terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

Um texto sério


Apesar da graça da sua ironia escrupulosamente sensata. RUI PEDRO ANTUNES, o seu compositor. Um cheirinho da encantadora “Marília de Dirceu” para ele, como tributo de apreço pelo seu humor crítico:

São estes os sítios?
São estes; mas eu
O mesmo não sou.
Marília, tu chamas?
Espera, que eu vou….

A desagregação dos tachos

Os cargos nas novas freguesias, que a última década provou serem dispensáveis, são um trem que pode custar 120 milhões. Só Marcelo (e a IL) tiveram coragem de dar uma tampa, ou um testo, aos fregueses

RUI PEDRO ANTUNES Editor de Política do Observador

OBSERVADOR, 25 fev. 2025, 00:18

Sou natural e cresci em Salvaterra de Magos. Vivia numa rua que, praticamente, ia dar ao largo da câmara municipal, não muito longe da junta. Na terra, na minha terra, não se joga à apanhada, brinca-se aos toiros. Há mais fandango que marchas. O ponto alto das festas da vila são as largadas e não os cantores pimba. Conheci campinos em exercício da profissão. O andebol tem um historial mais bem-sucedido do que o futebol entre outras idiossincrasias. A aparente fidalguia dá-nos uma aparente arrogância sobre as freguesias e concelhos vizinhos, que nos chegam a chamar “netos de D. Miguel”, de tão absolutistas que somos.

Junto a Salvaterra de Magos estão os Foros de Salvaterra — que ao contrário de uma história de reis, condes e marialvas, foi sempre uma zona proeminentemente agrícola. Isto antes de uma boa parte dos salvaterrenses para ali migrarem para construir vivendas, casas com piscina e outros sonhos térreos. Lembro-me do meu amigo Jorge ter ido viver para o Foros e logo esquecemos as milhentas alcunhas para passar a ser o “foreiro”. Era como uma ofensa: fo-rei-ro. Os Jorges, como o meu amigo, foram vingados quando em 2013 Salvaterra e os Foros foram agregados numa mesma entidade administrativa.

Os salvaterrenses não passaram a ser menos salvaterrenses nem os foreiros menos foreiros. Não se perdeu a identidade por mais bacoca (ou barroca) que fosse. A única coisa que aconteceu é que as gentes dos Foros têm de fazer mais seis quilómetros de carro (que têm de utilizar para quase todas as deslocações numa freguesia com baixa densidade populacional) do que até 2013. E mesmo assim nunca deixou de funcionar uma extensão física da junta dentro das fronteiras dos Foros.

Estas duas freguesias (cada uma com sensivelmente 5 mil habitantes) vão voltar a separar-se, sem haver nada que o justifique. Ainda no mesmo concelho, a freguesia do Granho, que tinha menos de mil habitantes antes da agregação, vai separar-se da Glória do Ribatejo (essa mesmo que uma série da Netflix atirou para o estrelato à boleia da Raret). Só nestes dois casos vão ser mais dois presidentes de junta, mais edifícios a funcionar — com contas de água e luz — mais vogais, mais funcionários.

Aos dois casos referidos juntam-se mais 293 novas-velhas freguesias. A Iniciativa Liberal fez as contas e estima que serão, no total, mais 30 milhões de euros anuais, quase um terço desse valor em salários. O que significa 120 milhões de euros num mandato autárquico (dos quais cerca 40 milhões em salários). São centenas de novos cargos, que — com o devido respeito pelos eleitos — são o que coloquialmente se chama de tachos, uma vez que os últimos 10 anos provaram que não são estritamente necessários e são até dispensáveis.

Em véspera de autárquicas fazer uma alteração desta envergadura ainda se torna mais pernicioso, pois vai haver uma multiplicação das candidaturas. Neste momento, as máquinas partidárias (e os cada vez mais influentes) independentes já estão a fazer cálculos, não com o sentido de melhor servir as populações, mas vencer mais juntas de freguesias, conseguir mais cargos. Ao longo dos últimos anos houve registo de falta de maternidades, de urgências sobrelotadas, poucos professores, sectores inteiros descontentes, mas não consta que fazer mais meia-dúzia de quilómetros para ir à junta de freguesia tenha sido um problema do “país real” — mesmo nas zonas rurais, onde as juntas de freguesias desempenham um papel (ainda mais) fundamental para o bem-estar das populações.

De todo o Parlamento só a Iniciativa Liberal votou contra esta proposta e, mesmo o Chega, teoricamente contra tachos e tachinhos, não foi além da abstenção. O adulto na sala teve de ser o Presidente da República que, sem temer as Anafres desta vida — que em causa própria ficaram chocadas com o veto presidencial –, vetou o diploma.

O PSD teve uma oportunidade de ouro para agir. Podia até dar como desculpa a mesma que o PS minoritário (e até maioritário) tantas vezes deu: não afrontar o Presidente da República com uma insistência na lei sem qualquer alteração. O PSD até tentou concertar com o PS uma posição comum, mas os socialistas nem quiseram ouvir falar disso. No fim do dia, o PSD teve medo de ir a votos em autárquicas a enfrentar outdoors do género: “Pelo PSD, esta freguesia não existia. Vote PS”. Assim sendo, salvo atrasos de última hora, vão mesmo existir mais 295 freguesias. E, permitindo-me um pouco de demagogia primária (mas nem por isso falsa), esses gastos inúteis de 30 milhões anuais vão fazer falta a escolas e hospitais. Ou no mínimo — se não for aumentado o “bolo” total das transferências para as autarquias — ao ringue do parque, ao jardim infantil, aos buracos na estrada por tapar.

Pior do que isso, a alteração vai ser perene. Já ninguém vai ter coragem para fazer de novo o que a dupla Relvas-Passos, com as costas quentes da troika, fez em 2013. Isso significa que Salvaterra e Foros; ou, para ir para outras geografias, Mealhada, Ventosa do Bairro e Antes; ou ainda Cardielos e Serreleis, vão ficar separadas para sempre. É uma pena. Não importaria nada de continuar a ser salvaterrense. E ao mesmo tempo foreiro. Seria, de resto, um orgulho. Isso não beliscaria, como nunca beliscou em dez anos, a identidade de cada vila, nem esenraizaria ninguém. Desta vez, dá-se a proeza de terem perdido, de uma só vez, os netos de D.Miguel e os liberais.

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