De longa data, como o comprova a
expressiva aula “mágica” de PATRÍCIA FERNANDES, que nos repõe velhos filósofos da
Antiguidade Clássica, de par com os fictícios “sofistas” de todo o sempre, os
tempos de hoje, na peníria mental, já salientes ontem, segundo os diálogos conceituosos do Sócrates
platónico.
A luta pela verdade (1)
O grande desconforto gerado pelas
ideias de Platão decorre, acima de tudo, de nos parecerem premonitórias:
identificamos nas suas palavras o processo de decadência das sociedades
ocidentais.
PATRÍCIA FERNANDES
Professora na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho
OBSERVADOR, 03
fev. 2025, 00:20
1Sofistas e filósofos
Um professor sabe que a estratégia de
ensino mais eficaz é aquela que passa por contar uma história. Afinal, como a
tradição da “narrative turn” defende, o nosso cérebro tende a pensar de forma
narrativa e, nas palavras de Jonathan Gottschall, somos animais que contam histórias.
Elas ajudam-nos a dar alguma ordem ao
caos da vida, embora contenham uma limitação: a lógica narrativa tende a ser
gerada a partir de uma oposição superficial entre bons e maus – e, por essa
razão, o segundo passo do professor é o de explicar que o mundo é, na verdade, ambíguo e complexo.
A estratégia narrativa foi
usada durante décadas no ensino da filosofia quando se procurava, no primeiro
ano do secundário, explicar em que consiste esta nova área de estudo. Nova para os estudantes, naturalmente,
uma vez que esta história nos fazia recuar cerca de 2500 anos para explicar como
é que os filósofos – verdadeiros heróis – tinham surgido como resposta aos sofistas
– os maus da fita. De acordo
com uma narrativa simplista, os sofistas eram professores gananciosos que
vendiam o seu conhecimento a troco de dinheiro e sem qualquer respeito pela
verdade. Já os filósofos, personificados na figura de
Sócrates, o grego, seriam aqueles que se voltaram contra essa heresia, num
esforço moral tão elevado que o ateniense teve de o pagar com a própria vida.
Hoje, o ensino da filosofia está
diferente e a maioria dos alunos chega à universidade sem ter ouvido esta
história (é-nos dito que a abordagem analítica, que incide sobre problemas e
não sobre a história das ideias, é mais científica). O problema é que chegam ao ensino
superior sem fazer a mínima ideia de quem foram Sócrates, Platão e os sofistas
– embora mantenham a intuição de que os filósofos são os protagonistas de uma
história que não compreendem bem. E como também tendem a
considerar a democracia como o único regime político legítimo, não reconhecem
de imediato que a filosofia se afirmou, não”pela” democracia, mas ”contra” ela e que são, em bom rigor, os sofistas a representar o
espírito democrático de Atenas.
2A defesa de Helena
Os sofistas desempenharam um
papel fundamental nas democracias
gregas e a sua enorme popularidade fazia com que viajassem frequentemente
para ensinar os jovens que pretendiam dedicar-se ao serviço público e político
da cidade. Nos diálogos de Platão são narrados encontros de
Sócrates com esses grandes nomes, nos quais o ateniense confronta o interlocutor com a natureza da sua actividade.
Essa indagação é especialmente clara em Górgias, com o
sofista a explicar que se dedica à retórica, i.e., à capacidade de persuadir
pela palavra “os participantes de qualquer espécie de reunião política”.
Esta capacidade era particularmente
importante para os Gregos, que, como diz Hannah Arendt, “se orgulhavam de, ao contrário dos
bárbaros, conduzirem os seus assuntos políticos sob a forma
do discurso e não da compulsão” e
consideravam a persuasão “a mais elevada e verdadeira forma de arte
política”. Em
Atenas, este aspecto traduziu-se na instituição de uma democracia
directa pelo que a participação
política implicava o uso da palavra – estando reservada ao orador a
possibilidade de apresentar a sua visão do mundo, a sua opinião, a sua
verdade. Terá sido com este
sentido que Protágoras
afirmou que o homem é a medida de todas as coisas?
Os filósofos serão críticos ferozes desta atitude relativista, mas a virtude da sofística parece inegável: ela recorda-nos que a realidade é ambígua e complexa e que todos os
acontecimentos podem ser vistos de múltiplas perspetivas. Este
reconhecimento não só se traduz numa atitude epistemológica mais humilde, como introduz curiosidade no domínio político: será que sabemos tudo o que há para
saber de um determinado assunto ou devemos estar receptivos a outras
interpretações sobre os mesmos factos?
Num texto pouco conhecido entre nós, Górgias faz esse exercício com Helena, a de Tróia. Perante o consenso
generalizado de a considerar culpada pela grande guerra entre gregos e troianos,
Górgias oferece-se para fazer a sua
defesa. Afinal, até a bela Helena pode estar inocente…
3O ataque à democracia
Provavelmente por ter vivido a
experiência da morte de Sócrates, Platão nunca se deixou seduzir pelo facto de a sofística possibilitar o exercício da
ambiguidade e da conflitualidade que são inerentes às sociedades democráticas. E chocava-o, em particular, o facto de a retórica
ser uma arte vazia
ou, nas suas palavras, de um ignorante poder ser “mais
persuasivo do que um entendido perante uma multidão de ignorantes”. Naquele
diálogo, a personagem Górgias orgulha-se
precisamente desse facto:
“Muitas vezes acompanhei o meu irmão e
outros médicos a casa de doentes que não queriam tomar um remédio ou
submeter-se ao tratamento do ferro ou do fogo. Ora, quando o médico se mostrava
incapaz de persuadir o cliente, fazia-o eu, sem mais recursos do que a
retórica.” (456b)
É o espanto perante o vazio epistemológico dos sofistas que vai levar a que o discurso filosófico se afirme em
oposição à persuasão e à retórica e colocá-lo em conflito com a democracia. Na obra “A República”, Platão defende que o governo da cidade
deve caber apenas àqueles que são capazes de sair da caverna e contemplar a
ideia do Bem. Trata-se da popular teoria do Rei-Filósofo, que
assenta numa desigualdade de partida: o governo da cidade caberia àqueles naturalmente capazes de se
dedicarem à filosofia; os restantes viveriam no mundo da doxa, da opinião, e
seriam, por isso, incapazes de agir politicamente.
Embora, na sua última obra, Platão pareça refrear os impulsos
antidemocráticos, mantém a sua crítica não só ao processo de igualitarização promovido pela democracia – que “faz com que os cidadãos
acreditem que a sua opinião é tão válida e importante como a daqueles que sabem
mais –, como também aos excessos de liberdade – que fazem com que esses cidadãos,
acreditando ser competentes, percam o medo e tenham o atrevimento de criticar e
avaliar tudo e todos. A democracia redundaria numa espécie de teatrocracia, como se os cidadãos
estivessem a assistir a um espectáculo, apupando e julgando sem preocupações de
fundamento.
Reconheçamos. O grande
desconforto gerado pelas ideias de Platão decorre, acima de tudo, de nos
parecerem premonitórias: identificamos
nas suas palavras o processo de decadência das sociedades ocidentais. Aliás, não deixa de ser interessante que a democracia
ateniense tenha atingido o apogeu
com a tragédia, e a sua decadência tenha correspondido ao florescimento
da comédia. Será apenas mais uma
coincidência dos nossos tempos?
É possível que, se tivesse
acesso ao vocabulário do século XXI, Platão descrevesse o seu tempo como um
período de pós-verdade, marcado, como o nosso, por um em permanente
conflito torno da verdade e da mentira, inviabilizando
a existência de uma Verdade-com-letra-maiúscula,
uma verdade final e objectiva sobre a realidade. Um tal conflito traduz-se
numa disputa permanente que impossibilita
o entendimento e a coesão social necessária para empreender projectos
colectivos. Mas significa isto que
temos de abdicar do projecto democrático? Estará a democracia condenada a
destruir-se em resultado dos seus próprios termos? FILOSOFIA
CULTURA SOCIEDADE
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