segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Bem se diz


Que “Águas passadas não movem moinhos”, ou “O que lá vai, lá vai”. Hitler figura nos espaços televisivos, ou nos compêndios de História, sem esquecer o proveito que dele fazem os Putins para justificar as suas guerras “à Hitler”, embora desta vez com os drones de longo alcance e os ares de hipócrita compostura putiniana, em contraste com a expressão de permanente e altiva irritabilidade do fácies e voz hitlerianos. Não, não parece que a Alemanha alguma vez possa andar “à deriva”, sérios e seguros de si que são os Alemães, e menos ainda em face de um Trump de poderio e alarido vistosos e um tanto risíveis, mau grado os ameaços de violências próximas, inesperadas e absurdas. Mas tudo pode acontecer, pois já está acontecendo, no mundo de ambição e vilania… e distracção também.

Como ajudar a destruir o mundo que conhecemos

Ao mencionar a culpa alemã como colectiva, Musk não reabre apenas feridas. Retira a ligação da América à Alemanha do pós-guerra. E o pior que pode acontecer à Europa é uma Alemanha à deriva.

 ANDRÉ ABRANTES AMARAL Colunista do Observador

OBSERVADOR, 02 fev. 2025, 00:2018

Por uma coincidência dos diabos aconteceu-me estar a ler a autobiografia de Simone Veil, ‘Une vie’ no dia em que se assinalaram os 80 anos da libertação de Auschwitz e em que Elon Musk afirmou que os alemães deviam esquecer a culpa pelo passado nazi. Se a coincidência foi curiosa, a verdade é que também se tornou útil. Útil, porque Musk parte de um equívoco em que Veil nunca caiu: o da culpa colectiva.

Judia e francesa, Simone Veil foi deportada para Auschwitz, em Março de 1944, e daí retirada para Bergen-Belsen, de onde foi libertada em Abril de 1945. Perdeu o pai, a mãe e o irmão. Da sua família de origem restaram as duas irmãs, Milou e Denise. Regressou a Paris esmagada por uma imensa tristeza, mas isso não a impediu de recuperar a sua vida. Estudou, casou, fez questão de trabalhar para ser financeiramente independente do marido, teve filhos, uma carreira, na magistratura e na política. No seu livro, escrito em 2007, diz não esquecer quem lhe fez mal e lembra quem a ajudou. No mais, esclarece que não generaliza a culpa entre os alemães. Pelo contrário, recorda uma antiga prostituta alemã, responsável pelo sector onde Simone se encontrava e que, sem que esta percebesse porquê a ajudou, mais à sua mãe e irmã, colocando as três numa zona de trabalho mais segura. É extremamente crítica do comportamento dos franceses, por os judeus (inclusive, franceses) terem sido mais mal tratados pelo regime de Vichy que mais tarde o foram pelos italianos, quando estes tomaram o sul de França, entre Nice e Toulon.

Veil chega mesmo a criticar Hannah Arendt e o seu conceito da responsabilidade colectiva e da banalidade do mal. No meio da maldade incompreensível que sofreu, Simone testemunhou e beneficiou da bondade humana, de gestos de quem, sem esperar por qualquer recompensa, se recusou a fazer o mal. Pessoas que resistiram à maldade e, desse modo, destruíram a sua banalização. Ao longo da sua longa vida, Simone Veil nunca culpou os alemães. Propugnou apenas pelo alerta constante ao ódio que nasce e que se alimenta da ignorância, da indiferença, do fechar de olhos à realidade; aos factos. À verdade. Como resultado da sua lucidez, não teve qualquer problema em viver na Alemanha, logo nos anos 50, e entendeu que o futuro da Europa dependia dos acordos entre Paris e Berlim.

A Alemanha actual foi criada com a lucidez de espírito de pessoas como Simone Veil. Mas também com o forte apoio dos EUA. É neste ponto que as afirmações de Elon Musk são relevantes. Musk não se limita a generalizar a culpa que, no seu entender, os alemães devem esquecer. Os efeitos do que disse vão mais longe porque desligam os EUA da Alemanha nascida no pós-guerra. A Alemanha de Adenaeur, de Brandt e de Kohl foi uma Alemanha com um destino construído no seio da Europa porque o acesso ao exterior do continente era garantido por Washington. Basicamente, porque a culpa não foi colectivizada e havia lugar a que se agisse em igualdade e sem necessidade de esquecer o passado.

Musk foi vítima de bullying por parte do pai e dos colegas, pessoas concretas que conheceu e que pode identificar a qualquer hora, ao contrário do que, curiosamente, sucedeu a Simone Veil. No entanto, e no uso que faz da sua rede social, na qual diz o que lhe apetece sem qualquer tipo de filtro e opera, como Anne Applebaum escreve na ‘The Atlantic’, fora do sistema legal, ou pelo menos fora das responsabilidades legais a que se sujeita a imprensa tradicional, não se limita a abrir feridas. Se a maioria dos norte-americanos e dos alemães o escutarem, Berlim terá novamente de se preocupar com o acesso às matérias-primas e a mercados onde possa escoar os seus produtos, conforme há dias tive oportunidade de referir. Se assim for, a saída da Alemanha do centro da Europa não será fruto do ressurgimento da extrema-direita, mas devido ao reposicionamento interno de uma aliança em que cada Estado tem desempenhado o papel que lhe foi incumbido em nome de um equilíbrio que a história levou séculos a nos ensinar como lidar com ele.

