada, ao contrário das notas antigas que representavam ouro no
banco de Portugal.
Filipe F: Muito bom, como quase sempre. Obrigado. Luis Silva: O que é que a autora pensa dos atletas transgénero nos
EUA perderem todos os prémios? Acha que o sr. Marina Machete deveria perder o
título de Miss Portugal?
João Floriano > Luis Silva: Caro Luis Obviamente
não tenho nada a ver com a autoria do artigo, mas eu não retiraria o título de
Miss Portugal a Marina Machete. Faz parte de um momento histórico em que a
sociedade cometeu excessos e que eu saiba a/o Miss Portugal não forçou a entrada
no concurso. Foi-lhe permitida e até funcionou para mostrar como Portugal é um
país avançado e na primeira fila do progresso. Aqui estou a ser irónico porque
não vejo qualquer progresso neste caso. O que se deseja é que não se volte a repetir. O mesmo tipo de argumentação seria
aplicado aos transgénero não só nos Estados Unidos, que falsearam a verdade
desportiva. Não repetir, mas o mal que foi feito já não pode ser revertido. José Paulo Castro > Luis Silva: Querer reescrever a verdade é a primeira forma de a
perder. É verdade que
os trans foram aceites e ganharam essas competições. Tal como será verdade se
não forem aceites de agora em diante e as medalhas retiradas por se verificar
que a inscrição era nula. Mas foi nula ou seguiu as regras de então? Procure a
verdade indo por aqui, e não seguindo posições de princípio de outra época. Luis Silva > José Paulo Castro: Você tem direito a uma opinião, mas não tem direito de
dizer o que eu devo fazer ou pensar. Não
existem trans, existem homens e mulheres, lamentável você padecer dessa
distopia mental. Ainda estamos
na época em que seres humanos podem simplesmente fantasiar que se identificam
com irrealidades ficcionadas, que não correspondem à sua natureza biológica, e
isso tem-lhes permitido obter vantagens que não teriam pela ordem natural das
coisas.
A
esses seres humanos, obviamente doentes mentais, devem ser-lhes retirados todos
os prémios e vantagens obtidas e todo o sistema que o admite deverá ser demolido
e refeito. Um dia isso irá acontecer. Luis
Silva > João Floriano: Discordo completamente, o meu ponto de vista está
mais acima noutra caixa. José Paulo Castro > Luis Silva: Não padeço de nenhuma disforia mental. Percebo o que
você pretende, mas você não deve apagar a verdade de que eles estão aí,
estiveram por aí e de que conseguiram essas vantagens e podem até vir a
perdê-las, e muito menos você pode fingir que é verdade que a história se pode
reescrever. Querer repor
o que é correcto não anula a verdade de que foram adoptadas visões erradas.
Mesmo que depois sejam repostas as regras e visões que sejam sentidas como
verdade pela maioria. Isso, a luta
pela verdade, não pode negar a verdade da história. Você parece querer lutar
pela verdade apagando a verdade do que aconteceu. E isso é mentira.
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