quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Causas remotas sempre constantes


Mandou-me um dos meus filhos o texto de Daniel Sampaio, de 25/1/2009, sobre esquizofrenia, que apanhou na Internet, infelizmente incompleto, mas que mostra quanto vivemos numa sociedade de tal modo incoerente e anómala, que até utiliza o termo em jeito de metáfora como característica da comunicação social, traduzindo aberração nos comportamentos humanos de menor seriedade de actuação: https://www.publico.pt/2009/01/25/jornal/os-direitos-dos-esquizofrenicos-292909. Daniel Sampaio indigna-se com a impropriedade da designação reveladora de ignorância e desrespeito relativamente a uma doença mental grave e exigindo um tratamento a maioria das vezes sem resultado positivo, ou tendo-o apenas parcialmente, e merecendo uma maior atenção por parte do Estado, em termos de acompanhamento médico e económico, visto que a doença se torna uma sobrecarga para as famílias.
Uma tristeza que isto aconteça e que tem a ver também com a insegurança em que sempre se viveu, mas que a comunicação social exibe hoje em dia em instantânea projecção, que dilata os medos e as fobias de quem já é pouco seguro de si próprio.
E, para exemplificar com um desses textos em que se compraz, em termos de explicitação e aviso, a comunicação social, a notícia saída ontem no EDITORIAL do PÚBLICO, escrito por Manuel de Carvalho e que assim ameaça, para um possível conflito, causador de medo e insegurança, provocando histeria: «O choque entre a Rússia e a Ucrânia às portas do mar de Azov veio outra vez lembrar que no Leste há uma ferida aberta que o tempo está a agravar.»
I - Os direitos dos esquizofrénicos
DANIEL SAMPAIO , 25 de Janeiro de 2009
Quando se fala em esquizofrenia na comunicação social usa-se o termo como sinónimo de dupla personalidade, o que não deixa de surpreender. Os jornais referem a esse propósito posições contraditórias ou dissimuladas de alguém, que estaria a esconder a sua verdadeira face; ou acentuam o carácter escondido de algum comportamento, que escapa a uma observação menos atenta. Fala-se até por vezes em "esquizofrenia política" de um partido, quando os seus adversários pretendem desvalorizar alguma correcção de percurso, sentida pelos críticos como pouco séria. Este uso do termo "esquizofrenia", para além de pouco preciso, enquadra-se na habitual falta de respeito para com os doentes atingidos por essa afecção. De facto, poucos conhecem o significado correcto da palavra: trata-se de uma doença mental grave, que na maior parte dos casos segue um curso crónico e que pode provocar sérias alterações do pensamento e da percepção. A clínica da esquizofrenia pode ter várias facetas, com destaque para as ideias delirantes e as alucinações, surgindo no decurso da evolução perturbações do comportamento e alteração da personalidade, com ruptura psíquica em relação ao mundo exterior e marcada desadaptação social. Na realidade, a maioria dos doentes tem dificuldade em manter relacionamentos afectivos estáveis, tem problemas com a expressão emocional e perda das competências sociais; e muitos deles manifestam isolamento social e conflitos interpessoais na família.
Na origem da esquizofrenia podem concorrer factores genéticos, infecções perinatais ou na primeira infância, podendo as drogas precipitar a psicose num indivíduo vulnerável sob ponto de vista genético. Como a prevalência da doença é de 0,5 a 1 por cento da população, estima-se que cerca de 50 mil portugueses sofram de esquizofrenia, dos quais apenas 25 por cento estarão a desempenhar funções profissionais, muitas vezes apenas de carácter ocupacional: só esta minoria de doentes terá um emprego, aliás pouco remunerado, pois a maior parte dos esquizofrénicos não trabalha ou vive de pensões.
É notável, no entanto, o progresso conseguido no tratamento da esquizofrenia. Novos fármacos anti-psicóticos permitem um muito melhor controlo dos sintomas e novas estratégias de ressocialização conseguem uma melhor adaptação social, mesmo em casos que pareciam à partida de mau prognóstico. O problema é que, em Portugal, o acesso aos cuidados psiquiátricos não é fácil, deixando muitos doentes sem tratamento: por isso, é crucial aumentar a consciência da comunidade sobre este problema, começando justamente por não utilizar o termo de maneira desajustada.
