Uma formação pátria que traz dúvidas sobre a data das suas origens, mas
que não obsta a que, apesar de uma temporária unificação ocasional com o resto
da Península Ibérica, o pequeno rectângulo não tenha prosseguido, firmemente independente,
dando azo a uma história que até soube revelar bastos momentos de beleza e
coragem… História revista e revivida por FLORENTIMO CARDOSO, Advogado e
Presidente da Grã Ordem Afonsina.
Portugal, desde 1128
“Portugal precisa de encerrar a
controvérsia e tudo fazer para instituir uma data que assinale o seu dia de
nascimento como Estado independente, uniformizando o entendimento nacional”.
FLORENTINO CARDOSO
Advogado e Presidente da Grã Ordem Afonsina
OBSERVADOR, 27 fev. 2025, 00:1316
O surgimento de Portugal como
reino independente é um tema bastante discutido na história peninsular e sempre
suscitou interpretações divergentes entre os historiadores. A este propósito,
vamos fazer uma breve revisão das interpretações historiográficas acerca da Batalha
de São Mamede, seguindo de perto a conferência, sob o título «A
Primeira Tarde Portuguesa», proferida pelo ilustre e saudoso Prof. José Mattoso, em Guimarães, na
Sociedade Martins Sarmento, no dia 24 de junho de 1978, por ocasião da inauguração das comemorações
do 850.º aniversário da Batalha de São Mamede.
A Batalha de Ourique
A Crónica Geral de 1344 considerou a Batalha de Ourique como o facto
histórico mais significativo das origens de Portugal, por associação ao momento
em que D. Afonso Henriques tomou o título de rei. Todavia, a crónica de 1419 consagrou,
oficialmente, a lenda da aparição divina a D. Afonso Henriques, na véspera da
batalha, e lhe atribuiu o carácter sobrenatural que se perpetuou durante séculos.
Como disse José
Mattoso, «Não
admira que, na época em que a consciência nacional se torna mais nítida, a
partir da luta pela independência, em 1385, se tenha escolhido este
acontecimento, e não São Mamede, como símbolo da nacionalidade. Com efeito, ele
era muito mais adequado para fazer intervir o sobrenatural, porque punha em
jogo a luta entre a Cristandade e o Islão, e para fazer revestir o rei de uma
missão sagrada».
No século XVII, Frei António Brandão (parte III da Monarquia Lusitana) atendeu
à questão, com cuidado, e aflorou a hipótese de Valdevez, mas concluiu, como
disse José Mattoso, na conferência citada, que: «o verdadeiro berço
da nacionalidade foi em Ourique, onde se cruzaram três factos significativos:
a vitória contra os verdadeiros inimigos da Nação, a
intervenção divina e a aclamação do príncipe como rei.»
A Primeira Tarde Portuguesa
Mantendo-se fiel à tradição,
este erudito cisterciense, com a autoridade que lhe é reconhecida, deu-lhe
força para ela se prolongar quase até aos nossos dias. E como José Mattoso
afirmou: «Só com
Alexandre Herculano é que São Mamede se considera, pela primeira vez, como o
dealbar da Pátria. Ao contrário de Brandão, não interpreta o
acontecimento como a simples substituição do chefe, mas o resultado de uma acção
colectiva, e, por isso mesmo, o facto sem o qual nem Valdevez nem Ourique
teriam sido possíveis».
Curiosamente, nesta
conferência especialmente dedicada às origens de Portugal, o Prof. José Mattoso
não fez qualquer alusão a outros factos históricos eventualmente revestidos
dessa potencialidade, como, por exemplo, a Conferência
de Zamora, de 5 de outubro de 1143, ou a Bula Manifestis Probatum, de 23 de maio de 1179.
Este silêncio do Professor ter-se-á devido, na nossa opinião, ao facto de ele considerar como questão-chave da historiografia
portuguesa, no que toca às origens de Portugal, “averiguar se a nossa
autonomia se deve à decisão mais ou menos arbitrária de uns tantos indivíduos,
ou se é o irresistível desabrochar de uma força resultante da estrutura social
e cultural de um vasto grupo humano, com raízes nas próprias condições
geográficas e num comportamento secular”.
“Batalha de S. Mamede – Primeira Tarde
Portuguesa”, pintura a fresco de Acácio Lino, no Palácio de S. Bento –
Assembleia da República.
Terá sido por isso que, ao
escrever as páginas de «A Primeira
Tarde Portuguesa», se focou na origem da Nação, e não na busca
do dia em que Afonso Henriques assumiu o governo de Portugal, como Rei de pleno
direito, e sem qualquer tipo de subordinação, transformando-o em Estado
soberano. Esta
nossa intuição é confirmada pela afirmação que o Professor fez nessa
conferência, de que, “em São Mamede… fica demonstrada a viabilidade da Nação”; e reforçada, acrescentamos agora, quando
noutra passagem ele se referiu à intervenção, na batalha, de um grupo social
coeso que “demonstrou a sua força contra adversários poderosos” e
“tomou consciência mais clara da sua capacidade de autonomia”.
Ora, esta abordagem das origens
de Portugal não deixa de ser interessante, e será, porventura, o modo de
atingir as raízes sociais, culturais e políticas mais profundas que corporizam
o País que somos hoje. Porém, a Nação
portuguesa desmembrou-se da Galiza, enquanto o reino de Portugal se autonomizou
de Leão! Por isso, procurar o dia do nascimento de
Portugal, enquanto Nação, é como entrar num labirinto; entrar é fácil, mas é
muito difícil encontrar a saída!
Reino, Estado e Nação
De facto, embora se confundam, muitas vezes, na comunicação corrente, os conceitos de Nação e Estado são distintos, e não se identificam, pois a
criação de um reino não é comparável à formação de uma Nação. Contrariamente
ao que acontece com as nações, os Estados, hoje, podem constituir-se de um dia
para o outro, em resultado, ou como consequência, de um acto isolado. E
por maioria de razão, assim era, na Idade Média, uma vez que, como diz José
Mattoso,“a
monarquia era exercida como uma propriedade pessoal; por isso, o rei podia
dividir os seus Estados pelos herdeiros”. Por exemplo, o rei
leonês, Fernando I (1016-1065), avô de D. Teresa (c. 1080-1130), dividiu o seu
reino, à hora da morte, deixando ao primogénito, Sancho II (1036-1072), o reino
de Castela, a Afonso VI (1047-1109), o reino de Leão, e a Garcia II
(1042-1090), o reino da Galiza. Como se pode ver, de um reino nasceram três, num só dia, em 27 de
dezembro de 1065 (data plausível do seu falecimento). Idêntica divisão aconteceu, por
disposição de Afonso VII, que, após a sua morte, em 1157, deixou o reino de
Castela ao primogénito Sancho III, e o reino de Leão ao filho Fernando II,
genro de D. Afonso Henriques.
Portugal deverá ser dos poucos países do
mundo que não comemoram o seu nascimento. Diria até, de modo mais directo, que uma boa parte dos portugueses
não sabe – nem faz muito esforço para saber – em que dia e em que
circunstâncias Portugal surgiu como Estado soberano. Por isso,
impõe-se um trabalho de investigação direccionado para a origem do Estado – e
não da Nação –, com base, por exemplo, nas diferenças e semelhanças entre a
historiografia portuguesa e a espanhola no que toca aos factos históricos que
conduziram à independência de Portugal. Esta dúvida, que tem embaraçado os
agentes políticos modernos quanto à definição de uma data certa e determinada
para a independência de Portugal, assenta no facto de Portugal ser um
Estado-Nação e de esta simbiose dificultar a compreensão e determinação do
momento de nascimento de cada conceito.
Não há dúvida de que as consequências da independência do Condado
Portucalense influenciaram, de forma distinta, os dois povos, portugueses e
espanhóis. Podemos dizer que, no que toca à historiografia espanhola, o seu
quase silêncio sobre a independência de Portugal impede que ela se compreenda
de forma positiva. No entanto, esse silêncio, afectando, também, o processo
político que envolveu o desmembramento do reino de Leão, naquela época
histórica, gera a possibilidade de uma ampla reflexão à volta dessas lacunas.
A independência, quando?
A independência de Portugal é tratada
“de forma bastante diferente, ou, simplesmente, não é tratada”, pelos
autores espanhóis, e não apenas no passado. Autores de relevo, de hoje, e a historiografia espanhola, em geral,
mostram evitar referir nomes da sociedade e da política portuguesa, de então,
aligeiram as circunstâncias, ou simplesmente as ignoram, sob mínimos argumentos
e pormenores. Como
refere Nelson Lombardi, destaca-se, na historiografia espanhola,“a falta de
atenção, realmente consistente, sobre os acontecimentos que envolveram o
destino do Condado Portucalense”, que não vai além de mencionar
o casamento D. Teresa com D. Henrique
de Borgonha, e, “às
vezes, alguns feitos de Afonso Henriques.” Tal silêncio “incomoda a historiografia portuguesa”, mas
revela, do lado espanhol, incómodos ainda maiores, talvez por envolver “desmembramento
do território” e afectar o “orgulho nacional”, sobretudo “no que tange ao
período imperial”, dado que Portugal se converteu “num empecilho para a
consolidação e afirmação do poder efectivo do imperador Afonso VII”.
Parece-nos, pois, que seria
interessante trazer para a discussão a “voz do silêncio” dos historiadores
espanhóis e procurar esclarecer a maneira como eles, por comparação com os
portugueses, abordam a constituição do reino de Portugal.
Este deveria ser um dos objectivos a perseguir, no âmbito das comemorações dos
900 anos da Batalha de São Mamede.
Enquanto a humanidade estiver
sujeita à ditadura do tempo, as datas do nascimento e da morte de qualquer
sujeito farão sempre parte da sua identidade. Por isso, também Portugal precisa de procurar encerrar a controvérsia
existente e tudo fazer para instituir uma data que assinale o seu dia de
nascimento como Estado independente, uniformizando, assim, o entendimento
nacional sobre esta matéria.
[Os artigos da série Portugal 900 Anos são uma colaboração semanal da
Sociedade Histórica da Independência de Portugal. As opiniões dos autores
representam as suas próprias posições.]
PORTUGAL 900 ANOS HISTÓRIA
CULTURA´
COMENTÁRIOS (de 16)
José Martins de Carvalho: Parece muito bem distinguir Estado e Nação, e
concentrar o esforço de identificação do primeiro dia de Portugal no início do
Estado. Porque uma Nação não nasce, forja-se devagarinho. A conferência de Zamora é o acto em que se formaliza a
transmissão de poder do Reino de Leão para D. Afonso Henriques, que já se
intitulava rei desde Ourique.
É certo que não existe um documento que prove aquela conferência, mas o
início concomitante das remessas de ouro ao Papa prestando vassalagem é uma
prova concludente. Assim, parece
evidente que o Estado português nasce em 5 de Outubro de 1143, e que o feriado
do 5 de Outubro deve passar a celebrar essa nobre data.
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