Dos tempos antigos, dos tempos modernos, de todos os tempos, afinal,
mau grado a democrática postura, hoje, de alguns de nós, ou a postura finória
de tantos mais, condicionantes estratégicas das evoluções políticas variegadas. Como sempre, o prazer do
aprofundamento de dados que mal conhecíamos, com as ilações ou comentários
aclaradores, com que se e nos apraz a destreza espiritual de JAIME NOGUEIRA
PINTO.
A ascensão e queda de Thomas Cromwell
Nada como uma boa série para descansar do mundo agitado pela nova
política externa de Donald Trump e das “malas que não vieram por bem” da
política doméstica, entre outras deploráveis touradas
JAIME NOGUEIRA PINTO Colunista do Observador
OBSERVADOR, 08 fev. 2025, 00:1726
Wolf Hall, Bring up the Bodies e The
Mirror and the Light, de Hilary Mantel, é uma trilogia que, além de ser um premiado
“best-seller” literário,
foi adaptada – e bem-adaptada – por Peter Kominsky para uma série de televisão. Tenho estado a vê-la, para
descansar do mundo agitado pela nova política externa de Donald Trump e das
“malas que não vieram por bem” da política doméstica, entre outras
deploráveis touradas; além das corriqueiras movimentações pré-eleitorais.
A história de Thomas Cromwell, nascido no povo no final do século XV, em Putney,
Surrey, Sueste da Inglaterra, é bem mais interessante.
Cromwell terá nascido em
1485, o ano da batalha de Bosworth Field,
que pôs fim à guerra das Rosas, entre a Casa de Lancaster
(rosa vermelha) e a Casa de York (rosa branca). Em Bosthorth, Ricardo III,
Ricardo de York – o tenebroso corcunda infanticida, assassino dos sobrinhos,
da tragédia de Shakespeare – foi vencido por Henry, conde de
Richmond, filho de Eduardo e de Margarida de Beaufort. Margarida descendia de Eduardo III através
de João de Gant, duque de Lencastre, pai
da nossa D. Filipa de Lencastre, mãe da Ínclita geração.
Henrique VII, o Tudor vitorioso,
foi então aclamado rei e reinou até 1509. Sucedeu-lhe Henrique VIII, o “rei Barba Azul”.
Na versão televisiva, Henrique
é interpretado por Damian Lewis, que se tornou famoso no papel
de Nicholas Brody, na série Homeland Security, em que contracenava com Claire
Danes, a bipolar agente da CIA.
Aqui, Lewis não é o marine cativo do Al-Qaeda e virado no cativeiro; é o todo-poderoso rei Tudor que, não tendo
filho-homem que lhe suceda ao fim de vinte anos de casamento com Catarina de Aragão, pretende que Roma lhe anule
o casamento. Para tal, conta com a diplomacia do seu Lord Chanceler,
Lord of the Privy Seal, o cardeal Thomas Wolsey, Arcebispo de York, papel
desempenhado na série por Jonathan Price.
Um homem do povo
Mas Roma não cede e, por isso,
no início da história, Henrique está furioso com Wolsey, que não conseguiu
convencer o Papa a anular o casamento. Henrique quer Ana Bolena,
mas ela não quer ceder-lhe sem casar. E lá aparece Cromwell, Thomas Cromwell, advogado e colaborador predilecto de
Wolsey. Cromwell,
filho do povo comum, andara pelo Continente, lutara em França e Itália como
mercenário e trabalhara com os Frescobaldi, banqueiros de Florença. E dedicara-se também a negócios na Antuérpia,
nos Países Baixos.
Cromwell é um fiel de Wolsey e
vê com muita pena a sua queda, forçada por Ana
Bolena, já favorita de Henrique. Wolsey morre em desgraça,
escarnecido pelos cortesãos, entre eles um dos Howard, irmão da amante do Rei.
Tudo isto leva Henrique a abandonar a Igreja Católica e a criar a Church of
England de que se proclama chefe. Ana Bolena também não lhe dá herdeiro
macho, apenas uma menina, Isabel, que
será a grande rainha do século XVI inglês.
Thomas Cromwell (Mark Rylance) torna-se então o homem de
confiança do rei, através de um jogo ambíguo em que serpenteia numa corte que é
também um espaço de alto risco. Nessa corte, Thomas More, um fiel dos Tudor
– autor da Utopia e de The History of King Richard the Third que
serviria de fonte a Shakespeare para o perfil negro do vencido de Bothsworth – não
cede e vai pagar com a cabeça a sua fidelidade a Roma.
A
Europa estava no ferro e fogo da Primeira Reforma e das guerras de Itália entre
Francisco I e Carlos V. Os
lansquenetes de Carlos V tinham saqueado Roma em 1527, mas, depois, o Papa e
o Imperador tinham-se reconciliado e aliado contra o Tudor.
