Eis a 2ª estrofe completa d’OS LUSÍADAS, em apoio do texto e seu
título, por GUILHERME DE OLIVEIRA MARTINS, que evoca, julgo que com amor pátrio
oportuno, um dos nossos grandes heróis que, com o seu trabalho de orientação na
ESCOLA MARÍTIMA DE SAGRES se tornaria responsável pela dilatação do conhecimento dos
mundos terrestres da distância marítima…
E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis, que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando;
E aqueles, que por obras valerosas
Se vão da lei da morte libertando;
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.
«E
também as memórias gloriosas»
Dotado de inteligência superior, D. Henrique ligava razões diversas –
políticas, económicas, sociais e religiosas –, à luz do seu tempo.
GUILHERME D'OLIVEIRA MARTINS Presidente
do Conselho das Artes do Centro Nacional de Cultura
OBSERVADOR, 13 fev. 2025,
00:155
Prosseguimos a reflexão sobre os nove
séculos de independência de Portugal, compreendendo que a consciência colectiva
da nacionalidade corresponde a um processo longo e progressivo. Há uma cadeia de factos históricos cuja
articulação conduz à maturidade do fenómeno nacional.
O Infante D.
Henrique
Se há figura na História
portuguesa rodeada de uma aura especial, essa é a do Infante D. Henrique (1394-1460). São riquíssimas a sua experiência e a
influência que exerceu no seu tempo e no século seguinte. Uns glorificam-no,
outros apoucam-no e talvez todos estejam algo fora da verdadeira consideração.
O Infante D. Henrique, num fólio da
«Crónica dos Feitos da Guiné», de Zurara.
Sobre os
mistérios existentes, basta lembrarmo-nos do debate sobre a vera efígie do
Infante. A mais
próxima imagem de quem teria sido Henrique é a que está no pórtico sul do Mosteiro dos Jerónimos, no entanto são as representações da «Crónica dos Feitos da Guiné» de Zurara, que se encontra na Biblioteca Nacional de Paris, e a dos Painéis ditos de S. Vicente,
de Nuno Gonçalves, no Museu Nacional de Arte Antiga, que nos permitem identificar facilmente Henrique, o Navegador.
De facto, o Infante tornou-se quase um
mito, apesar de ser uma das figuras históricas
portuguesas sobre quem é possível definir com maior rigor um percurso de
coerência e de vontade. A decisão da exploração da
costa de África, e tudo o que se lhe seguiu, é algo que merece cuidada análise –
correspondente à ponderação de decisões e acontecimentos que têm tudo menos de
acaso. A conquista de
Ceuta (1415) permitiu
a compreensão das dificuldades colocadas, a Portugal e à Península
Ibérica,
na entrada do Mediterrâneo e no comércio com o Levante. As cinco razões da «Crónica dos Feitos da Guiné» de
Gomes Eanes de Zurara têm de ser lidas em estreita ligação com as fortes
condicionantes económicas, políticas e territoriais: (a) a vontade de conhecer
as novas terras; (b) as razões comerciais para a troca de produtos; (c) o
poderio dos “mouros daquela terra d’África”, muito maior do que comummente se
pensava”; (d) o saber se haveria rei cristão naquelas paragens; (e) a expansão
da fé cristã.
Sobretudo, pouco se entenderá
deste movimento, se não invocarmos a profunda crise económica e social sentida em Portugal
e na Europa no último quartel do século XIV, ainda sob efeitos da peste negra, que obrigou à procura de alternativas. Se o Infante não é uma figura
isolada, o certo é que tem uma quota-parte fundamental no planeamento e na
administração de um reino que não poderia nem queria ficar confinado ao
território peninsular, às limitações mediterrânicas e às ameaças dos mouros,
árabes e otomanos. D. Henrique foi marcante e cioso dos seus domínios, era duque
de Viseu, senhor da Covilhã, governador da Ordem Militar de Cristo, senhor dos
arquipélagos da Madeira e dos Açores e do barlavento algarvio, mas também
detentor do monopólio das saboarias, da pesca do atum, da produção do pastel ou
da pesca do coral.
A Ínclita Geração
Há, no entanto, uma notável complementaridade no seio
da chamada Ínclita Geração, os Altos Infantes. A figura do Pai, D. João I, é a de um
autêntico refundador do Reino, na sequência de D. Afonso Henriques e D. Dinis,
cada um a seu modo, sendo criador de uma realidade política nova ligada à
grande frente marítima atlântica, mas também às influências mediterrânicas.
Se cuidarmos da análise dos
acontecimentos, depressa descobrimos que os filhos do Rei da Boa Memória, D. Duarte (o Leal Conselheiro),
D. Pedro das Sete Partidas e D. Henrique articulam inteligentemente acções. A
leitura da célebre carta de Bruges, enviada por D. Pedro a D. Duarte,
ainda príncipe herdeiro, além de nos
revelar a defesa do que mais tarde se designaria como fixação por contraponto
ao transporte, apresenta-nos o que poderíamos designar como um projeto nacional
– com uma Administração moderna, uma economia adequada à inovação, uma
universidade capaz de seguir o que de mais avançado outras faziam e uma procura
de novos modos de funcionar e agir.
Está, aliás, por
esclarecer inteiramente qual a influência das informações de D. Pedro,
recolhidas no périplo europeu e nas navegações promovidas por D. Henrique na
costa africana. O certo é que quer o “Livro das Maravilhas do Mundo” de Marco Polo quer um misterioso mapa de Fra
Mauro devem
ser lembrados – não
que tenham definido um plano para a Índia, que só o Príncipe
Perfeito assumirá, mas como a necessidade de procurar,
como diz Zurara, uma aliança estável para favorecer o comércio com o Levante.