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COMENTÁRIOS (de 18)

Meio Vazio: É abusivo afirmar que o desafio de Musk presume no mesmo a convicção de uma culpa colectiva alemã; convoca, isso sim, um facto: uma quase universal, mas injusta e vexante, responsabilização dos alemães "tout court" pelos crimes do nazismo. Um "pecado original" hetero-imposto que toca qualquer Klaus ou Gretchen, mesmo que recém-nascido. Tome-se como exemplo a facilidade com que se adjectiva de "nazi" qualquer soldado cumprindo o serviço militar obrigatório no III Reich e, em contraponto, a repugnância em apelidar de fascista quem, servindo nas forças armadas portuguesas, combateu (até voluntariamente) em África entre 1961 e 1974 (muitos desses homens, aliás, posteriores "campeões da democracia"). Seja mais perspicaz, senhor Amaral. Ou mais sério.   José Martins de Carvalho: A afirmação de Elon Musk de que os alemães devem esquecer a culpa pelo passado nazi não pode ser interpretada como "os alemães são nazis". E muito menos como detonador de sanções americanas que isolem a Alemanha. É certo que a Alemanha vai perder mercado para os seus magníficos automóveis de combustão interna, e não tem matérias-primas para automóveis eléctricos, nem energia barata. Porém, não é a Elon Musk que deve pedir contas, mas sim aos seus "verdes", por cujas cantigas se deixou levar.                  Lily Lx: Musk tem razão. Os alemães vivem presos à expiação da culpa. Foi por isso que abriram o país a milhões de imigrantes. Está na hora de parar com a culpa e a destruição do país.                Paul C. Rosado: Este texto parece-me falacioso. O que Elon Musk disse está correcto. Não é o Musk que entende que os alemães são colectivamente responsáveis. O que ele diz é que devem deixar de se sentir colectivamente responsáveis. Estar a acusar o Musk de abrir feridas ao "mencionar a culpa alemã", neste contexto, não faz qualquer sentido.                     Futari Gake: AAA, diga logo ao que vem, pois o artigo é um saco de banalidades e de conclusões depois de ler Veil ou de fazer interpretações sobre Musk e a Alemanha. Afinal que mundo quer ajudar a destruir não percebi e "conhecemos" é muita gente. Por mim o caminho seguido pela Alemanha há muitos anos é o caminho do socialismo, como o da UE e das políticas de portas abertas sem controlo que começaram com Merkel e Blair, depois a destruição da indústria pela política energética dos vários governos alemães da CDU e SPD até agora. No momento, ficam apenas as promessas feitas antes de eleições, o caminho para o suicídio da Alemanha está determinado, o depois, logo se verá e não vai ser Musk que irá influir nisso, será a roleta das eleições e o bom-senso de quem as ganhar. Bom-senso do lado do SPD, não existe há muito e da CDU, se verá, se quer uma Alemanha cada vez mais pobre e socialista ou se fecha a porta às políticas impostas pela Agenda 2030.                   José B Dias: Quais as "responsabilidades legais" a que a imprensa tradicional sujeita quem nas suas páginas ou "sites" escreve colunas de opinião? Ou será melhor perguntar a Anne Applebaum cuja opinião dificilmente não foi ou é afectada por ser judia, filha e neta de judeus do antigo Império Russo e casada com um polaco que até foi Ministro das Relações Exteriores? Por exemplo, que limitações , decorrentes do "quadro legal", foram impostas ao aqui cronista pelo jornal Observador que não existiriam se este estivesse a publicar no X como Musk? PS: e sim, já é mais do que tempo de deixar de pensar em nazis e holocausto sempre que a Alemanha é mencionada e fazer os netos continuarem a pagar por acções ou inacções dos seus avós e bisavós.        Por8175: É impossível imaginar até onde é que a gente como AAA consegue ir no seu irracional e faccioso ódio a Trump! Este artigo é um glorioso exemplo de "wokismo" - porque é que o autor não se filia no BE? E porque é que não identifica a sua cor? Isto é que seria transparência, que é impedida pela falta de honestidade intelectual, que se pretende impor aos outros! Lamentável artigo!           Jorge Freitas: Não percebi nada. E parece-me que o autor também não. Os alemães não interiorizaram alguma vez culpa alguma, simplesmente seguiram com a vida como lhes foi possível, e dada a sua proverbial capacidade de fazer o que lhes mandam sem pensar muito, deram-se relativamente bem no campo económico. Os floreados sobre 'a culpa colectiva' foram, nesse processo, muito úteis para dar à Alemanha uma aura de país eticamente especial, que lhes permitiu fazer negócios convenientes com Rússias e Chinas sem grandes sentimentos de culpa, uma vez que já tinham feito aquela mortificação colectiva toda em relação ao passado nazi. Musk tem razão: deixem-se de tretas e passem a ser um país normal (e deixem de se esconder atrás da assunção de responsabilidades passadas para enfrentar a responsabilidade das asneiras que fizeram no presente).

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