Já o dizia CÍCERO, em crítica
aos costumes do seu tempo. PATRÍCIA FERNANDES investe bem nos deste seu e ainda
meu, mas a tristeza de hoje tem a ver mais com o que se passa nesse mundo de
ambição e tropelia sem freio, embora a fraternidade do “velho continente” por
vezes pareça obstar a tanta vilania, forjando esperança ainda. Valha-nos Deus!
E ao Papa Francisco igualmente.
Felizmente que as “Patrícias” e “Patrícios” de sempre, que admiramos e
respeitamos, provam a independência crítica defensora dos velhos valores estratificados
nas obras literárias de outros e destes tempos e transmitidos num mundo afinal
sóbrio e independente, que os vai preservando, e fazem-nos esperar ainda pela
continuidade do “BEM” sobre o “MAL”, segundo as suas eternas definições
estratificadas pela mens sana do ser racional que as criou e defende, apesar
desses embates ao longo dos tempos, com ampla expressão dos embates perniciosos
de hoje.
A grande ruptura
A grande ruptura conduziu a um mundo mais solitário e triste,
marcado pelo desaparecimento de instituições sociais que dependiam de capital
social e de entidades antigas, como primos e tios.
PATRÍCIA FERNANDES
Professora na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho
OBSERVADOR,24 fev. 2025, 00:2021
Uma das regras de pensamento
dos nossos dias parece ser a de que não devemos dizer “no nosso tempo” – como se a expressão convocasse, de
imediato, o desmérito do argumento. Afinal, vivemos objectivamente tempos melhores: para quê dizer, então, “no nosso tempo”? Ainda
assim, vou desafiar a regra com a convicção de que a possibilidade de
comparação com “o nosso tempo” é uma das (poucas) vantagens da passagem do
tempo. Ou, como se dizia numa telenovela
brasileira há muitos anos, Deus pode
ter-nos dado rugas, mas também nos deu experiência. E é essa
experiência que nos permite interpretar o desaparecimento de alguns
comportamentos do passado como o sintoma dos males do presente.
É o que acontece quando nos
recordamos da tradição praticamente abandonada de pedir boleia. Acreditarão os mais novos que isto
acontecia mesmo? Homens
de todas as idades (a questão das mulheres é mais complicada) ficavam na
estrada com o braço estendido e o polegar em riste, por vezes segurando
cartazes que indicavam o local para onde queriam ir, e os carros paravam e
davam boleia. Muitas vezes, as
pessoas eram conhecidas, eram
da terra, e isso facilitava a confiança.
Outras vezes, não. Mas como os transportes públicos eram uma raridade e o
carro pessoal era ainda mais raro, muitos dependiam desta arte para se
movimentarem. (Quantas vezes apanhou boleia o meu pai quando vinha de
Coimbra para a terra?)
Para usar a expressão que
Francis Fukuyama apresenta no livro A Grande Ruptura, esta instituição era sinónimo
de “capital social”: simbolizava a existência de confiança
social como “subproduto de normas partilhadas de comportamento ético”. A grande
ruptura traduziu-se na perda deste capital social e seria resultado da passagem para uma era pós-industrial ou da
informação, cujo impacto é comparável
tanto com a passagem das sociedades de colectores-recolectores para as
sociedades agrícolas, como com a passagem das sociedades agrícolas para as
sociedades industriais.
Fukuyama localiza esta transformação
entre os anos de 1960 e o início da década de 1990,
recorrendo a dados que revelam mudanças semelhantes numa vasta gama de países. A
ruptura em relação aos valores sociais prevalecentes até então parecia repetir
a transformação provocada pela revolução
industrial e que Ferdinand Tönnies descreveu como a passagem da “Gemeinschaft”(“comunidade”, em que a densa rede de relações pessoais se baseava largamente
no parentesco e no contacto directo) para a Gesellschaft” (“sociedade”,
em que as redes sociais eram
largamente impessoais e formalizadas). Mas a era pós-industrial,
caracterizada por um forte pendor individualista que faz esquecer as
precondições culturais, estaria a agravar aquela transformação.
E que mudanças são essas? De acordo com Fukuyama, a grande
ruptura é marcada por maior criminalidade e desordem social, declínio da
instituição familiar e perda de confiança social – e tudo isto seria resultado de um
enfraquecimento dos laços sociais e dos valores comuns que são o cimento das
sociedades ocidentais:
“Uma sociedade dedicada à constante
derrogação de normas e regras em nome de uma cada vez maior liberdade de
escolha individual acabará por tornar-se cada vez mais desorganizada,
atomizada, isolada, e incapaz de concretizar quaisquer objectivos ou tarefas
globais.”
Deixemos
a questão da criminalidade, desordem social ou insegurança para outro texto; por
agora, importa considerar as outras duas mudanças e o modo como elas reflectem
o forte pendor individualista dos nossos tempos.
No que diz respeito à
diminuição da confiança social, ela é dificilmente dissociável do facto de a
população se concentrar em meios urbanos: as grandes cidades têm maior densidade
populacional, mas as vidas são vividas de forma mais atomizada, e como
desconhecemos até aqueles que vivem ao nosso lado, torna-se mais difícil
estabelecer relações de confiança. O olhar é uma boa métrica: nos meios rurais
e nas cidades pequenas, as pessoas olham umas para as outras quando se cruzam
na rua; não ver e não se ser visto é a principal característica das grandes
cidades. E embora esta mudança tenha começado com a revolução industrial, a era
pós-industrial agravou-a, uma vez que a terciarização da economia e o
trabalho on-line diluem a identidade laboral e promovem
formas de trabalho mais solitárias, apesar de parecerem mais colaborativas.
A era pós-industrial produziu
igualmente uma grande transformação na esfera familiar ao permitir uma fácil
absorção da mulher no mercado de trabalho. Por um lado, o grande
desenvolvimento tecnológico que marca este período libertou a mulher de muitas
tarefas domésticas e até da função reprodutiva;
por outro, o crescimento do setor dos serviços aumentou a oferta laboral que
não depende de força física e solicita até traços mais presentes no sexo
feminino, como capacidade de concordância ou simpatia (as mulheres são mais
“agreeable”), maior facilidade de comunicação, gosto por cuidar e ensinar –
considerando que, de acordo com uma distribuição normal, as mulheres tendem a
preferir trabalhar com pessoas, enquanto os homens tendem a preferir trabalhar
com coisas.
Será isto um sinal de
progresso? Tendemos a romantizar a posição da mulher no mercado de trabalho,
imaginando a sua libertação para empregos criativos e carreiras empresariais
relevantes. Na verdade, a grande maioria das mulheres tem empregos rotineiros,
sem qualquer domínio sobre o seu horário de trabalho ou autonomia na execução
das tarefas. Muitas feministas acusam, por isso, aquela visão romântica de ser
moldada pela visão das classes altas: na vida real, a maioria das mulheres não
foi libertada… E, nesse sentido, talvez Wendell Berry tenha
razão quando diz:
“Por que razão uma mulher se recusaria, corretamente, a fazer o voto
conjugal de obediência (com base no facto de a subserviência a um mero ser
humano estar abaixo da dignidade humana), mas consideraria como “libertador” um
emprego que a coloca sob a autoridade de um chefe (homem ou mulher) cuja
autoridade exige e espera obediência?”
O ponto de Berry não é a defesa
da submissão marital, mas fazer-nos repensar a assunção de que “a única ajuda
que vale a pena dar não é dada, mas vendida. Amor, amizade, vizinhança,
compaixão, dever – o que é isso?”
Como sempre acontece,
encontramos aspetos positivos no percurso que foi percorrido. Mas não há coisas
a repensar e a corrigir? Como, por exemplo, a de saber se esta interpretação da
mulher como fator produtivo conduziu, necessariamente, a uma vida melhor. O
problema tem sido largamente discutido no mundo ocidental em resultado de dois
fatores interdependentes: a quebra da natalidade e o crescimento do número de
homens e mulheres que vivem sozinhos por não conseguirem encontrar parceiro.
Mas tal não é surpreendente se considerarmos que as regras do jogo parecem
jogar contra as mulheres, que acabam por adiar algo que tem prazo em
troca de algo que pode ser feito mais tarde. É, como Mary Harrington explica
nesta conversa com Jordan Peterson, a
diferença entre um feminismo do cuidado (“feminism of care”) e um feminismo da
autonomia (“feminism of freedom”).
A grande rutura conduziu a um
mundo mais solitário e triste, marcado pelo desaparecimento de instituições
sociais que dependiam de capital social e de entidades antigas, como primos e
tios. O desaparecimento destas figuras tem consequências graves, pois a
existência de “primos” garantia, para as crianças, a possibilidade de
brincadeira não supervisionada (que é fundamental para o desenvolvimento de
competências de autonomia e gestão de conflitos) e a existência de “tios”
traduzia-se numa ajuda fundamental para quem tinha filhos.
Muitos autores destacam o papel
negativo da intervenção estatal e o facto de o estado social ter ajudado a
destruir laços familiares e a arte da associação, como diria Tocqueville. E não
é, por tudo isto, surpreendente que cada vez mais autoras (e autores) escrevam
sobre o facto de a revolução cultural, sexual e tecnológica se ter traduzido,
em última instância e pesados todos os fatores, num fracasso para as nossas
sociedades e, em particular, para as mulheres. Um fracasso simbolizado pelas
notícias recentes sobre o crescimento do número de creches com horário alargado,
num processo de terceirização de maternidade e paternidade difícil de
assimilar. Se isto é correr bem, como seria se corresse mal?
SOCIEDADE
FILOSOFIA
POLÍTICA POLÍTICA
COMENTÁRIOS (de 21)
Rui Lima: Li uma vez de que nada
serve ao homem conquistar a Lua se acaba por perder a Terra, temos tudo mas
perdemos o que nos dava a felicidade , voltei a pensar na minha infância não
tinha nada do que temos hoje nem um automóvel havia na aldeia , mas tínhamos muitos
primos muitos tios acredito que nenhum bem material pode substituir o
equilíbrio que isso dava, éramos muito felizes sem o saber .
Manuel
Almeida Gonçalves: A PF
sempre na linha da frente da análise de questões sociais e políticas, com uma
acuidade invulgar, muito bem.
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