Cromwell é o grande
responsável pela política anti-católica de encerramento e nacionalização dos
mosteiros. Foi – e é, nesta ficção filmada – uma personagem maquiavélica, um homem
só, que se põe ao serviço do Rei e se torna o grande responsável pela Reforma
em Inglaterra, mostrando em todo o seu comportamento “a strict attention to
business”. Torna-se indispensável a
Henrique, mais voltado para as mulheres e para a caça.
Shakespeare e o poder
Em Henry VIII, a peça
histórica de Shakespeare, Cromwell
aparece como uma personagem secundária, leal a Wolsey e ao Rei. A
peça foi representada em 1613, no reinado de Jaime I. Fascinado pela política como arte do poder num tempo e num lugar em que
o motor era o favor ou o desfavor do Rei, Shakespeare não foi, nem
precisava de ser, um historiador rigoroso e escrevia num tempo de risco – a censura isabelina não ficava atrás em penalizações
da inquisição espanhola.
Mantel, a autora do livro que deu origem à série,
confessou a sua admiração por Shakespeare, narrador
da teia do poder e dos poderes,
exemplificando a sua genialidade com o rasgo
oratório de Marco António em ”Júlio Cesar”, capaz de fazer com que uma
multidão favorável a Brutus e aos assassinos do ditador mudasse de opinião e
partisse depois à caça dos que antes admirara.
Shakespeare usa como inspiração e guião para as peças históricas as Chronicles de Raphael Holinshed. Em Wolf Hall e na trilogia, Mantel
transporta-nos para a corte Tudor, antro
da intriga e da luta das grandes famílias pelo favor de um rei humano,
demasiadamente humano, e sensível a paixões e emoções. A história, envolvendo o corte com Roma, iria ser determinante para
a Inglaterra e para a Europa, com a ascensão e queda de validos e”influencers” –
queda às vezes seguida de expiação pública por decapitação.
Thomas
Cromwell domina a história. Não como Príncipe maquiavélico
– o príncipe é Henrique – mas
como maquiavélico ministro do Príncipe
que, ao contrário do seu senhor, é lúcido,
frio, racional. Alguém que, à semelhança do seu venerado mestre e
antecessor Wolsey, tem uma história de vida marcada por uma ascensão política e
social pouco comum para um “comum”. Na narrativa de Mantel, Thomas
assume-se como leitor do
manual de conselhos aos príncipes que o Florentino, em desgraça,
escrevera e dedicara a Lourenço de Médicis, o novo senhor de Florença em 1512-1513, para obter o seu favor.
E segue com minúcia e paciência os
conselhos de Maquiavel: depois da queda de Wolsey, instigada por Ana
Bolena, vai assessorando o Rei e
pactuando com a nova rainha;
mas sabe distanciar-se quando percebe, depois das sucessivas perdas de Ana,
que o tão desejado herdeiro homem não viria. Viera Isabel, que seria uma grande rainha, depois de Maria, a filha
de Henrique e Catarina de Aragão, que reinando quatro ou cinco anos, tenta
reconverter a Inglaterra ao catolicismo – Maria,
a Católica, ou, mais partidariamente, Maria a Sanguinária, Bloody Mary.
A queda
O Chanceler já não viu nenhum destes acontecimentos. O desfavor real chegara mais cedo,
depois de ter intervindo na negociação de mais um casamento de Henrique, o quarto, com Anne de
Cleves. Jane Seymour, a
terceira mulher de Henrique, dera à luz, finalmente, um varão, o futuro e malogrado Eduardo VI, mas a
Jane morreria duas semanas depois. Cromwell negoceia novo casamento com Anne de Cleves,
irmã do duque de Jülich-Cleves-Berg,
que o Chanceler inglês queria como aliado. Na base há um retrato
da noiva, pintado por Holbein, que
a favorece e o empenho de Cromwell em exaltar a beleza de Anne. Henrique
sente-se enganado pela imagem quando conhece o original e recusa-se a consumar
o casamento com uma mulher tão feia.
Entretanto, um dos grandes
inimigos do Chanceler, o duque de Norfolk, fora bem-sucedido numa missão a
França, abrindo espaço para que Cromwell fosse acusado de fundamentalismo
religioso e de simpatia pelos radicais bonapartistas.
Cai bruscamente em desgraça.
Assim era o favor de Henrique. Em 1540 Thomas fora feito conde de Essex,
mas logo em Junho desse ano seria preso sob múltiplas acusações, na sua maioria
absurdas, enviado para a Torre de Londres e decapitado, no mês seguinte.
Quando o carrasco lhe perguntou se queria que lhe tapasse os olhos,
Thomas (que, entretanto, fizera um comovente discurso de contrição, apelando
por uma última vez à misericórdia do Príncipe) ter-lhe-á respondido que sim,
“To spare You …”, para o poupar a ele, carrasco, à agonia.
A SEXTA
COLUNA HISTÓRIA CULTURA
COMENTÁRIOS (de26)
Glorioso SLB: Misturas bonapartistas no século XVI. Alguma
coisa ñ bate certo.
José B Dias > Américo Silva: Creio que terá sido vítima de um qualquer
estranho "cruzamento de linhas" ...
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