segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Luta verificada


 Em mais esta excelente análise filosófica da Professora PATRÍCIA FERNANDES, sobre o vário comportamento humano.

A luta pela verdade(2)

A deterioração da democracia costuma ser pensada a partir da ignorância e desinformação das massas, mas não será antes consequência da deterioração das elites, que foram percorrendo outros caminhos?

PATRÍCIA FERNANDES Professora na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho

OBSERVADOR, 10 fev. 2025, 00:20

1Dokeimoi

Regressemos a Hannah Arendt. Contra a “tirania da verdade” de Platão, Arendt convoca Sócrates para recuperar o conceito de doxa, agora entendido como “dokei moi”: o que me parece ou do que me aparece. É a ideia que Aristóteles subscreve, de acordo com Arendt:

 “O pressuposto era que o mundo se abre de modo diferente para cada homem segundo a sua posição nele, e que a ‘mesmidade’ do mundo, a sua qualidade comum ou ‘objectividade’, reside no facto de que o mesmo mundo se abre a todos e de que a despeito de todas as diferenças entre os homens e entre as suas posições no mundo – e, por consequência, entre as suas doxai (opiniões) – ‘tu e eu, ambos somos humanos’.”

É por esta razão que Aristóteles nos parece mais próximo do espírito democrático, mesmo que nunca tivesse feito a sua defesa. Ele oferece um Sócrates diferente do de Platão, e que Arendt recupera: como o mundo nos aparece sempre de forma diferente, não podemos ambicionar fugir dessa pluralidade. Estamos condenados a viver num mundo que é experienciado de modo diferente por cada indivíduo e que, por isso, é inevitavelmente plural, confuso, ambíguo e, até, conflituoso.

É possível que nenhum texto represente tão bem esta relação entre mesmidade e pluralidade como os quatro Evangelhos. Quatro textos que se debruçam sobre o mesmo objeto – a vida de Jesus – mas fazendo-o com discrepâncias incompatíveis… precisamente porque são quatro, e não um. Contudo, se o mundo é o mesmo, se o objecto é o mesmo, se a história é a mesma, não fragilizam essas contradições a mensagem dos evangelistas?

FREDERICO LOURENÇO inverte a questão: “as características discrepantes e contraditórias funcionam como garantia de autenticidade”, uma vez que teria sido mais fácil para a Igreja escolher um único texto ou criar uma versão concordante. Os Evangelhos representariam, assim, a própria fragilidade da experiência humana, a nossa impossibilidade de aceder, conhecer e compreender a realidade tal qual ela é (tópico filosófico por excelência) e, portanto, o facto de precisarmos do outro e dos outros para termos uma visão mais completa do mundo e da verdade.

O mesmo é dizer que, apesar de experienciarmos o mundo de modo diferente, podemos estar de acordo em princípios e valores fundamentais se vivermos em comunidade e amizade, em sentido aristotélico.

2O mito de Protágoras

Em Protágoras, Platão coloca na boca do sofista aquele que poderíamos designar como o mito fundador da democracia:

“Zeus, então, inquieto, não fosse a nossa espécie desaparecer de todo, ordenou a Hermes que levasse aos homens respeito e justiça, para que houvesse na cidade ordem e laços que suscitassem a amizade. Hermes perguntou a Zeus de que modo haveria de dar aos homens justiça e respeito: ‘Distribuo-os do mesmo modo que, no início, foram distribuídas as outras capacidades? As outras ficaram assim repartidas: um médico é suficiente para muitos leigos e o mesmo acontece com os outros especialistas. Atribuo, também, justiça e respeito aos homens deste modo, ou distribuo-os por todos?’ ‘Por todos – respondeu Zeus – e que todos partilhem desses predicados, porque não haverá cidades, se somente uns poucos partilharem deles (…).” (322d-322e)

Assim, Zeus teria distribuído o sentido de justiça e respeito por todos os homens, o que significa que todos teriam a mesma capacidade de pensar o bem público e tomar decisões razoáveis e racionais. Seria, no fundo, este princípio de igualdade que fundaria a possibilidade de igual participação política mas, acima de tudo, a possibilidade de criação de espaços de entendimento comum.

Este mito de Protágoras oferece-nos uma mensagem de esperança: os homens não estão condenados ao conflito e à violência, pois a sua humanidade comum permitiria encontrar conceitos e valores comuns por forma a tornar a vida colectiva possível. E seria nessa possibilidade de criação que o filósofo desempenharia o seu papel: não como uma espécie de figura divina que vislumbra a verdade e deve, por isso, governar a cidade, à semelhança de Platão – mas como aquele que pode contribuir publicamente para criar esse espaço de maior clareza e entendimento comum. Como diz Arendt,

“Sócrates parece ter acreditado que a função política do filósofo era contribuir para a instauração desta espécie de mundo comum, construído a partir do entendimento entre amigos, que torna a dominação desnecessária.”

3A democracia liberal

Será que era isso que Sócrates tentava fazer quando abordava os seus concidadãos e, tal como um moscardo, os provocava a que esclarecessem as suas ideias e as suas certezas? Será que, como Arendt entende, Sócrates procurava sobretudotornar melhores as suas doxai”?Não temos modos de acesso privilegiado à verdade que nos permitam saber com precisão o que Sócrates pensava e pretendia, mas esta hipótese de Arendt ajuda-nos a compreender melhor a inquietude que sentimos perante as críticas de Platão à democracia: acreditamos no “dom dos deusespara a nossa capacidade de viver em conjunto, mas reconhecemos que são necessárias condições para que esse viver democrático seja possível.

Parte significativa da filosofia política moderna traduziu-se no esforço de determinar essas condições, mas é provável que a resposta se encontre desde logo nosFounding Fathersnorte-americanos, quando lançaram as bases para aquilo que chamamos democracia liberal ou representativa. É que a democracia liberal permite conciliar aquelas duas intuições humanas: a universalidade do respeito e justiça e a consciência muito premente de que a vontade da maioria é capaz das maiores atrocidades (recordemos a lição dos dois grandes mitos fundadores do ocidente: a morte de Sócrates e a morte de Jesus).

Esta difícil conciliação passa pelo reconhecimento de que “alguns” devem assumir a responsabilidade de contribuir publica e politicamente para a cidade, possibilitando a criação de espaços de entendimento comum e tornando melhores as “doxai” dos seus concidadãos. Seria esse o papel das elites, que, com mais conhecimento e tendo em vista o bem comum, teriam a responsabilidade de transformar o terreno da luta pela verdade num espaço de esclarecimento, à imagem do que defendeu Edmund Burke.

Esta hipótese inverte, contudo, os termos normalmente levantados quando se discute a deterioração da democracia. É que esta costuma ser pensada a partir da degradação das bases, da ignorância das massas e da sua suscetibilidade à manipulação, à desinformação ou às notícias falsas. Mas será a decadência dos regimes democráticos consequência da deterioração das elites, que foram percorrendo outros caminhos? Uns, abdicando das responsabilidades públicas e dirigindo a sua energia para os negócios privados (e públicos) com vista ao enriquecimento pessoal; outros, enveredando pelos meandros intelectuais do ”etnomasoquismo” e cortando com as referências culturais e de valores que permitiam sociedades capazes de compromissos colectivos? E até que ponto as maiores exigências populares, ou populistas, dos nossos tempos não são reflexo desse processo de degradação?

No dia 13 de fevereiro, e por organização da Comissão Diocesana da Cultura|Aveiro, reflectiremos em modo tertúlia sobre a esperança possível perante os perigos dos nossos tempos. Aqui deixo o desafio: Cultura woke: que esperança? Os perigos da teoria do género’

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