terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

Contradições

 

Contradições

Entre teorias e práticas, próprias dum “ pensant” que não passa dum “roseau”, quantas vezes.

A luta pela verdade(3)

A política sempre foi um jogo de sombras, mas os espaços de entendimento foram desfeitos. E como as sociedades estão muito divididas e já não partilham um terreno comum, passou a disputar-se a verdade

17 fev. 2025, 00:209

1O regime da igualdade

A modernidade de que somos herdeiros, moldada pelo pensamento contratualista, assenta em dois princípios políticos fundamentais: igualdade e liberdade, como correspondendo à condição natural do homem e que o contrato social procuraria reproduzir, de maneiras diferentes pelos diferentes contratualistas, com a instituição do estado civil. Não é, por isso, surpreendente que as revoluções liberais que deram origem ao paradigma contemporâneo tenham conduzido, com tempo e adaptações, ao regime político antigo que institucionalizava aqueles dois valores: a democracia seria o governo do povo, pelo povo e para o povo na medida em que todos os cidadãos teriam o direito igual de participar na governação do país e a determinar as suas leis, ou seja, as suas condições de liberdade.

Francis Fukuyama usa o termo isotimia para referir que a democracia assenta no desejo de reconhecimento como igual, o que a distinguiria de regimes aristocráticos, em que o reconhecimento é procurado pela minoria que se responsabiliza pela cidade. Mas a igualdade que a democracia promete reconhecer é, necessariamente, uma ficção: o regime democrático ficciona que todos os cidadãos são iguais, apesar de todas as diferenças – intelectuais, físicas, de competências – que dão forma às pessoas reais. A realidade é, por excelência, o domínio da diferença.

A verdade é que, da mesma forma que nem todos podemos ser o melhor jogador do mundo, nem todos podemos ambicionar ser políticos carismáticos. Mas as ficções são dotadas de um tal poder que somos levados, pelas suas narrativas, a tomar como real o que é mera abstração. E é pelo efeito desse poder que, nas sociedades democráticas, se tende a considerar que todas as opiniões são igualmente válidas e legítimas, independentemente do conhecimento e das competências específicas que se aplicam em cada área (na ciência, na arte, no desporto).

Platão, como vimos, posiciona-se especificamente contra esta ficção de igualdade epistemológica, propondo antes um regime sofiocrático, na expressão de Freitas do Amaral, em que o governo caberia aos filósofos. Trata-se de uma tentação pelo poder que pauta, com regularidade, a história da filosofia, com muitos filósofos a reclamar o papel de conselheiros de monarcas esclarecidos ou de inspiradores de regimes autoritários e totalitários. É possível, no entanto, conciliar filosofia e democracia se optarmos por ler Sócrates como Hannah Arendt nos propõe. Ao contrário da versão platónica de detentor de uma verdade absoluta, Arendt sugere que o papel do filósofo seria ajudar a criar um espaço comum de entendimento por forma a que os cidadãos tornassem as suas doxoi mais esclarecidas e os projectos colectivos pudessem ser prosseguidos.

2O regime da liberdade

Esse papel caberia à elite política que, com mais conhecimento do que a restante população, seria capaz de construir um espaço de entendimento comum, em particular, reforçando as normas partilhadas que permitem a coesão social (uma espécie de “filósofos públicos” ao serviço do bem comum). Aquele desejo de reconhecimento de igualdade exigiria, nessa medida, a condição de que uma minoria garantisse essas condições de igualdade e foi, em certo sentido, esse o caminho percorrido desde os tempos protodemocráticos (pensemos nas ideias de Edmund Burke ou nas ideias e actos dos Founding Fathersnorte-americanos) até às grandes figuras políticas da primeira metade do século XX.

Essa elite política esclarecida e comprometida com o bem comum permitiu construir uma narrativa partilhada apesar das desigualdades reais e garantir um forte consenso em torno do regime democrático e das regras democráticas. Reconheciam que é necessária uma moralidade partilhada para que a confiança pública subsista em torno das instituições políticas e sabiam que cabe à elite o papel fundamental de reforçar essa moralidade partilhada e, em certo sentido, de se sacrificar por ela.

Contudo, as circunstâncias começaram a mudar na segunda metade do século XX, com a promoção daquilo que Francis Fukuyama designa como “a grande ruptura”, e que se caracteriza por uma profunda mudança nos valores em resultado da ascensão de um paradigma de individualismo moral. O individualismo moral pode ser visto como uma radicalização do princípio da liberdade e traduz-se no esforço permanente de subversão e libertação das regras sociais que, impostas e não escolhidas, promoveriam a repressão da personalidade individual.

Esta grande revolução cultural foi promovida pelas elites nas últimas décadas e pode ser encontrada – quer à esquerda, quer à direita – na ideia de que todas as regras que decorrem das normas sociais e morais tradicionais são modos de violência exercidos sobre o indivíduo e de que não é necessária qualquer moralidade partilhada para que uma sociedade possa ser bem-sucedida.

Mas, como diz Fukuyama,Como as pessoas depressa descobriram, havia sérios problemas com uma cultura de individualismo desenfreado, em que a subversão das regras se tornava, de certo modo, a única regra remanescente. O primeiro tinha a ver com o facto de os valores morais e as regras sociais não serem simplesmente restrições arbitrárias à liberdade de escolha individual; pelo contrário, são a pré-condição essencial a qualquer espécie de empreendimento colectivo.” (sublinhado meu)

3A luta pela verdade

Ao destruir a moralidade comum e a partilha de valores que permitiam o diálogo e o compromisso comunitário, as elites económicas e intelectuais dos países ocidentais enfraqueceram a confiança social e abriram espaço para as divisões sociais que, aos poucos, têm minado as nossas sociedades. Perante a lassidão social, à esquerda e à direita têm-se registado reacções identitárias em resultado da necessidade pessoal de pertença ao grupo, à tribo, recuperando algum sentido de pertença. O efeito passa, inevitavelmente, pela criação de uma arena de confronto e conflito. Se o espaço comum de valores foi destruído, cada grupo passa a impor uma nova moralidade que é apresentada como a sua verdade. E a política transforma-se numa arena de luta pela verdade em que cada acontecimento é interpretado de modo diferente e irredutível, sem possibilidade de compromisso.

Recordemos como Arendt usa a expressão dos antigos dokei moi: o mundo aparece-nos sempre de modo diferente. E isso não se alterou. O que se tornou diferente nos nossos tempos é que destruímos o terreno comum a partir do qual nos podíamos entender apesar dessas diferenças. O dissenso deixou de ser um caminho para o consenso, e tornou-se ele mesmo o próprio resultado do sistema democrático.

Não é, por isso, surpreendente que os nossos tempos sejam marcados por expressões como “fake news” ou “desinformação” – como se a mentira política tivesse sido criada em 2016. A política foi sempre um jogo permanente de sombras, mas hoje as possibilidades de entendimento colectivo foram desfeitas. E como as sociedades se encontram profundamente divididas e deixaram de partilhar um terreno comum, a disputa pela verdade passou a reflectir essas divisões: perante o mesmo facto surgem diferentes interpretações e leituras sem que nenhuma se consiga impor. O consenso tornou-se, assim, uma impossibilidade e a sensação de desconfiança e caos generalizou-se.

A expressão “pós-verdade” para descrever os nossos tempos não remete, assim, para o conceito de verdade em sentido platónico, mas para o sentido de amizade aristotélica, sem a qual a comunidade não pode existir.

DEMOCRACIA      SOCIEDADE      POLÍTICA

COMENTÁRIOS~

António Alberto Barbosa Pinho: Muito bem,  Sra Professora. Todavia, como sair daqui e como ficaremos depois?                    Américo Silva: Há verdades naturais, e verdades imaginárias, e tudo são verdades: é uma verdade natural que os filhos de ambos os pais com olhos azuis têm olhos azuis; e é uma verdade imaginária que uma nota de 20 euros vale 20 euros, e assim é e pode ser comprovado, muito embora a nota seja uma representação de nada, ao contrário das notas antigas que representavam ouro no banco de Portugal.                   Filipe F: Muito bom, como quase sempre. Obrigado.                  Luis Silva: O que é que a autora pensa dos atletas transgénero nos EUA perderem todos os prémios? Acha que o sr. Marina Machete deveria perder o título de Miss Portugal?

João Floriano > Luis Silva: Caro Luis Obviamente não tenho nada a ver com a autoria do artigo, mas eu não retiraria o título de Miss Portugal a Marina Machete. Faz parte de um momento histórico em que a sociedade cometeu excessos e que eu saiba a/o Miss Portugal não forçou a entrada no concurso. Foi-lhe permitida e até funcionou para mostrar como Portugal é um país avançado e na primeira fila do progresso. Aqui estou a ser irónico porque não vejo qualquer progresso neste caso. O que se deseja é que não se volte  a repetir. O mesmo tipo de argumentação seria aplicado aos transgénero não só nos Estados Unidos, que falsearam a verdade desportiva. Não repetir, mas o mal que foi feito já não pode ser revertido.                  José Paulo Castro > Luis Silva: Querer reescrever a verdade é a primeira forma de a perder. É verdade que os trans foram aceites e ganharam essas competições. Tal como será verdade se não forem aceites de agora em diante e as medalhas retiradas por se verificar que a inscrição era nula. Mas foi nula ou seguiu as regras de então? Procure a verdade indo por aqui, e não seguindo posições de princípio de outra época.        Luis Silva > José Paulo Castro: Você tem direito a uma opinião, mas não tem direito de dizer o que eu devo fazer ou pensar. Não existem trans, existem homens e mulheres, lamentável você padecer dessa distopia mental. Ainda estamos na época em que seres humanos podem simplesmente fantasiar que se identificam com irrealidades ficcionadas, que não correspondem à sua natureza biológica, e isso tem-lhes permitido obter vantagens que não teriam pela ordem natural das coisas.

A esses seres humanos, obviamente doentes mentais, devem ser-lhes retirados todos os prémios e vantagens obtidas e todo o sistema que o admite deverá ser demolido e refeito. Um dia isso irá acontecer.                           Luis Silva > João Floriano: Discordo completamente, o meu ponto de vista está mais acima noutra caixa.                     José Paulo Castro > Luis Silva: Não padeço de nenhuma disforia mental. Percebo o que você pretende, mas você não deve apagar a verdade de que eles estão aí, estiveram por aí e de que conseguiram essas vantagens e podem até vir a perdê-las, e muito menos você pode fingir que é verdade que a história se pode reescrever. Querer repor o que é correcto não anula a verdade de que foram adoptadas visões erradas. Mesmo que depois sejam repostas as regras e visões que sejam sentidas como verdade pela maioria. Isso, a luta pela verdade, não pode negar a verdade da história. Você parece querer lutar pela verdade apagando a verdade do que aconteceu. E isso é mentira.

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