terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

O tempora…

 

Já o dizia CÍCERO, em crítica aos costumes do seu tempo. PATRÍCIA FERNANDES investe bem nos deste seu e ainda meu, mas a tristeza de hoje tem a ver mais com o que se passa nesse mundo de ambição e tropelia sem freio, embora a fraternidade do “velho continente” por vezes pareça obstar a tanta vilania, forjando esperança ainda. Valha-nos Deus! E ao Papa Francisco igualmente.

Felizmente que as “Patrícias” e “Patrícios” de sempre, que admiramos e respeitamos, provam a independência crítica defensora dos velhos valores estratificados nas obras literárias de outros e destes tempos e transmitidos num mundo afinal sóbrio e independente, que os vai preservando, e  fazem-nos esperar ainda pela continuidade do “BEM” sobre o “MAL”, segundo as suas eternas definições estratificadas pela mens sana do ser racional que as criou e defende, apesar desses embates ao longo dos tempos, com ampla expressão dos embates perniciosos de hoje.

A grande ruptura

A grande ruptura conduziu a um mundo mais solitário e triste, marcado pelo desaparecimento de instituições sociais que dependiam de capital social e de entidades antigas, como primos e tios.

PATRÍCIA FERNANDES Professora na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho

OBSERVADOR,24 fev. 2025, 00:2021

Uma das regras de pensamento dos nossos dias parece ser a de que não devemos dizer “no nosso tempo” – como se a expressão convocasse, de imediato, o desmérito do argumento. Afinal, vivemos objectivamente tempos melhores: para quê dizer, então, “no nosso tempo”? Ainda assim, vou desafiar a regra com a convicção de que a possibilidade de comparação com “o nosso tempo” é uma das (poucas) vantagens da passagem do tempo. Ou, como se dizia numa telenovela brasileira há muitos anos, Deus pode ter-nos dado rugas, mas também nos deu experiência. E é essa experiência que nos permite interpretar o desaparecimento de alguns comportamentos do passado como o sintoma dos males do presente.

É o que acontece quando nos recordamos da tradição praticamente abandonada de pedir boleia. Acreditarão os mais novos que isto acontecia mesmo? Homens de todas as idades (a questão das mulheres é mais complicada) ficavam na estrada com o braço estendido e o polegar em riste, por vezes segurando cartazes que indicavam o local para onde queriam ir, e os carros paravam e davam boleia. Muitas vezes, as pessoas eram conhecidas, eram da terra, e isso facilitava a confiança. Outras vezes, não. Mas como os transportes públicos eram uma raridade e o carro pessoal era ainda mais raro, muitos dependiam desta arte para se movimentarem. (Quantas vezes apanhou boleia o meu pai quando vinha de Coimbra para a terra?)

Para usar a expressão que Francis Fukuyama apresenta no livro A Grande Ruptura, esta instituição era sinónimo de “capital social”: simbolizava a existência de confiança social como “subproduto de normas partilhadas de comportamento ético”. A grande ruptura traduziu-se na perda deste capital social e seria resultado da passagem para uma era pós-industrial ou da informação, cujo impacto é comparável tanto com a passagem das sociedades de colectores-recolectores para as sociedades agrícolas, como com a passagem das sociedades agrícolas para as sociedades industriais.

Fukuyama localiza esta transformação entre os anos de 1960 e o início da década de 1990, recorrendo a dados que revelam mudanças semelhantes numa vasta gama de países. A ruptura em relação aos valores sociais prevalecentes até então parecia repetir a transformação provocada pela revolução industrial e que Ferdinand Tönnies descreveu como a passagem da “Gemeinschaft”(“comunidade”, em que a densa rede de relações pessoais se baseava largamente no parentesco e no contacto directo) para a Gesellschaft” (“sociedade”, em que as redes sociais eram largamente impessoais e formalizadas). Mas a era pós-industrial, caracterizada por um forte pendor individualista que faz esquecer as precondições culturais, estaria a agravar aquela transformação.

E que mudanças são essas? De acordo com Fukuyama, a grande ruptura é marcada por maior criminalidade e desordem social, declínio da instituição familiar e perda de confiança social e tudo isto seria resultado de um enfraquecimento dos laços sociais e dos valores comuns que são o cimento das sociedades ocidentais:

“Uma sociedade dedicada à constante derrogação de normas e regras em nome de uma cada vez maior liberdade de escolha individual acabará por tornar-se cada vez mais desorganizada, atomizada, isolada, e incapaz de concretizar quaisquer objectivos ou tarefas globais.”

Deixemos a questão da criminalidade, desordem social ou insegurança para outro texto; por agora, importa considerar as outras duas mudanças e o modo como elas reflectem o forte pendor individualista dos nossos tempos.