Não seria
ainda a Índia o objectivo, mas D. Henrique estaria a pensar na Terra Santa,
preocupado com o seu próprio poder e a sua influência, com a sua vocação de
cruzado do novo tempo. A atitude perante o desastre de Tânger e o cativeiro
de D. Fernando deve ser lida a esta luz. E, se dúvidas houvesse, basta
lembrarmo-nos de que, mais tarde, Afonso de
Albuquerque persistiria na ideia da libertação da Terra Santa.
O amplo poder
do Infante
Dotado de uma inteligência superior, D. Henrique ligava razões diversas – políticas, económicas, sociais e religiosas –, à
luz do seu tempo. Importa, pois, reconhecer o significado da articulação
de vontades e inteligências e da sua extraordinária capacidade para seduzir e
para convencer. E não poderemos esquecer ainda a influência europeia de D. Isabel de Borgonha, casada com Filipe, o
Bom, e mãe de Carlos o Temerário.
Segundo João Paulo Oliveira e
Costa, despojado do mito, D. Henrique não é apenas o Navegador, é o príncipe preocupado com o seu senhorio e com a
sua influência política e um cortesão que sabia influenciar e enlear as demais
figuras da corte, através de uma simpatia que o colocou sempre acima das
divergências que dividiam os membros da família real. O
Infante moveu-se intensamente em todo o reino, e os períodos de maior
frequência nas deslocações, «coincidem com a sua mais intensa acção expansionista: 1437-1441 e 1443-1445. Em ambos os períodos, correu de Lagos a
Viseu, cidades gémeas no seu entender. Na primeira,
assistia à partida e chegada das embarcações e à repartição das mercadorias; em
Viseu, de ordinário, arrecadava o quinto e demais fracções que lhe cabiam.
Aquando do
conflito trágico, que culminou na Batalha
de Alfarrobeira (1449), D. Henrique procura contemporizar, sem sucesso, mas
é sob a sua influência que o corpo de D. Pedro irá para a Batalha, não podendo
esquecer-se que, com interferência do Rei, ver-se-á reconhecido pelo Papa como director das navegações, conquistas,
ocupações e apropriações de todas as terras, portos, ilhas e mares do
continente africano e mesmo dos ainda a ocupar da Guiné para sul sem fixação de
quaisquer limites («per totam Guineam et ultra»).
Regressar à leitura da
História não pode significar nem saudosismo, nem ilusão ou descanso nas glórias
passadas, mas sim responsabilidade e compreensão das situações diferentes dos
vários tempos. Longe da ideia de acaso ou de improviso nas memórias gloriosas
do que se trata é de olhar para diante em cada tempo, com conhecimento e
audácia.
(Continua)
[Os artigos da série Portugal
900 Anos são uma colaboração semanal da Sociedade Histórica da Independência de
Portugal. As opiniões dos autores representam as suas próprias posições.]
PORTUGAL 900
ANOS HISTÓRIA CULTURA
COMENTÁRIOS:
Francisco
Almeida: Profundamente desapontado com o texto. A
exemplo da historiografia do Estado-Novo, realça o bom e oculta o mau. Note-se
que nada tenho contra a historiografia do Estado-Novo e li com muito prazer a
História de Portugal de João Ameal. Mas essa destinava-se a crianças, no quadro
geral de um país inculto, fazendo todo o sentido incentivar e desenvolver os
mitos dos heróis. Mas, não sendo esse o escopo - ou será que é? - em termos de
verdade histórica, este artigo é menos do que sofrível. Licínio
Bingre do Amaral: Excelente
artigo. Espero pela continuação. Tim do A: 9 séculos de independência. A independência
das orientações de Bruxelas? E do dinheiro de Bruxelas? Portugal já não é
independente. É um protectorado da UE. E deixou de ter interesses próprios. Os
interesses de Portugal são agora os de países estrangeiros. Nomeadamente, os
emanados de Bruxelas. Mas também os de Espanha, como a bitola ibérica na
ferrovia. E territorialmente, se considerarmos 1143, não sei se chegaremos aos
900 anos. A Rússia anda a cobiçar Lisboa já há uns tempos. E continua. Por tudo
isso, independentes é força de expressão. Maria
Nunes: Excelente artigo. Manuel Lisboa: Crónica muito interessante. De facto, o
Infante Dom Henrique continua a ser uma figura extraordinariamente importante
na História de Portugal e Universal. Talvez, em conjunto com Dom Nuno Álvares
Pereira, continue a ser a personalidade histórica portuguesa mais influente,
que não foi Rei. Aliás, se me lembro bem, nem a obra de Peter Russell
"Prince Henry the Navigator, a Life", apesar de ter tentado, não
conseguiu expurgar completamente a auréola mitológica, que continua a
prevalecer naquele quinto filho do Rei de Boa Memória. Monarca ainda tão
presente no Palácio de Sintra. Significativa igualmente a evocação da irmã a
brilhante Infanta Dona Isabel, a grande Duquesa de Borgonha (na sua época o
estado mais rico da Europa) em honra da qual foi criada a célebre Ordem de
Cavalaria " Tosão de Ouro" e que contribuiu de maneira relevante para
o povoamento dos Açores, apoiando o seu irmão Henrique, do qual, se diz, era
bastante próxima.
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