quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Um pedaço de papel

 

Apenas. Em Moçambique também. Outro pedaço de papel, E que importou isso aos portugueses de cá e aos chutados de lá? O que importa isso hoje? Quanto ao povoléu estrangeiro, que iniciou o processo, bom proveito lhe fizesse nesse amparo interesseiro, que hoje continua, de afecto visível, nas largas parangonas sobre o “racismo selvático”, alvoroçadamente por cá estigmatizado, em fraterna comunhão com esses povos escravizados sem tréguas pelos seus ferozes colonizadores sem pejo. Belos tempos, que só chocaram alguns amantes da História pátria, os heróicos navegantes e conquistadores de outrora definitivamente arrumados nas salsas ondas do seu sacrifício inútil. Risível para os dos cravos abrilinos, definitivamente libertos das lições patrióticas de Salazar e C.ia.

50 anos do Acordo doAlvor

Foram os civis, dos chamados “retornados” enxotados do país às populações angolanas, empurradas pelos exércitos de um lado para outro, que sofreram mais com o estrondoso fracasso do Acordo do Alvor.

JOSÉ RIBEIRO E CASTRO Advogado e cidadão

OBSERVADOR; 04 fev. 2025, 00:1514

Em 15 e 28 de Janeiro últimos, venceram-se 50 anos sobre, respectivamente, a assinatura e a publicação do”Acordo do Alvor” no “Diário do Governo”, que regulou a independência de Angola e a transição. Caberia certamente, pela sua importância histórica e política, assinalar os 50 anos do Acordo do Alvor no quadro dos 50 anos do 25 de Abril. O facto de ter passado quase totalmente despercebido e não ser assinalado diz muito do que foi: um embuste gigantesco e um fracasso catastrófico.

Talvez pudesse ter sido diferente. Seria muito bom se tivesse sido diferente. Angola tinha aparentes condições para ser um caso bastante diferente. Em 1974, praticamente não havia guerra no território angolano, por onde se circulava livremente do Zaire ao Cuando-Cubango, da Lunda a Moçâmedes, de Benguela ao Moxico, de Malanje ao Cunene. A FNLA tinha pouca expressão (mas tinha consigo Mobutu), a UNITA era o movimento mais recente, com presença limitada no Leste, e o MPLA ressentia-se de divisões entre a linha Agostinho Neto (o secretário-geral), o grupo de Chipenda (com os seus próprios combatentes) e a “Revolta Activa” (um grupo pequeno, mas respeitado, de intelectuais coesos, mais próximos dos fundadores do movimento). Se todos quisessem agir com métodos exclusivamente políticos, Angola poderia ter emergido, na independência, sem partido único e com os partidos a pesarem livremente os seus apoios e a traduzirem-nos na representação parlamentar. Angola seria um bom exemplo. Com um pouco mais de abertura e de inteligência, até podiam ter admitido um outro partido mais ligado aos colonos portugueses e sua influência social, que consolidasse a sua vontade de ficar (escolhendo por certo a nacionalidade angolana) e o seu compromisso com a Angola do futuro. Muitos acreditaram nisto aquando do 25 de Abril e queriam continuar a acreditar.

Entre os acordos celebrados com os movimentos dos diferentes territórios ultramarinos, o Acordo do Alvor foi o único que não apontava para um regime de partido único. Esta é uma contradição profunda da revolução portuguesa: enquanto derrubava o regime autoritário em Portugal e nos apontava à democracia, entregava a generalidade dos territórios ultramarinos a ditaduras de partido único.

Bem vistas as coisas, talvez nem nós fôssemos excepção: se não fosse o 25 de Novembro, teríamos acabado também em ditadura de partido únicoNenhum dos territórios ultramarinos teve o seu 25 de Novembro, forçados a entrar na independência sem autodeterminação, privados de escolherem livremente os seus deputados, governantes e presidentes. A participação democrática só surgiria muito mais tarde e, à excepção de Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, sempre com inúmeras imperfeições e fraudes – e, para Moçambique e Angola, após guerras civis extremamente dolorosas com custos humanos gigantescos. Até hoje, Angola e a Guiné-Bissau ainda não realizaram sequer eleições locais autárquicas, que são a escola básica da democracia.

Lendo o Acordo do Alvor podemos imaginar, logo em 1975, um futuro promissor. Angola nasceria em quadro democrático, com assembleia parlamentar tripartidária: a Assembleia Constituinte, com deputados dos três movimentos escolhidos pelos angolanos, que teria de estar eleita até 31 de outubro, o mais tardar. A independência seria a 11 de Novembro, como foi. E, embora não estivesse escrito, não seria de admirar que o primeiro Governo de Angola tivesse de ter o apoio parlamentar maioritário daquela Assembleia.

Nada disto aconteceu, porque ninguém quis que acontecesse. Os três movimentos tinham desconfianças profundas entre si, que vinham de trás; e, alguns, ambições desmedidas para si mesmos, como era o caso do MPLA. O Governo de Transição, que tinha uma engenharia complexa para reger a natureza tripartida, nunca funcionou bem e cedo começou a abanar com as tensões entre os movimentos. Os choques armados, que já tinham ocorrido antes do Alvor, voltaram a acontecer entre MPLA e FNLA, e vice-versa – a UNITA só mais tarde entraria na guerra civil, mantendo-se na resistência até à morte em combate de Savimbi.

Em Janeiro de 2005, Almeida Santos, dirigente socialista que acompanhara todo o processo como ministro da Coordenação Interterritorial, reconheceu em entrevista à Lusa: “Fomos ultrapassados pelos acontecimentos e aquele acordo de Alvor é um acordo que não valeu nada.” Recorda ter dito na posse do Governo de Transição em Luanda: “este acordo tanto pode vir a ser um bom acordo para salvar Angola como pode vir a ser apenas um pedaço de papel.” E, 30 anos depois, concluiu: “Infelizmente, foi apenas um pedaço de papel”.

As forças militares mistas, previstas em dupla paridade (8.000 militares de cada um dos três movimentos e 24.000 militares portugueses), nunca chegaram a existir. Era um esquema inteligente para construir espírito comum e consolidar estabilidade e segurança com todos e para todos. Mas ninguém queria essa inteligência, nem esse espírito comum. A guerra civil angolana já estava internacionalizada antes de começar: a presença de militares estrangeiros e a entrada de inúmero armamento era a agenda real para o 11 de Novembro, a ver quem o apanhava só para si. A União Soviética e Cuba tornaram-se cada vez mais presentes e visíveis em Angola, de forma determinada e sem hesitações. A África do Sul e os Estados Unidos respondiam como podiam, de modo hesitante e entrecortado.

Antes de Julho terminar, já o MPLA tinha conseguido expulsar completamente a FNLA de Luanda, consolidando o seu poder na capital, onde sempre dispusera de larga vantagem a nível popular e em vários meios sobre os outros dois movimentos. (Quem se destacou nesta “batalha de Luanda” foi Nito Alves, dirigente do MPLA que seria trucidado pelo MPLA, junto com largos milhares de apoiantes seus, todos mortos aquando do 27 de Maio de 1978 – uma enorme e cruel tragédia da História angolana.)

Em 22 de Agosto de 1975, o Acordo do Alvor seria formalmente suspenso. Durou sete meses – e sempre mal. O futuro angolano pertencia à guerra civil, muito internacionalizada. Começou na Vila Alice, em Luanda, em Março de 1975, para acabar em 2002, no Luena. Pelo meio, morreram de 800.000 a 1,5 milhão de angolanos, embora não se conheça, ainda hoje, as baixas registadas por cada movimento. Quando as armas se calaram e se assinou, em Luanda, o Acordo de Paz, de 4 de Abril de 2002, havia 4 milhões de deslocados em Angola. Foram os civis, quer os chamados “retornados”, enxotados para fora, quer as populações angolanas, empurradas pelos exércitos de um lado para outro, que sofreram a maior parte com o estrondoso fracasso do Acordo do Alvor. Angola foi mais um mau exemplo – e dos piores.

Ao visitar estas páginas da História de Portugal e Angola, é inevitável apontar dedos aos culpados deste fracasso. Como sempre, há diferentes teses e visões. Creio que a responsabilidade principal cabe ao MPLA (e seus aliados nacionais e internacionais) que definiu um projecto de captura do poder para si mesmo; e, deparando com ambiente favorável, seguiu adiante até ao fim. Conseguiu mesmo passar do movimento muito dividido, fragilizado e em declínio, em Abril de 1974, à força vitoriosa que triunfou com pujança política e poderio militar.

Porém, a maior parte do acontecido deveu-se ao contexto revolucionário. Se há altura em que o Estado tem se ser forte, é certamente para gerir processos de descolonização. Estes consistem em transferência de autoridade soberana, a qual exige que quem transfere esteja forte, seguro e estável e quem recebe também esteja estável. As transferências de poder são tão sensíveis quanto a passagem do testemunho nas corridas de estafetas: se o poder está enfraquecido, se a mão que entrega e a que recebe não estão seguras e firmes, o testemunho cai no chão e instala-se a desconfiança, a cizânia e o caos.

A vigência do Acordo do Alvor coincidiu, quase todo, com a fase mais aguda do PREC após o 11 de Março, em que Portugal, dizia-se, era um “manicómio em autogestão”. O PCP, agindo como “5.ª coluna” da URSS, agenciava, por todos os canais ao seu alcance, o favorecimento e a supremacia do MPLA – o internacionalismo em acção. O quadro do contingente militar português estava deteriorado e desfavorável à garantia da ordem e da estabilidade na transição, ao nível que seria necessário. Várias vezes, forças portuguesas responderam (e bem) a incidentes. Mas, mais do que isso, não podiam – estavam de saída.

O destino estava traçado: quem tivesse o poder em Luanda em 11 de Novembro, ganhava. O MPLA ganhou, já sabemos, repetindo, em Angola, o desígnio da FRELIMO, do PAIGC e do MLSTP: não houve pluripartidarismo para ninguém. Democracia e liberdade, também não.