No que diz respeito à diminuição da confiança social, ela é dificilmente dissociável do facto de a população se concentrar em meios urbanos: as grandes cidades têm maior densidade populacional, mas as vidas são vividas de forma mais atomizada, e como desconhecemos até aqueles que vivem ao nosso lado, torna-se mais difícil estabelecer relações de confiança. O olhar é uma boa métrica: nos meios rurais e nas cidades pequenas, as pessoas olham umas para as outras quando se cruzam na rua; não ver e não se ser visto é a principal característica das grandes cidades. E embora esta mudança tenha começado com a revolução industrial, a era pós-industrial agravou-a, uma vez que a terciarização da economia e o trabalho on-line diluem a identidade laboral e promovem formas de trabalho mais solitárias, apesar de parecerem mais colaborativas.

A era pós-industrial produziu igualmente uma grande transformação na esfera familiar ao permitir uma fácil absorção da mulher no mercado de trabalho. Por um lado, o grande desenvolvimento tecnológico que marca este período libertou a mulher de muitas tarefas domésticas e até da função reprodutiva; por outro, o crescimento do setor dos serviços aumentou a oferta laboral que não depende de força física e solicita até traços mais presentes no sexo feminino, como capacidade de concordância ou simpatia (as mulheres são mais “agreeable”), maior facilidade de comunicação, gosto por cuidar e ensinar – considerando que, de acordo com uma distribuição normal, as mulheres tendem a preferir trabalhar com pessoas, enquanto os homens tendem a preferir trabalhar com coisas.

Será isto um sinal de progresso? Tendemos a romantizar a posição da mulher no mercado de trabalho, imaginando a sua libertação para empregos criativos e carreiras empresariais relevantes. Na verdade, a grande maioria das mulheres tem empregos rotineiros, sem qualquer domínio sobre o seu horário de trabalho ou autonomia na execução das tarefas. Muitas feministas acusam, por isso, aquela visão romântica de ser moldada pela visão das classes altas: na vida real, a maioria das mulheres não foi libertada… E, nesse sentido, talvez Wendell Berry tenha razão quando diz:

“Por que razão uma mulher se recusaria, corretamente, a fazer o voto conjugal de obediência (com base no facto de a subserviência a um mero ser humano estar abaixo da dignidade humana), mas consideraria como “libertador” um emprego que a coloca sob a autoridade de um chefe (homem ou mulher) cuja autoridade exige e espera obediência?”

O ponto de Berry não é a defesa da submissão marital, mas fazer-nos repensar a assunção de que “a única ajuda que vale a pena dar não é dada, mas vendida. Amor, amizade, vizinhança, compaixão, dever – o que é isso?”

Como sempre acontece, encontramos aspetos positivos no percurso que foi percorrido. Mas não há coisas a repensar e a corrigir? Como, por exemplo, a de saber se esta interpretação da mulher como fator produtivo conduziu, necessariamente, a uma vida melhor. O problema tem sido largamente discutido no mundo ocidental em resultado de dois fatores interdependentes: a quebra da natalidade e o crescimento do número de homens e mulheres que vivem sozinhos por não conseguirem encontrar parceiro. Mas tal não é surpreendente se considerarmos que as regras do jogo parecem jogar contra as mulheres, que acabam por adiar algo que tem prazo em troca de algo que pode ser feito mais tarde. É, como Mary Harrington explica nesta conversa com Jordan Peterson, a diferença entre um feminismo do cuidado (“feminism of care”) e um feminismo da autonomia (“feminism of freedom”).

A grande rutura conduziu a um mundo mais solitário e triste, marcado pelo desaparecimento de instituições sociais que dependiam de capital social e de entidades antigas, como primos e tios. O desaparecimento destas figuras tem consequências graves, pois a existência de “primos” garantia, para as crianças, a possibilidade de brincadeira não supervisionada (que é fundamental para o desenvolvimento de competências de autonomia e gestão de conflitos) e a existência de “tios” traduzia-se numa ajuda fundamental para quem tinha filhos.

Muitos autores destacam o papel negativo da intervenção estatal e o facto de o estado social ter ajudado a destruir laços familiares e a arte da associação, como diria Tocqueville. E não é, por tudo isto, surpreendente que cada vez mais autoras (e autores) escrevam sobre o facto de a revolução cultural, sexual e tecnológica se ter traduzido, em última instância e pesados todos os fatores, num fracasso para as nossas sociedades e, em particular, para as mulheres. Um fracasso simbolizado pelas notícias recentes sobre o crescimento do número de creches com horário alargado, num processo de terceirização de maternidade e paternidade difícil de assimilar. Se isto é correr bem, como seria se corresse mal?

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COMENTÁRIOS (de 21)

Rui Lima: Li uma vez de que nada serve ao homem conquistar a Lua se acaba por perder a Terra, temos tudo mas perdemos o que nos dava a felicidade , voltei a pensar na minha infância não tinha nada do que temos hoje nem um automóvel havia na aldeia , mas tínhamos muitos primos muitos tios acredito que nenhum bem material pode substituir o equilíbrio que isso dava, éramos muito felizes sem o saber .

Manuel Almeida Gonçalves: A PF sempre na linha da frente da análise de questões sociais e políticas, com uma acuidade invulgar, muito bem.

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