Os doentes esquizofrénicos e as suas famílias merecem melhor acesso ao tratamento, serviços de psiquiatria com melhores condições e, sobretudo, possibilidade de usufruir de todas as modernas técnicas terapêuticas, o que deve incluir apoio psicoeducacional para os familiares. A investigação tem demonstrado que uma correcta intervenção junto das famílias, com sessões estruturadas sobre a natureza da afecção, esclarecimento sobre os sintomas e reforço sobre a necessidade de adesão à terapêutica são da maior importância, sobretudo se acompanhadas de recomendações aos familiares para evitarem os conflitos e as críticas aos doentes.
O interesse que os meios de comunicação social portugueses costumam dedicar a temas de saúde mental, com foco em doenças mais raras com a
anorexia nervosa (tão do agrado dos media), deveria ser deslocado para a atenção ao problema da esquizofrenia. Sabe-se que esta doença provoca acentuada sobrecarga familiar, só possível de minorar com intervenções de apoio à família: é tempo de os jornais contribuírem para a luta contra o estigma de que estes doentes sofrem, ao serem considerados loucos e perigosos, quando merecem ser apoiados nos seus problemas e tratados nas melhores condições que for possível.
Se usarmos o termo "esquizofrenia" com mais rigor, estaremos desde logo a iniciar o processo de luta pelos direitos desses doentes, o que será um bom começo. a  .(texto incompleto)
II – EDITORIAL                A ameaça à Europa que vem do Leste
O choque entre a Rússia e a Ucrânia às portas do mar de Azov veio outra vez lembrar que no Leste há uma ferida aberta que o tempo está a agravar.
                      PÚBLICO, 27 de Novembro de 2018
Não bastava a emergência do populismo, a crise dos refugiados, a tragédia do Brexit ou a quebra dos elos transatlânticos que estiveram na base da segurança da Europa nas últimas sete décadas: o choque entre a Rússia e a Ucrânia às portas do mar de Azov veio outra vez lembrar que no Leste há uma ferida aberta que o tempo está a agravar.
A Rússia ocupou ilegalmente a Crimeia e não aconteceu nada; os dois países mantêm uma guerra de baixa intensidade que, segundo alguns observadores, já causou mais de dez mil mortes, e não aconteceu nada; e a Rússia permite-se ao direito de abrir fogo e de aprisionar embarcações ucranianas que, de acordo com a lei internacional e as convenções celebradas pelos dois países, circulavam em águas livres sem que se vislumbre o que possa vir a acontecer.
O que se passou na Crimeia, se repete na região do Donbass ou agora no estreito de Kerch não pode continuar a ser visto como a repetição de actos longínquos ou inconsequentes. A Rússia tem inscrito na sua genética nacional claros instintos imperialistas e não deixará de aplicar o seu poder a todos os vizinhos que não sigam a política de deferência da Bielorrússia.
Mas será maniqueísmo acreditar que Moscovo veste a ancestral pele do urso predador e que não há responsabilidades na Ucrânia, na Europa ou na NATO pelo que se está a passar. Querer levar as fronteiras atlânticas até às portas da Rússia foi um erro estratégico que fez despertar o orgulho ferido do gigante e estimulou, com os custos que sabemos, a agressividade do regime de Putin.
O problema maior que enfrentamos é a total ausência de respostas para o conflito que continua a ferver e a agravar-se em lume brando. Não passa pela cabeça de ninguém recorrer ao poder militar para suster o apetite da Rússia pelo leste da Ucrânia. A ONU está paralisada pelo veto russo no Conselho de Segurança.
Na Europa acomodada e desorientada está fora de causa sequer subir de tom dos protestos. Para lá dos embargos, das sanções e de banais represálias diplomáticas, o fluir do tempo continua a ser favorável à Rússia. Um dia, mais cedo do que tarde, a Europa descobrirá que a velha tese do apaziguamento de Neville Chamberlain continua a não ser resposta para potências expansionistas. Nessa altura será tarde de mais para acudir à Ucrânia.

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