domingo, 4 de novembro de 2018

Saboreando


Três textos do nosso humor e da nossa consciência: Um, de Bagão Félix, uma análise brilhante do significado de família, segundo a convenção experiente de tipo velho do Restelo ou a convenção moderna, dos não possuidores do “experto peito" daquele, sem o saber assim obtido e mais ainda com o estudo necessário - sobre casos aqui passados, da nossa ira e, acima de tudo, da de Bagão Félix, exemplo de seriedade, bom senso e veia tristemente irónica. Outro, de Alberto Gonçalves, que eu não tinha visto ainda, o qual não resistiu aos benefícios da técnica para cruzar a distância, com as provocações certeiras e temerárias do costume. O terceiro, de Salles da Fonseca, sério e conclusivo, sobre a evolução social e histórica em torno dos fascismos e dos populismos. Sem a colocação de comentários, que, sobretudo Alberto Gonçalves, atraiu... pela negativa escatológica de uns, pela positiva admiradora de outros.

I – OPINIÃO: A família tornou-se uma “incorrecção política”?
Três exemplos que ilustram a forma como se amesquinha a família enquanto primeira e decisiva instituição referencial.
ANTÓNIO BAGÂO FÉLIX
PÚBLICO, 2 de Novembro de 2018
Hoje é o dia dos Finados, tornado banal pela escassez de espiritualidade e pela rarefacção de memória que a sociedade presentista vai gerando aceleradamente. Hoje, continuamos entre Tancos e tantos (casos judiciários). Nesta apoplexia da repetição e da vulgarização, a indiferença tornou-se demolidora. É aí que medram circunstâncias insólitas, como três situações recentes, que aqui sumario. A primeira, a de um professor de uma universidade pública, “dinamizador do poliamor (!) em Portugal”, que num programa televisivo afirmou que “quando a avozinha ou o avozinho vai lá a casa e a criança é obrigada a dar o beijinho à avozinha ou ao avozinho, estamos a educar para a violência sobre o corpo do outro ou da outra, desde crianças”. A segunda, a de um inquérito abjecto numa escola pública em que alunos do 5.º ano (nove, dez anos de idade) foram questionados sobre se se sentem “atraídos por homens, mulher ou ambos” e sobre o seu sexo (se é “homem, mulher ou... outro”!), no âmbito de uma “ficha sociodemográfica” (!). A terceira, a de um novo reality show chamado “Casados à Primeira Vista”, no qual os “concorrentes” vão casar com alguém que nunca viram antes e que só conhecem no próprio dia do casamento.
Estes três exemplos ilustram algumas das faces eticamente sórdidas e tóxicas com que, directa ou subliminarmente, se amesquinha a família enquanto primeira e decisiva instituição referencial.
A família não é um frágil conglomerado de emoções e estados de alma que nos é oferecido por telenovelas e outros produtos de libertinagem.
A família nasceu com o Homem e existe antes do Estado. Não foi inventada cientificamente, não resulta de qualquer legado jurídico, não foi imposta por qualquer acto administrativo, não germinou fruto de uma qualquer ideologia, não é o resultado de meras circunstâncias ou contingências históricas, nem é moldável por ideologias do género que subjuguem o seu fundamento antropológico. A família legitima-se no direito natural. A família não é para o Estado, mas antes o Estado (e a sociedade) são para a família.
A família não é de esquerda ou de direita, nem é politicamente apropriável. Não é laica ou confessional. É antes o mais perene património da humanidade, um bem para todos e não um mal para alguns.
Na família – unidade através da diversidade – todos dependem de todos. Não somos invulneráveis, nem perfeitos, mas dependentes e imperfeitos. Bem sei que a instituição familiar não está na moda politicamente correcta e fracturante. Bem sei que o excitante não é falar do casamento, mas da sua dissolução, não é defender a exigência, mas espraiar lógicas facilitistas, não é cuidar dos velhos quando a cura já não é possível, mas do seu direito à eutanásia, não é investir na maturidade afectiva, mas estimular a precocidade sexual, não é educar na liberdade e responsabilidade, mas confundir obrigação com coerção (vide a palavra “obrigada”, usada pelo interveniente sobre os beijos aos avós...).
Na política de hipertrofia obsessiva de meios materiais, a família é sempre sacrificada. Para o Estado, é perspectivada quase apenas como sujeito pagador de impostos. Na sociedade do ter, a família torna-se cada vez mais e apenas um agente consumidor. No imperialismo mediático, o sucesso da família não é notícia, apenas o é o seu fracasso.
No fundo, a família está entre dois pólos, também chamados de reivindicações da modernidade: o individualismo e o Estado. Subjugada ao poder discricionário, ao mercado, ao consumismo, ao hedonismo. Por outro lado, é menosprezada nesta Europa redutora e monetarizada e está completamente ausente de qualquer tratado europeu.
Tenho para mim que a família é e será indelevelmente um tema de futuro, de progresso e de esperança. Não para sustentar visões arcaicas. Não para isolar a família como uma entidade defensiva e fechada sobre si mesma e à margem das transformações que se vão verificando. Antes para promover uma concepção dinâmica, arejada, responsável de família, que reforce e potencie os seus traços essenciais de partilha, solidariedade, entreajuda e amor e que não descarte, antes aprofunde e aperfeiçoe, a experiência acumulada de gerações passadas.
Este aggiornamento familiar tem, é bom não esquecer, adversários poderosos, umas vezes mais à luz do dia, outras mais larvares, mas nem por isso menos dissolventes. Adversários que, no plano ético, se servem do relativismo; no plano comportamental, da indiferença e da licenciosidade; no plano da vida, da propagação da cultura da morte; no plano espiritual, do positivismo hedonista e da cultura da satisfação; no plano geracional, do egoísmo; no plano social, do individualismo predador; no plano económico, do utilitarismo puro e duro; no plano religioso, do fanatismo religioso ou ateu.
Não há verdadeiro desenvolvimento humano sem qualidade de família. Não se edifica uma “sociedade de bem-estar” radicada no “mal-estar das famílias”.
O progresso da humanidade passará sempre pelo primado da família. Fora desta, todas as soluções são falsas, circunstanciais e efémeras.
Economista
IPSIS VERBIS
CITAÇÃO: “Não é pequena contradição ser dotado de tão pouco sentimento familiar e ter tanta necessidade de uma família (José Saramago, 1922-2010)
PLEONASMO: Tenho um amigo meu
PARANOMÁSIA (fiscal):  Doa a quem doar
PALÍNDROMO (capicua de letras):  Aí, Lima falou: “Olá, família!”
SCIENTIA AMABILIS
As famílias botânicas
Neste espaço botânico e a propósito de família, talvez se justificasse falar de árvores... genealógicas. Todavia, escolhi escrever sobre as famílias botânicas. No conjunto da biodiversidade vegetal, chama-se taxon (no plural, taxa, ou aportuguesando táxones) ao conjunto de indivíduos agrupados nos diferentes níveis taxonómicos: família, género, espécie, subespécie. Estes níveis são precedidos biologicamente por reino, divisão, classe e ordem. A denominação de uma família resulta normalmente da do seu género mais representativo acrescentando-se-lhe o sufixo aceae e é escrita em itálico e iniciada por uma maiúscula. Exemplo: a família das Platanaceae advém do seu género mais significante, Platanus. Dentro de cada família, o nome científico de uma planta é de natureza binomial ou binária, ou seja, constituído por dois nomes: o primeiro designa o nome genérico (o género) e o segundo é o epíteto específico (a espécie). Escrevem-se em itálico, sendo que o nome do género (um substantivo) é iniciado por uma letra maiúscula e o da espécie (um adjectivo ou um substantivo adjectivado) por uma minúscula. A seguir ao nome da planta é assinalado o do seu classificador. Exemplo: a nogueira é designada por Juglans regia L. (L de Lineu, na ilustração).

II - Notícias do meu (ai, ai) país /premium
OBSERVADOR, 27/10/2018,
Se tomarmos os espécimes à exacta medida do que valem, tudo o que envolve o dr. Louçã e o prof. Freitas – “intelectuais” na perspectiva de um maquinista da CP – contém inegável potencial humorístico.
Ao longo da História, muitas batalhas aconteceram e muitos homens morreram semanas depois de alcançada a paz. Bons tempos, marcados pela demora nas comunicações, dependentes de cavalos, carroças e caminhos tortuosos. Por azar, não pude viver essa época, em que uma pessoa saía do país em viagem de férias, chacina ou catequização e ficava impecavelmente privado de notícias locais. Com jeitinho, regressava-se e descobria-se que, à custa dos fantásticos estadistas que temos, já não havia país ao qual regressar. Passados seis meses, recebia-se um telegrama a confirmar a falência.
Hoje as dificuldades são incomensuravelmente maiores. Apanho oito voos (juro), alugo dois carros, afasto-me nove mil quilómetros de casa e, contra todos os princípios terapêuticos, continuo a perceber, sem perceber metade, o que sucede em Portugal. Culpo as “apps” do Facebook e do Observador, que não resisto abrir com excessiva regularidade. À semelhança de um voyeur à solta num motel, é impossível evitar a espreitadela. E a ligeira melancolia que se lhe segue. Cada “facto noticioso” é absurdo, e cada reacção ao “facto” mais absurda ainda.
Houve a “remodelação” do governo, em que, além de diversas mudanças importantíssimas, o dr. Costa chutou para cima aquele funcionário do partido que tem um coisinho na orelha. O assunto gerou a indispensável indignação, como se a criatura em causa fosse substituir uma sumidade ou ocupar a vaga de outra. Quem se zanga com escolhas assim está, deliberadamente ou não, a exibir um esboço de esperança que o arranjinho no poder nunca mereceu. Por definição, a pertença ao culto faz de qualquer um devoto, de igual direito e igual descaramento.
Houve um coitado que foi à televisão falar na violência que obriga as crianças a beijar os avós. Entre a subsequente fúria das massas, ninguém lembrou a violência que obriga os avós a beijar as crianças, sejam estas “cientistas sociais” ou não.
Houve uma “jornalista”, cujo currículo consiste em frequentar a intimidade de ladrões sem reparar nos roubos, inconformada com o uso de “Até amanhã, se Deus Quiser” por uma apresentadora televisiva. É no que dá distribuir o ateísmo pelas cabeças de fanáticos.
Houve o sr. prof. Marcelo a proferir frases acerca de Tancos e houve pessoas bem-intencionadas – e irremediavelmente optimistas –  a prestarem atenção às frases que saem da boquinha do sr. prof. Marcelo, colocando-as a ocupar o espaço que deveria pertencer à informação.
Houve a publicação de novo livro de memórias do prof. Cavaco e a esquerda em peso saiu esbaforida para garantir, aos berros, que as opiniões do prof. Cavaco não possuem nenhuma relevância. A título de alívio cómico, alguns senhores do PS lembraram a falta de “sentido de Estado”.
Houve o anúncio (necessariamente discreto) de que, por obra do dr. Centeno e com a cumplicidade, demonstrável em tribunal, dos que ergueram o dr. Centeno a algo diferente de uma nulidade com dentes, as nossas contas terminaram 2017 com o segundo maior défice e a terceira dívida mais elevada da União Europeia.
E houve, claro, a oportuna carta de “intelectuais” portugueses a apelar à derrota de um determinado candidato nas eleições presidenciais brasileiras. A carta é engraçada por uma data de razões. Tem graça porque, dos “intelectuais” em questão, cinco sextos jamais se distinguiram pelo intelecto e a maioria distingue-se justamente pela respectiva, e flagrante, ausência. Tem graça porque, se tomarmos os espécimes à exacta medida do que valem, tudo o que envolve o dr. Louçã e o prof. Freitas – “intelectuais” na perspectiva de um maquinista da CP – contém inegável potencial humorístico. Tem graça porque há um evidente efeito paródico em ver a aflição dedicada ao Brasil por sujeitos que não vivem e não votam no Brasil, o mesmo efeito que teria uma carta de “intelectuais” argentinos a propósito das eleições no Ruanda. Tem graça porque o “perigo” que os “intelectuais” referem paira sobre um território arrasado pela corrupção, estrangulado pela miséria e inviável pelo crime. Tem graça porque boa parte dos “intelectuais” legitimaram pelo silêncio ou apoiaram pela palavra os bandos responsáveis pela corrupção, pela miséria e pelo crime. Tem graça porque o receio dos “intelectuais” face ao hipotético fim da liberdade no “país irmão” (?) não se verifica na real inexistência da dita em países primos, sobrinhos e cunhados. Tem graça porque, cá dentro e lá fora, o único esforço de tantos dos citados “intelectuais” a pretexto da democracia consistiu, e consiste, em lutar pela sua abolição. Tem graça porque uma curiosa quantidade desses “intelectuais” é, sem tirar nem pôr, comunista. Tem graça porque os “intelectuais” chamam “fascista” ao sr. Bolsonaro após chamarem “fascista” a Trump, Passos Coelho, Bush filho, Bush pai, Cavaco, Thatcher, Reagan, Sá Carneiro e, imagine-se, até ao prof. Freitas, agora absolvido do Mal e prova ambulante da redenção. Tem graça porque, dado o currículo dos “intelectuais” que se lhe opõem, o sr. Bolsonaro, que por acaso emite palpites um bocadinho fascistas e é sem dúvida um burgesso, é capaz de esconder duas ou três virtudes.
Confesso que não as encontrei, mas também não procurei. E não tenciono procurar. Interessar-me pela demência brasileira com a portuguesa à minha disposição é um luxo e um masoquismo escusados.

 HENRIQUE SALLES DA FONSECA
OBSERVADOR, 3.11.18
ABAIXO O FASCISMO!
Fascismo de esquerda ou de direita é coisa horrível mas o populismo é um poderoso mecanismo de integração de toda a gente na vida política - uns como apoiantes e outros como críticos mas todos por claras motivações.
O populismo nasce por reacção contra uma sociedade cristalizada e, portanto, tem uma essência revolucionária independentemente de se tratar de bonapartismo esquerdino ou de direita.
O sistema de Partidos definidos numa base doutrinária cujas lideranças são democraticamente eleitas dentre um conjunto coeso de eleitores, é posto em causa pelo culto da personalidade de um caudilho com mais ou menos carisma que facilmente se pode transformar em ditador. A História está recheada de exemplos e como todos os meus leitores bem sabem, houve-os de esquerda e de direita mas todos obviamente fascistas.
E recordo as palavras atribuídas a Dino Grandi (Presidente do Grande Conselho Fascista e Ministro dos Negócios Estrangeiros do populista Mussolini) quando terá definido que «Fascismo é a prática do improviso resultante da prodigiosa imaginação do Duce».
Eis por que creio prudente pormos travão ao populismo seja ele de esquerda ou de direita e, para reforço do sistema partidário tradicional, tudo fazermos com vista ao regresso às respectivas bases doutrinárias em vez de quase todos os Partidos praticarem uma mesma política e apenas se distinguirem pelos interesses pessoais dos seus membros mais influentes. É que o caudilhismo dá asneira com muita probabilidade quer ele nos chegue pela esquerda como pela direita.




Nenhum comentário: