Dois artigos de João Miguel Tavares, que me parecem
justos e vibrantes de um ideal político que, embora impregnado de uma
democracia humanista, consegue definir sem parti
pris os porquês da eleição de homens pouco recomendáveis, como Trump e Bolsonaro. E a razão já a tinha proclamado o nosso supremo bardo Zeca Afonso, aquando da explosão
triunfal da sua morena vila: uma razão numérica, já nessa altura, da marcha
sobre o convento do Carmo, que punha no “povo” o poder de mandar, embora só
dentro da sua cidade de Grândola, que ganhou natural dimensão totalitária. É
certo que, nesse tempo de reviravolta, o povo de cá era tímido ainda,
politicamente falando, deixava-se mover pelas vozes dos seus orientadores,
poetas ou políticos, ou ambas as coisas, e votava de acordo com os chefes dos
seus partidos, embora nenhum destes tenha por cá assumido a dimensão criminosa
dos Robespierres incorruptos da Revolução Francesa. Felizmente que os Robespierres
da nossa praça não eram dotados dos ardores de carnificina que mereceram ao
chefe de terror francês, conjugado com a pureza de ideal social virtuosamente
igualitário, idêntica execução pela guilhotina que a que ele infligiu a tantos
seus confrades menos radicais na doutrina. Por cá, a explosão mediática,
seguida da consciência da corrupção dos chefes sucedâneos aos do regime ditatorial
anterior, fez que o povo, que afinal sempre teve larga maioria, (conjugada com
larga insipiência), ao longo da História, fosse ele mesmo a ordenar, nas suas “Grândolas”
próprias. Questão numérica, apenas. E de visibilidade e sabedoria maiores, pela
experiência que a democracia cá instalada lhe forneceu, relativamente à tal
corrupção a que os meios mediáticos dão acessibilidade. Igualmente lá por fora,
nas Américas, e por essa Europa dos nacionalismos, mesmo sem canções adequadas,
de que não precisam.
Mas é uma opinião apenas, esta minha. Limitada, naturalmente, e imprecisa.
Por isso acrescento alguns comentários mais explícitos, dentre as muitas
dezenas que os textos de JMT
mereceram, uns favoráveis outros desdenhosos. Sem guilhotina, contudo, estes
últimos, mas animosidade q.b. contra ele, que é corajosamente e atrevidamente
frontal.
I – OPINIÃO: Nós, as elites, não percebemos nada de nada
O eleitorado
está-se a borrifar para aquilo que as elites lhe mandam fazer. Daí
Trump. Daí Bolsonaro. Daí tantas lágrimas à minha volta.
JOÃO MIGUEL
TAVARES
PÚBLICO, 29 de
Outubro de 2018
Eu sei que muitos dos defensores portugueses do voto em Haddad estavam
a ser bem-intencionados e sinceros. Sei que mesmo que Bolsonaro se venha a
revelar um Presidente menos imprestável e fascista do que prometeu, a mera
existência da sua linguagem racista, homofóbica e violenta é
uma afronta à boa convivência democrática. Sei também que cada vitória de um
líder autocrático no mundo representa mais um retrocesso no campo das
democracias liberais.
Mas também sei isto: as elites artísticas, intelectuais e
jornalísticas têm de meter na cabeça de uma vez por todas que a sua influência
sobre o povo, na hora do voto, é nula. Que os seus poderes de mediação e de
persuasão, na era das redes, evaporaram-se de vez. Que ter escritores,
comentadores, historiadores, músicos ou jornais a criar vídeos, e manifestos,
e hashtags, e
editoriais, e o diabo a quatro, onde do alto da sua imensa sabedoria tentam
explicar ao povo brasileiro (como já haviam tentado explicar ao povo americano)
em quem ele deve votar, é uma ridícula figura, por uma razão muito simples –
aquele voto, o voto de dezenas de milhões de brasileiros e de norte-americanos,
também é contra nós.
Quando eu digo “contra nós”
refiro-me a uma elite privilegiada, da qual eu próprio faço parte, e que ao
longo dos séculos se convenceu de que a sua missão no mundo era desempenhar o
papel social de porta-voz das minorias, dos descontentes, dos pobres, dos oprimidos,
e que através desse movimento foi valorizando o seu próprio papel no mundo,
assumindo-se como proprietária da boa consciência da humanidade, e acreditando
que existia uma linha inquebrantável com o povo sofredor, que ela compreendia
como ninguém.
Só que já lá vai o tempo em que George Orwell vivia com os
vagabundos para escrever Na
Penúria em Paris e em Londres. A ascensão social de quem domina os lugares da fala afastou as
elites intelectuais do povo, e o povo já não precisa das elites intelectuais
para falar. Tem o Facebook. As pessoas gostam das canções do Chico e do
Caetano, mas estão-se nas tintas em quem eles votam. As pessoas gostam do humor
de Gregório Duvivier, mas são pouco sensíveis à sua pregação política. As
pessoas gostam dos livros de Raduan Nassar,
mas ele tem mais influência sobre as suas galinhas do que sobre o voto dos
brasileiros.
E ainda bem. Nós, as elites,
olhamos para americanos ou brasileiros como sendo pobres de espírito dominados
por Donald Trump e Jair Bolsonaro, mas a verdade é que há cada vez mais
indícios do contrário: são os americanos e os brasileiros que usam Trump e
Bolsonaro para chegar onde querem, seja o combate à imigração, o combate à
corrupção ou a “defesa da vida”.
Quando nós vemos os blocos
evangélicos a votarem
maciçamente nessas figuras, será pelo seu exemplo
cristão? Donald Trump levou uma vida de absoluta devassidão (para utilizar
linguagem bíblica), que nenhum pastor se atreveria a recomendar à mais negra
das suas ovelhas. Jair Bolsonaro vai na terceira mulher, sendo que a actual já
tinha uma filha de uma relação anterior (o que também não encaixa no perfil do
macho latino cavernícola).
Trump e Bolsonaro não são
exemplos para ninguém, nem sequer para quem vota neles. Mas servem um propósito
– abanar o sistema de alto a baixo. A esquerda gosta tanto de falar de
empoderamento, pois aqui está ele: o eleitorado está-se a borrifar para aquilo
que as elites lhe mandam fazer. Daí Trump. Daí Bolsonaro. Daí tantas lágrimas à
minha volta.
Dois comentários:
João Lopes,
30.10.2018: Excelente artigo de JMT. Há gente,
sobretudo marxista, que ataca Bolsonaro que ganhou democraticamente as
eleições, mas são incapazes de atacar os líderes do PT responsáveis pela actual
situação caótica do Brasil, onde impera o crime e a corrupção e até o seu líder
está preso por corrupção. Mas não
têm coragem, nem voz, para reagir contra a brutal ditadura dos regimes
comunistas da Venezuela, Cuba, Nicarágua, Coreia do Norte...onde não se
respeitam os direitos humanos mínimos, nem há eleições democráticas!
Alvaro van
Zeller, 02.11.2018:
Mais uma vez JMT a escrever um grande artigo. Só peca por ainda não estar
convencido que o Brasil está com uma democracia FORTE e que não seria um
candidato de extrema-direita que iria acabar com a democracia no Brasil. Além disso, alguém que apregoa o que está
escrito na bandeira do Brasil “Ordem e Progresso” não é extremista mas
respeitador da Constituição. E é isso que Bolsonaro vai fazer. Chega de
esconder o mal que a corja petista dos últimos 14 anos fez ao Brasil. Criou
uma cleptocracia que o politicamente correcto não podia falar mal. A ver vamos
mas os sinais de melhoria económica, social e judicial são fantásticos. Os
investimentos estrangeiros a regressar em força, a classe média com esperança e
Sérgio Moro ministro. Bem haja Bolsonaro.
II – OPINIÃO: Onde é que tu estavas no tempo de José Sócrates?
Não percebo como é que as
mesmas pessoas que hoje têm tantas certezas sobre o futuro do Brasil tinham tão
poucas certezas sobre o Portugal de 2009.
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 1 de Novembro de 2018
À boleia de Herman José,
Baptista-Bastos ficou famoso pela pergunta “ouve lá, onde é que tu estavas no
25 de Abril?”. A bem da salubridade do regime e da
decência política, há uma outra pergunta que urge ser transformada em pregão
popular: “Ouve lá, onde é que tu estavas
no tempo de José Sócrates?” Graças às eleições brasileiras e à
quantidade espectacular de portugueses que se assumiram como defensores
apaixonados da democracia, acusando todas as pessoas que se recusaram a
escolher entre Haddad e Bolsonaro de cúmplices do fascismo, dei por mim a
perguntar aos meus botões onde é que estava esta gente tão fogosa, clarividente
e ciosa das instituições entre 2005 e 2011, quando um primeiro-ministro se
dedicava todos os dias a dinamitar os alicerces do regime democrático
português.
Eu até fui daqueles que
confrontado com a hipótese académica de escolher entre Haddad e Bolsonaro
admitiu votar Haddad, mas não me passaria pela cabeça passar atestados de
menoridade democrática a quem se recusou a optar entre o delfim de Lula da
Silva e um confesso admirador da ditadura brasileira. A opção estava muito
longe de ser evidente, mas sendo ela tão evidente para tantos portugueses, eu
não percebo como é que as mesmas pessoas que hoje têm tantas certezas sobre o
futuro do Brasil tinham tão poucas certezas sobre o Portugal de 2009, quando
José Sócrates tinha acabado de exterminar o espaço noticioso mais influente do
país, estava a tentar comprar o canal de televisão mais visto de Portugal,
tinha sob o seu controlo a CGD e o BCP (do BES ainda não se sabia a missa a
metade), fazia o que queria na PT, era acusado de corrupção no caso Freeport,
tinha atrás de si um rasto infindável de suspeitas nunca justificadas,
perseguia professores por causa de anedotas, processava jornalistas por dá cá
aquela palha, tinha os serviços secretos na mão, namorava Hugo Chávez e
Khadafi, espalhava insultos e grosserias através de blogues amigos e ministros
desbocados (hoje grandes referências institucionais da nação), manipulava
informações via Câmara Corporativa, controlava a ERC de forma obscena, colocava
o arquivador-mor na Procuradoria-Geral da República, e por aí fora.
Espantosamente, os escanções
da democracia daquela altura degustavam tudo isto e não lhes sabia a azedo. Ataques ao Estado de Direito em Portugal?
Violência sobre as instituições? Tentativa de controlo dos meios de comunicação
social? No
pasa nada! David Dinis escreveu no jornal online
Eco um texto onde criticava as colunas de
opinião do Observador, não por apoiarem directamente Bolsonaro (não apoiaram),
mas por o “justificarem” e o “normalizarem”. Só que eu sei onde
estavam José Manuel Fernandes e Rui Ramos no tempo de Sócrates – estavam do lado
justo da barricada, a defender a democracia portuguesa. No PÚBLICO, Francisco
Assis acusava ontem a direita nacional de se deixar “encantar
pelos cantos de sereia” do extremismo. Mas eu sei onde estava Assis
no tempo de Sócrates – estava a defendê-lo no Parlamento, como líder da bancada
do PS.
Digam cobras e lagartos de
Bolsonaro, que eu junto-me já ao coro. Mas todos aqueles que em 2009 colocaram
uma cruzinha no PS, tenham, ao menos, algum pudor em atirar-se aos que agora
decidiram não escolher entre Bolsonaro e o PT. Preocuparmo-nos apenas com a
qualidade dos regimes políticos abaixo do Equador não é ser democrata – é ser
turista da democracia. Um campo em que a esquerda portuguesa mais parece a
Agência Abreu.
UM COMENTÁRIO:
Miguel C.,
03.11.2018: Bom, o Lula criou um sistema
de captura da democracia e de subversão do estado de direito, de compra de
maiorias através da compra de deputados, senadores, governadores, juízes,
polícias etc. O Sócrates foi mais subtil, procurou esse controle através do
controle dos media, da informação, da banca, de uma parte do sistema económico
e sobretudo da justiça que teve completamente no bolso e inoperacional. Se isso
não é dinamitar os alicerces do sistema democrático não sei o que será.
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