domingo, 16 de fevereiro de 2025

As palavras da estulta desvergonha


A acrescentar ao indecoroso e atrevido comportamento de economicamente entrincheirado dominador dos mundos – esse tal Trump, de craveira mental não inferior à do parceiro russo, este de um cinismo mais modestamente exibido, aquele, sem dúvida, mais esplendorosamente executado… JAIME NOGUEIRA PINTO e os seus esclarecimentos sábios e fruto de uma honradez que os heróis da sua crónica desconhecem.

Pax americana?

A invasão foi um acto moral e juridicamente condenável, embora a declaração do Joe Biden, dias antes do ataque, de que os EUA nunca iriam para a guerra com a Rússia fosse de uma extrema infelicidade.

JAIME NOGUEIRA PINTO Colunista do Observador

OBSERVADOR, 15 fev. 2025, 00:1862

Não foram 24 horas, foram 24 dias. Como de outras vezes, Donald Trump exagerou na sua antevisão do tempo da paz para a Europa. Só na quarta-feira, 12 de Fevereiro, a dez dias de se completarem três anos sobre a invasão da Ucrânia e no 23ª dia de presidência, é que o novo inquilino da Casa Branca falou com Vladimir Putin. A conversa durou uma hora e meia e Trump resumiu-a assim:

 Acabei de ter uma longa e muito produtiva conversa telefónica com o presidente Vladimir Putin da Rússia. Discutimos a Ucrânia, o Médio Oriente, a Energia, a Inteligência Artificial, o poder do Dólar e outros assuntos. Ambos reflectimos sobre a grandiosa História das nossas nações e o facto de termos combatido juntos e com sucesso na Segunda Guerra Mundial, recordando que a Rússia perdeu dezenas de milhões de pessoas e que nós também perdemos muitas. Cada um de nós falou da força da sua respectiva nação e dos grandes benefícios que um dia conseguiremos a trabalhar juntos. Mas antes, como ambos concordámos, temos de parar os milhões de mortes da guerra Rússia/Ucrânia. O Presidente Putin usou mesmo o meu mote de “senso comum”. Ambos acreditamos nele com muita convicção. Concordámos trabalhar juntos, “very closely”, e visitarmo-nos mutuamente. Concordámos também em pôr as nossas equipas rapidamente a trabalhar nas negociações, e começar por chamar o Presidente Zelensky, da Ucrânia, para o informar da nossa conversa, coisa que vou fazer já de seguida.

Pedi ao Secretário de Estado Marco Rubio, ao Director da CIA, John Ratcliffe, ao Conselheiro Nacional de Segurança, Michael Walz, ao Embaixador e Enviado Especial, Steve Witkoff, para dirigirem as negociações que, estou firmemente convencido, vão correr bem. Milhões de pessoas morreram numa guerra que não teria acontecido se eu fosse presidente, mas aconteceu, por isso tem de acabar. Não se devem perder mais vidas! Quero agradecer ao Presidente Putin pelo seu tempo e esforço posto nesta chamada e pela libertação, ontem, de Mark Fogel, um homem excelente que pessoalmente saudei a noite passada na Casa Branca. Espero que este esforço leve brevemente a uma conclusão com sucesso”.

Esta mensagem na plataforma “Truth Social” é Trump no seu habitual estilo directo, auto-congratulatório, impreciso e hiperbólico. De qualquer modo, é um passo em frente para a paz.

Os sinais premonitórios eram muitos e vinham de todos os lados, com o próprio Zelensky, dois ou três dias antes da conversa Trump-Putin, dizendo-se disposto a falar com o Presidente russo e até a trocar o território que os ucranianos ainda ocupam em Kursk por parte daquilo que os russos ocuparam nas regiões russófonas do Leste da Ucrânia.

Depois da telenovela

Ao mesmo tempo, Pete Hegseth, o novo Secretário da Defesa de Washington, avisava os aliados europeus que a guerra ia acabar e que a ideia de a Ucrânia recuperar os territórios perdidos no Leste do país não passava de um “objectivo ilusório”, o mesmo se aplicando à Crimeia.

Zelensky também informava no X que tivera uma conversa com Trump, dizendo que ninguém mais do que a Ucrânia queria a paz e que “juntamente com os Estados Unidos” estava “a programar os próximos passos para parar a agressão russa e garantir uma paz confiável e duradoura.

É finalmente a realidade a impor-se à fantasia e à propaganda. O recurso à invasão armada em Fevereiro de 2022 por Moscovo foi um acto moral e juridicamente condenável, embora a declaração do ex-Presidente Biden, dias antes do ataque, de que os Estados Unidos nunca iriam para a guerra com a Rússia, fosse de uma extrema infelicidade e pudesse ter, no contexto, funcionado como um rastilho para a iniciativa russa, já que, na lógica do Kremlin, a guerra com os Estados Unidos era o único factor dissuasor.

A guerra começou com Putin no equívoco de uma vitória fácil e Zelensky no equívoco de um apoio externo que lhe permitisse a vitória. Houve, logo no início, a possibilidade de uma solução negociada em Istambul, mas foi sabotada pelo governo britânico de Boris Johnson em parceria com Washington. Os anglo-saxões tinham gostado da ideia de cansar a Rússia sem baixas, à custa da resistência ucraniana. Realpolitik e cinismo de alta qualidade.

E daqui, a par da tragédia real, veio a telenovela que dura desde então, com inúmeras demonstrações de como os ucranianos estavam a ganhar e iam ganhar a guerra. A dado momento, já quase nos parecia estranho que Moscovo ainda não tivesse caído nas mãos de Zelensky. Mas não. O que víamos nos écrans era um exercício muito comum nos últimos anos na comunicação euro americana que pouco tem que ver com a realidade. Por isso quando, por alguma razão, a realidade se revela a surpresa é sempre absoluta. Surpresa e desolação. Como com a vitória de Trump.

Tulsi Gabbard e J. D. Vance para o café

No dia em que Trump conversava com Putin e Zelensky, outra notícia no sentido da chegada do realismo à política norte-americana era a da confirmação, por 52 contra 48 votos no Senado, de Tulsi Gabbard como Directora Nacional de Inteligência. Gabbard é natural de Samoa, cresceu no Havai, viveu um ano nas Filipinas e apoiou o senador Bernie Sanders em 2016. Estivesse ela agora do lado correcto da História e da Política e o que não lhe renderia em veneração mediática todo este “exotismo”, a bater aos pontos a “negritude” e “indianidade” de Kamala Harris?

Mas não. A nova DNI fez serviço militar no Iraque e no Kuwait e sempre foi uma democrata histórica, hostil aos neo-conservadores, só que em Outubro de 2022 abandonou o Partido Democrata com o seguinte “post” no X:

“Não posso continuar no actual Partido Democrata, que está agora sob o controle total de uma cabala elitista de belicistas, fomentadores da guerra, orientados por um wokismo cobarde, que nos dividem, ao racializarem todo e qualquer tema e ao atiçarem o racismo anti-branco, minando as liberdades que Deus nos deu. São hostis às pessoas com fé e espiritualidade, demonizam a polícia, protegem os criminosos à custa dos americanos cumpridores da lei, acreditam em fronteiras abertas, usam o sistema de segurança nacional para perseguir opositores políticos e, acima de tudo, arrastam-nos cada vez mais para a guerra nuclear.”

Nesta declaração, de uma radicalidade trumpiana, Gabbard parece garantir que, com ela a coordenar a informação das 18 agências de segurança americanas (incluindo CIA, DIA e NSA), podemos dormir (mais) sossegados.

E para o culminar das estranhas mensagens vindas da nova América, na Conferência de Segurança de Munique, na sexta-feira, 14 de Fevereiro, o vice-presidente Vance enumerava uma lista de políticas não-democráticas e claramente iliberais da União Europeia (desde policiar redes sociais a anular eleições na Roménia) – Isto numa “Europa Unida” que via quase tão preocupada em expandir a democracia no mundo como em controlar liberdades e decisões populares dentro das suas fronteiras, em nome de uma misteriosa e cada vez mais reservada razão de Estado.

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COMENTÁRIOS (de 62):