Retomo uma afirmação por que comecei: o Acordo do Alvor foi um embuste gigantesco e um fracasso catastrófico. Dos que o assinaram, provavelmente já ninguém acreditava no que estava a assinar – não nos conceitos e princípios, mas na sua exequibilidade. Era um papel para causar boa impressão. E o seu malogro gerou uma guerra que durou quase três décadas, deixando marcas de autoritarismo, soberba, medo, que ainda não desapareceram. Podia não ter havido Alvor e Angola ser uma democracia consolidada. Sim, podia. Mas não é. Passaram 50 anos.

ANGOLA      ÁFRICA      MUNDO

COMENTÁRIOS (de 14)

Rui Machado: A culpa é dos brancos! A culpa é do Salazar. A culpa é dos portugueses. É tão mais fácil. Passaram 50 e passarão outros 50 e Angola será o mesmo país fracassado. A culpa é sempre dos outros.                  Carlos Chaves: Agradeço ao José Ribeiro e Castro esta importante chamada de atenção sobre o “acordo” de Alvor! O criminoso papel do partido comunista português é sobejamente conhecido, tenho pena que não tivesse sido dado mais ênfase ao igualmente criminoso papel do partido socialista português.                       afonso moreira: Um dia poder-se-á falar abertamente da nossa história mais recente. Não o tem sido nos últimos 50 anos. O golpe militar do 25 de Abril foi feito por jovens militares, com idade média nos 30 anos, com as motivações que conhecemos e completamente impreparados para o dia seguinte. O regime anterior, dirigido por um líder sem carisma e sem ousadia, estava em decadência. Um dia será possível ouvir e analisar, de uma forma democraticamente madura, os discursos de Salazar, da década de 60, sobre política internacional e a expansão do comunismo, com as consequências que daí adviriam. As consequências ultrapassaram as previsões, cá e lá bem pior do que cá, apenas por um triz. Os revolucionários comunistas sabiam bem o que queriam e, naquela época, os métodos já tinham sido bem definidos e ensaiados noutros países com os resultados que conhecemos.                   Jorge Frederico Cardoso Vieira Barbosa: Pois a realidade é que o 25 de Abril que ainda hoje se festeja não passou de um logro. Marcelo Caetano posto numa encruzilhada de difícil saída - pelos conservadores, por um lado, e pelos liberais, por outro lado -deixou o regime cair nas mãos de um incapaz ( Spínola) e de um traidor nato ( Costa Gomes). E o resultado foi a tomada pelo poder ainda na rua da canalha socialmente criminosa que sempre foram e continuam ainda a ser os comunistas ortodoxos. O resto, designadamente MFA e todas as turbas que este liderou para servir os desígnios do PCP moscovita, não passa de gentalha politicamente sem eira nem beira                    GateKeeper: Bem podem "agradecê-lo" ao inenarrável MSoares, ao seu "very much hidden partner ACunhal e ao seu "mon ami 'mitérân'.                   Manuel Magalhães: Os Acordos do Alvor, foram um enorme e trágico fracasso, sem dúvida, mas o que é que se esperava de um acordo com enorme e cobarde preponderância dos socialistas e comunistas sob a batuta do charlatão mor chamado Mário Soares e do traidor russófilo chamado Álvaro Cunhal… é bom não esquecer e daqui vão os meus agradecimentos a José Ribeiro e Castro por nos lembrar!!!          Cisca Impllit: O Acordo do Alvor – só foi assinar, já estava tudo feito ,e anteriormente minado, pelos comunistas               Peter Leash: O PCP fez a sua parte. Entregou Angola ao MPLA, não se preocupando com nada nem ninguém. Não há dúvida nenhuma para com esse partido que só ajudou a trazer miséria e sofrimento a muitos...                   Francisco Almeida: Um muito oportuno artigo. "...embuste gigantesco e um fracasso catastrófico."define exemplarmente o que se passou.

O terceiro parágrafo já foi bem sintetizado por alguém que afirmou que o 25 de Abril produziu sete ditaduras comunistas e o 25 de Novembro evitou uma delas. Apenas discordo do pormenor de Savimbi ter morrido em combate pois entendo que foi assassinado. A meu ver, a potência (uma de 4 ou 5) que, a partir da utilização de um telemóvel por satélite, forneceu a geo-localização de Savimbi, efectivamente assassinou-o.               Carlos Real: Estando de acordo com quase tudo nesta excelente crónica, existem dois pontos que devem ser referidos.1º a descolonização portuguesa foi uma desgraça porque não houve verdadeiro período de transição. Soares acreditava que os seus amigos africanos tinham cabeça para governarem nações da noite para o dia. Puro idealismo. 2º a falta de democratização em Angola não foi apenas culpa do MPLA. Savimbi apenas conhecia a palavra tolerância e democracia no dicionário virtual. Foi um ditador, de cariz maoista que executou muitos dos seus apoiantes. Se ele tivesse ganho as eleições, Angola teria continuado a ser uma ditadura. Não e por ter sido um adversário de Moscovo, e amigo dos EUA e da South Africa branca que alguma vez iria aceitar partilhar o poder. Nunca o fez, nem na Jamba. Mais uma vez a família Soares apoiou um falso democrata, ou seja mais uma borrada.

 

Nenhum comentário: