sábado, 15 de fevereiro de 2025

Humor real

 

Que poderia servir de lição contra a nossa não direi proverbial, pois que nos falta categoria para tanto – mas habitual saloiice pedantesca - ou antes, finória. Extraordinário ALBERTO GONÇALVES, com o seu humor chocarreiro, fruto do muito viajar pelos espaços vários do saber. E do ser.

Uma junta em cada rotunda

As freguesias são um custo sem retorno, bandeira não dos lugarejos que fingem “representar” mas de uma nação infantilizada, avessa à autonomia, receosa do crescimento e mendiga do progresso alheio.

ALBERTO GONÇALVES Colunista do Observador

OBSERVADOR, 15 fev. 2025, 00:202

A Troika, de que sinto saudades, queria acabar com metade das autarquias e dois terços das juntas de freguesia, leia-se cerca de 150 câmaras e quase 3 mil das 4259 (!) freguesias. Para evitar motins e cerimónias de autoimolação, o governo de então acedeu a um compromisso: acabar com zero autarquias e com um quarto das juntas. Doze anos depois, o PSD confirmou que lá fora já ninguém está a olhar e, em colaboração com o PS e com o aval dos partidos excepto da IL (o Chega absteve-se), pretende “desagregar” centenas de freguesias e regressar quase à quantidade anterior. O prof. Marcelo vetou a “desagregação”, embora apenas por questões de prazo. A coisa voltará ao parlamento e, agora ou em breve, seguirá em frente. Entre nós, o atraso de vida raramente pára.

É compreensível que a maioria dos partidos seja favorável à multiplicação das juntas, que multiplica os empregos disponíveis e a oportunidade de fazer demagogia com a “vontade das populações”. É mais difícil de compreender a “vontade das populações”, as quais genuinamente parecem gostar de uma extensão do poder estatal em cada esquina ou, vá lá, praceta. Há décadas que, em épocas diferentes, integro as “populações” de diversos lugares e, salvo pela ocasião em que aos 26 anos decidi levantar o cartão de eleitor, nunca penetrei uma junta de freguesia ou, por regra, sequer conheci a respectiva localização. Supondo que as juntas deixaram de armazenar os cartões de eleitor, aliás um item caduco, não consigo imaginar a utilidade de semelhante pechisbeque administrativo. Porém, consigo procurar.

Um belo dia (anteontem), resolvi percorrer de norte a sul este formoso país, à cata de informações sobre as actividades das juntas de freguesia. Para evitar maçadas, construções horrendas em geral e gastos de combustível, realizei a empreitada em casa e através do computador. O método de selecção foi rigoroso: a partir de uma lista com a totalidade das freguesias nacionais, escolhi umas dúzias de acordo com a excentricidade do nome e a diversidade geográfica. Destas, eliminei aquelas cujas juntas não têm “site” e analisei com minúcia os “sites” das restantes. Ficam uns exemplos, que juro aleatórios.

Espadanedo, Cinfães

O “site” está impecável, arrumado e tão limpinho que, para não se sujar, não entram ali novidades desde 2020, ano de publicação da última (e única) mensagem natalícia do presidente da junta, que misteriosamente diz respeito ao Natal de 2018. A penúltima notícia, que versa a “hasta pública de alienação de quarenta e sete pinheiros e nove eucaliptos”, é de 2019. As secções “Obras realizadas”, “Serviços”, “Turismo”, etc. estão em branco imaculado.

Santana do Mato, Coruche

O “site” fervilha de notícias frescas, incluindo a do baile de carnaval com Nicole Viviana (ao acordeão), o almoço do Dia da Mulher, os resultados da Liga Inatel e a abertura de um concurso para “assistente operacional” (salário de 761 euros). A Mensagem do Presidente tem poucos erros de português. O texto de apresentação da freguesia é notável pela indecisão: “Com raízes históricas que remontam ao [século/época histórica significativa], o nosso município é um exemplo vivo de tradição e inovação. Desde os tempos em que [referência histórica ou facto marcante], temos crescido como uma comunidade vibrante e focada no futuro.”Pelo contrário, o seu passado ainda está em aberto.

União de Freguesias da Terrugem e Vila Boim, Elvas

Merece destaque o anúncio do 2º Prémio de Poesia Popular (prémio de 500 euros), embora o prazo para a entrega dos originais tenha sido em Maio de 2024. No mais, o “site” é forte na publicação de actas, avisos e formulários, invariavelmente dedicados à contratação de “assistentes operacionais” e cantoneiros. Também anuncia a prestação de serviços: passam certidões e certidões, ambas de carácter não especificado. Há e-mails, da Telepac, para contactar o presidente, o secretário ou a tesoureira.

Cabaços, Moimenta da Beira

Aqui a frugalidade impera: há somente os nomes dos titulares da junta, as datas das romarias e um “link” para um texto publicado no “Jornal Beirão” e que começa, eu fique ceguinho, assim: “Num altiplano de onde se lobrigam encantos panoramas, está edificada a povoação de Cabaços.” Os parágrafos subsequentes mantêm-se no mesmo altiplano.

Torre de Coelheiros, Évora

Não há notícias. Não há eventos. Há um concurso para contratação de – adivinhem – um “assistente operacional”. E um programa de “incentivo à natalidade”, que data de 2022 e oferecia 500 euros por filho.

União das freguesias de Subportela, Deocriste e Portela Susã, Viana do Castelo

Fora umas notícias de 2022 e de temática nacional, as mais recentes manifestações de vida no “site” de Subportela, Deocriste e Portela Susã aconteceram no advento da Covid, com alertas acerca do fecho dos cemitérios e do balcão de atendimento. A “Mensagem do Presidente” encontra-se por preencher. A “Agenda de Eventos” não publicita qualquer evento. Convinha averiguar se a pandemia não dizimou os locais.

E é isto. É possível, admito, que a melancólica presença das juntas de freguesia na internet não traduza a efervescência das ditas no mundo real. É possível que haja centenas ou milhares de juntas absolutamente indispensáveis às sociedades que as elegem. É possível que a minha amostra tenha sofrido enviesamentos. É possível, mas não é provável. O provável é que, além de ramificarem a influência partidária e distribuírem uns salários pífios, as juntas não sirvam para nada de materialmente relevante. Simbolicamente, e a expensas da “proximidade” e do contribuinte, talvez reforcem no povo a ilusão de amparo paternal, na verdade de dependência, que define a nossa relação com o Estado. E, para não sairmos dos vícios acriançados, talvez alimentem o orgulho da aldeola que, a fim de ter uma “voz” que não é ouvida, quer ser freguesia, sentimento familiar ao da vila que exige ser cidade, e da cidade que não sabe o que é.

Contas feitas, que os políticos não fazem, e à semelhança de todos os organismos públicos que existem só para justificar a própria existência, as freguesias são um custo sem retorno, a bandeira não dos lugarejos que fingem “representar” e sim de uma nação permanentemente infantilizada, avessa à autonomia, receosa do crescimento e mendiga do progresso alheio. A única junta de que precisamos é psiquiátrica.

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COMENTÁRIOS (de 13)

Meio Vazio: Um retrato de Portugal no seu melhor.

Mário Silva: Vou formar uma lista, a cabeça de lista vai ser a Marquinhas, que é neta da Balbina e foi abandonada pelos pais. A Marquinhas é a última pessoa da freguesia com menos de 60 anos, sabe medir a tensão e fazer aqueles testes rápidos com gotas de sangue. O nosso programa vai ser o seguinte: A Marquinhas não vai passar atestados de residência, mas em contrapartida vai medir a tensão e fazer as caixas dos comprimidos a todos os fregueses. Vamos chamar aos campeonatos de sueca, dominó e chinquilho - Assembleia de Freguesia e as senhas de presença revertem para o vencedores A vitória está garantida, conseguimos arranjar um emprego à última jovem que nos resta e um mínimo de atenção a todos os idosos que somos todos os outros. A vitória está no papo. 

João Jesus: Que aldrabice dizer que íamos voltar ao mesmo número de juntas. Tínhamos 4500 antes da Troika e agora esta lei ia criar 167 para 3300. Antes de escrever estes textos convém estudar os factos concretos e não inventar. Posto isto, também sou contra esta criação de novas juntas nesta altura mas esses exemplos dos sites são um disparate, de alguém, que no mínimo, não conhece o País real nem o papel das juntas em muitas comunidades.

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