segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

O Homem, esse conhecido


De longa data, como o comprova a expressiva aula “mágica” de PATRÍCIA FERNANDES, que nos repõe velhos filósofos da Antiguidade Clássica, de par com os fictícios “sofistas” de todo o sempre, os tempos de hoje, na peníria mental,  já salientes ontem, segundo os diálogos conceituosos do Sócrates platónico.

A luta pela verdade (1)

O grande desconforto gerado pelas ideias de Platão decorre, acima de tudo, de nos parecerem premonitórias: identificamos nas suas palavras o processo de decadência das sociedades ocidentais.

PATRÍCIA FERNANDES Professora na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho

OBSERVADOR, 03 fev. 2025, 00:20

1Sofistas e filósofos

Um professor sabe que a estratégia de ensino mais eficaz é aquela que passa por contar uma história. Afinal, como a tradição da “narrative turn” defende, o nosso cérebro tende a pensar de forma narrativa e, nas palavras de Jonathan Gottschall, somos animais que contam histórias. Elas ajudam-nos a dar alguma ordem ao caos da vida, embora contenham uma limitação: a lógica narrativa tende a ser gerada a partir de uma oposição superficial entre bons e maus – e, por essa razão, o segundo passo do professor é o de explicar que o mundo é, na verdade, ambíguo e complexo.

A estratégia narrativa foi usada durante décadas no ensino da filosofia quando se procurava, no primeiro ano do secundário, explicar em que consiste esta nova área de estudo. Nova para os estudantes, naturalmente, uma vez que esta história nos fazia recuar cerca de 2500 anos para explicar como é que os filósofos – verdadeiros heróis – tinham surgido como resposta aos sofistas – os maus da fita. De acordo com uma narrativa simplista, os sofistas eram professores gananciosos que vendiam o seu conhecimento a troco de dinheiro e sem qualquer respeito pela verdade. Já os filósofos, personificados na figura de Sócrates, o grego, seriam aqueles que se voltaram contra essa heresia, num esforço moral tão elevado que o ateniense teve de o pagar com a própria vida.

Hoje, o ensino da filosofia está diferente e a maioria dos alunos chega à universidade sem ter ouvido esta história (é-nos dito que a abordagem analítica, que incide sobre problemas e não sobre a história das ideias, é mais científica). O problema é que chegam ao ensino superior sem fazer a mínima ideia de quem foram Sócrates, Platão e os sofistas – embora mantenham a intuição de que os filósofos são os protagonistas de uma história que não compreendem bem. E como também tendem a considerar a democracia como o único regime político legítimo, não reconhecem de imediato que a filosofia se afirmou, não”pela” democracia, mas ”contra” ela e que são, em bom rigor, os sofistas a representar o espírito democrático de Atenas.

2A defesa de Helena

Os sofistas desempenharam um papel fundamental nas democracias gregas e a sua enorme popularidade fazia com que viajassem frequentemente para ensinar os jovens que pretendiam dedicar-se ao serviço público e político da cidade. Nos diálogos de Platão são narrados encontros de Sócrates com esses grandes nomes, nos quais o ateniense confronta o interlocutor com a natureza da sua actividade. Essa indagação é especialmente clara em Górgias, com o sofista a explicar que se dedica à retórica, i.e., à capacidade de persuadir pela palavra “os participantes de qualquer espécie de reunião política.

Esta capacidade era particularmente importante para os Gregos, que, como diz Hannah Arendt, “se orgulhavam de, ao contrário dos bárbaros, conduzirem os seus assuntos políticos sob a forma do discurso e não da compulsão” e consideravam a persuasão a mais elevada e verdadeira forma de arte política”. Em Atenas, este aspecto traduziu-se na instituição de uma democracia directa pelo que a participação política implicava o uso da palavra – estando reservada ao orador a possibilidade de apresentar a sua visão do mundo, a sua opinião, a sua verdade. Terá sido com este sentido que Protágoras afirmou que o homem é a medida de todas as coisas?

Os filósofos serão críticos ferozes desta atitude relativista, mas a virtude da sofística parece inegável: ela recorda-nos que a realidade é ambígua e complexa e que todos os acontecimentos podem ser vistos de múltiplas perspetivas. Este reconhecimento não só se traduz numa atitude epistemológica mais humilde, como introduz curiosidade no domínio político: será que sabemos tudo o que há para saber de um determinado assunto ou devemos estar receptivos a outras interpretações sobre os mesmos factos?

Num texto pouco conhecido entre nós, Górgias faz esse exercício com Helena, a de Tróia. Perante o consenso generalizado de a considerar culpada pela grande guerra entre gregos e troianos, Górgias oferece-se para fazer a sua defesa. Afinal, até a bela Helena pode estar inocente

3O ataque à democracia

Provavelmente por ter vivido a experiência da morte de Sócrates, Platão nunca se deixou seduzir pelo facto de a sofística possibilitar o exercício da ambiguidade e da conflitualidade que são inerentes às sociedades democráticas. E chocava-o, em particular, o facto de a retórica ser uma arte vazia ou, nas suas palavras, de um ignorante poder ser “mais persuasivo do que um entendido perante uma multidão de ignorantes”. Naquele diálogo, a personagem Górgias orgulha-se precisamente desse facto:

 “Muitas vezes acompanhei o meu irmão e outros médicos a casa de doentes que não queriam tomar um remédio ou submeter-se ao tratamento do ferro ou do fogo. Ora, quando o médico se mostrava incapaz de persuadir o cliente, fazia-o eu, sem mais recursos do que a retórica. (456b)

É o espanto perante o vazio epistemológico dos sofistas que vai levar a que o discurso filosófico se afirme em oposição à persuasão e à retórica e colocá-lo em conflito com a democracia. Na obra “A República”, Platão defende que o governo da cidade deve caber apenas àqueles que são capazes de sair da caverna e contemplar a ideia do Bem. Trata-se da popular teoria do Rei-Filósofo, que assenta numa desigualdade de partida: o governo da cidade caberia àqueles naturalmente capazes de se dedicarem à filosofia; os restantes viveriam no mundo da doxa, da opinião, e seriam, por isso, incapazes de agir politicamente.

Embora, na sua última obra, Platão pareça refrear os impulsos antidemocráticos, mantém a sua crítica não só ao processo de igualitarização promovido pela democracia – que “faz com que os cidadãos acreditem que a sua opinião é tão válida e importante como a daqueles que sabem mais –, como também aos excessos de liberdade – que fazem com que esses cidadãos, acreditando ser competentes, percam o medo e tenham o atrevimento de criticar e avaliar tudo e todos. A democracia redundaria numa espécie de teatrocracia, como se os cidadãos estivessem a assistir a um espectáculo, apupando e julgando sem preocupações de fundamento.

Reconheçamos. O grande desconforto gerado pelas ideias de Platão decorre, acima de tudo, de nos parecerem premonitórias: identificamos nas suas palavras o processo de decadência das sociedades ocidentais. Aliás, não deixa de ser interessante que a democracia ateniense tenha atingido o apogeu com a tragédia, e a sua decadência tenha correspondido ao florescimento da comédia. Será apenas mais uma coincidência dos nossos tempos?

É possível que, se tivesse acesso ao vocabulário do século XXI, Platão descrevesse o seu tempo como um período de pós-verdade, marcado, como o nosso, por um em permanente conflito torno da verdade e da mentira, inviabilizando a existência de uma Verdade-com-letra-maiúscula, uma verdade final e objectiva sobre a realidade. Um tal conflito traduz-se numa disputa permanente que impossibilita o entendimento e a coesão social necessária para empreender projectos colectivos. Mas significa isto que temos de abdicar do projecto democrático? Estará a democracia condenada a destruir-se em resultado dos seus próprios termos?                            FILOSOFIA       CULTURA       SOCIEDADE

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