Sérgio Cruz: Ontem, JD Vance, deu uma lição ao wokismo da UE. Pode ser que agora bata de frente com a parede e caia na real. É triste que tenham de ser mais uma vez os americanos a chamarem-nos à razão. Pobre UE... já cá estiveram na velha Europa a morrerem aos milhares para nos livrarem dos nazis agora voltam para acabar com esta ditadura soft de Bruxelas dos órfãos de Marx. Viva Vance Os off             Madalena Magalhães Colaço: Pela primeira vez , em Portugal, alguém escreve que a paz esteve prestes a ser assinada em Istambul e que foi sabotada pelo senhor Boris com o acordo de Washington. Durante dias, em discussões duras, Rússia e Ucrânia chegavam a um acordo de paz, que teria evitado a carnificina que se seguiu. Como é que ninguém pergunta a Zelensky - que agora diz que quer a paz - porque não assinou o acordo de paz em abril de 2022? O que lhe prometeu Boris e Washington? Hoje, as revelações do dinheiro dos contribuintes americanos que a agência do USAID gastava em revoluções coloridas, vem comprovar o que Victoria Nuuland, no governo de Obama, já tinha referido em público. Que 5 mil milhões de dólares foram gastos para promover a revolta de Maiden. Um presidente pró-russo era substituído por um pró americano, para Hunter, filho de Biden , e companhia apoderarem-se do país, um dos mais corruptos na lista mundial. Tulsi, critica o governo anterior de "cabala elitista de belicistas". A Ucrânia foi utilizada em parte para impedir que o gasoduto Nordstream II ligasse a Rússia à à Alemanha,. Biden referiu, antes mesmo da invasão russa, que o gasoduto iria ficar inoperacional. Poderes premonitórios... O que é frustrante é esta Europa, que cega, vai agora pagar a conta pois a América o que quer é o retorno do dinheiro que lá enterrou.                Liberales Semper Erexitque: É finalmente a realidade a impor-se à fantasia e à propaganda. Brilhante formulação esta de Jaime Nogueira Pinto. Sinto aquilo a que se passou a chamar "vergonha alheia" por ver que a maior parte das pessoas por aqui continuam no seu mundo de fantasia e propaganda sonhando com derrotas russas. E até ainda vejo na rua gente com uma máscara cirúrgica na cara!                Rui Lima: A elite europeia depois de 1989 estava convencida que ia gerir a ordem mundial com o seu Directo uns tribunais castigavam os maus e era um mundo perfeito , está acordar para a realidade Está encostada à parede ou fica sob tutela russa ou paga para a sua defesa, o vice-presidente dos EUA dá uma lição aos europeus sobre Imigração, democracia, liberdade de expressão.             Carlos Chaves: Ou seja, apesar da “paz” (se vier), Trump entregou a Ucrânia a Putin! Resolveu-lhe um “problema”, que lhe permitirá rearmar-se e daqui a quatro anos (ou menos) atacar a Europa! Se a Europa não der corda aos sapatos nas políticas de defesa e continuar entretida com as transições energéticas  à pressão, e com as tampinhas das garrafas de plástico, vamos ter que aprender Russo e beber vodka! P.S.  Se calhar estou errado esqueci-me que temos um génio na Presidência do Conselho Europeu!                Futari Gake: Excelente artigo para lembrar muitos quem tentou impedir que acordos de paz, não sei se são os de Minsk, rejeitados por Biden/Obama+Neocons e pelo bulldog inglês. Trata-se de ser a favor da Rússia ou da Ucrânia, ou de continuar uma guerra na Europa que custa a vida a milhôes de ucranianos, russos e condiciona a vida de milhões na Europa? Quem ganha com a continuação desta guerra?             Rui Lima > Filipe Paes de Vasconcellos: Ela diz mais do mesmo sem a mínima noção da realidade Trump telefona nas costas, em fevereiro de 2022, o presidente francês Emmanuel Macron viajou a Moscovo para se reunir com o presidente russo Vladimir Putin pediu autorização a quem ? quando a 2 meses o chanceler alemão telefonou a Putin não informou ninguém, por que razão é que ela pensa que os USA que pagam a conta tinham de pedir autorização à Europa? Américo Silva: A guerra começou com a limpeza étnica dos ucranianos de origem russa, e a Rússia tinha toda a legitimidade para invadir a Ucrânia mais cedo, e acabar com esse holocausto; as elites políticas e económicas conspiram contra a democracia, contra os valores cristãos, contra a classe média, e contra os povos de origem europeia.                Manuel Almeida Gonçalves: Paz à Lenine, entre Putin e Trump, para alcançar objectivos pessoais e políticos pérfidos - o tempo o dirá.               José B Dias: O que víamos nos écrans era um exercício muito comum nos últimos anos na comunicação euro americana que pouco tem que ver com a realidade. Por isso quando, por alguma razão, a realidade se revela a surpresa é sempre absoluta. Surpresa e desolação. O que por aqui tenho há já anos tentado salientar ... com forte incómodo de muitos que preferem sempre a narrativa que lhes confirme os desejos a uma qualquer realidade que os incomode.

 

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