segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Touradas, poupanças, cactus, vento


Eram os gladiadores que divertiam o público romano a combater entre si ou com animais possantes, e até, como exemplo bem presente, temos a cena do Ursus a defender Lígia, atada a um poste, e a combater o touro no “Quo Vadis da nossa memória antiga. Os outros povos dos restos da civilização romana humanizaram-se e esqueceram essas touradas desonestas, nós cá na Península Ibérica, habituados a confrontar o mar, mantivemos a tradição de arrostar com o touro, como forma de dispersar tormentas de alma ou de exibir denguices de corpo para encanto de plateias dadas aos prazeres do ludíbrio, mesmo que apenas através de um pano vermelho em frente a um nobre bicho inocente.
Tudo isto, a propósito das touradas, de que o nosso primeiro ministro não gosta, por natural repúdio de civilizado que respeita os animais, o que é de estimar, mesmo que contrarie os preceitos de respeito pelas tais liberdades em que Manuel Alegre insiste, sensível a essas e não aos touros valentes.
Uma história em vários capítulos, onde perpassa também a graça e a sabedoria financeira - e não só - de Bagão Félix. Complemento-a escutando Adriano Correia de Oliveira, nas Trovas do vento que passa, excerto do poema do desolado Manuel Alegre, que uma vez mais diz não, na semeadura da sua lavra fatídica:
Trova do vento que passa
Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz. (…)
Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.
Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.

CRÓNICA
I - Palavras, expressões e algumas irritações: civilização e tourada
O “espectáculo” tourada não irá ver o seu IVA descer de 13% para 6%, como outros. A manutenção deste valor é justificada pela ministra da Cultura, Graça Fonseca, “não por uma questão de gosto, mas de civilização”. Os PANistas ficaram felizes, mas nem todos os socialistas gostaram.
RITA PIMENTA
PÚBLICO, 11 de Novembro de 2018
Numa semana em que muito se escreveu sobre “civilização” e “tourada”, fomos consultar as nossas fontes preferidas: os dicionários (em papel e online).
Para “civilização”, escolhemos este registo: “Conjunto dos conhecimentos e realizações das sociedades humanas mais evoluídas, marcadas pelo desenvolvimento intelectual, económico e tecnológico.
Para “tourada”, “espectáculo numa arena em que touros bravos são provocados por toureiros ou por cavaleiros para que, investindo contra eles, lhes permitam fazer a lide, isto é, fazer uma série de movimentos, a pé ou a cavalo (sortes), que culminam no domínio do touro e, em alguns casos, na sua morte”.
Este “espectáculo” não irá ver o seu IVA descer de 13% para 6%, como outros. A manutenção deste valor é justificada pela ministra da Cultura, Graça Fonseca, “não por uma questão de gosto, mas de civilização”.
Os PANistas ficaram felizes, mas nem todos os socialistas gostaram. Manuel Alegre até escreveu uma carta aberta ao primeiro-ministro, em que, além da tourada, também defendeu a caça. Excerto final: “Sim, meu caro António Costa, trata-se de uma tradição cultural e social que é parte integrante da nossa civilização. (…) E é, sobretudo, uma questão de liberdade, que sempre foi a essência e a alma do Partido Socialista.”
André Silva, do PAN, não gostou e disse à Lusa: “Uma reacção já conhecida, normal de alguém que se recusa a ler a sociedade e os valores do século XXI, de quem está fechado à mudança.”
Bagão Félix falou em “assanhadas ‘iniciativas civilizacionais’, com tourada ou sem ela, do solitário PAN e de certa esquerda (mas não toda), armados em polícias taliban de gostos e costumes”.
Em sentido figurado, “uma tourada” traduz-se por “barulheira; tumulto” ou ainda “correria, desordem com muita agitação ou barulho”. Olé!
A rubrica Palavras, expressões e algumas irritações encontra-se publicada no P2, caderno de domingo do PÚBLICO
II - Excertos da “Carta Aberta” de Manuel Alegre a A. Costa
Manuel Alegre escreve a António Costa para defender liberdade de gostar de touradas
RITA DINIS
PÚBLICO, 7/11/2018
Manuel Alegre pede a António Costa para não excluir as touradas na descida do IVA dos espetáculos: gostar ou não "é uma questão de liberdade". E impor por decreto "cheira a totalitarismo", diz.
… Afirmando que não aceita a tentativa do Governo de impor um gosto particular, Alegre diz que tal comportamento “cheira a totalitarismo” e ameaça a liberdade, que é a “essência e a alma do PS”. Em causa está uma das polémicas do momento — a redução do IVA para os espetáculos discriminando a tauromaquia –, assim como a proposta do PAN para alterar o regime jurídico da caça. Para Manuel Alegre, não deve ser o Governo a prejudicar atividades que fazem parte da “tradição cultural e social da nossa civilização”, e que dizem respeito ao “emprego e à vida de milhares de pessoas”.
“É chegada a hora de enfrentar cultural e civicamente o fanatismo do politicamente correto. É uma questão de liberdade. Liberdade para não gostar de touradas. Mas liberdade para gostar. Liberdade para não gostar da caça. Mas liberdade para gostar. Algo que não se pode decidir por decreto nem por decisões impostas por maiorias táticas e conjunturais. Não é democrático. Para mim, que sou um velho resistente, cheira a totalitarismo. E não aceito”, escreve o escritor e poeta no jornal Público.
É por isso que Alegre se dirige directamente a António Costa. “Por isso, meu caro António Costa, peço-lhe que intervenha a favor de valores essenciais do PS: o pluralismo, a tolerância, o respeito pela opinião do outro”, diz, pedindo que o primeiro-ministro interceda pela descida de 6% do IVA para todos os espectáculos sem discriminar a tauromaquia, “já que os prejudicados serão os mais pobres, os trabalhadores que tornam possível este espectáculo”, e pedindo que se oponha à proposta do PAN para alterar o regime jurídico da caça. Segundo Alegre, “estão em causa centenas de postos de trabalho e elevadas perdas económicas para o país, sobretudo para aquelas regiões onde a empregabilidade e a actividade económica estão quase exclusivamente ligadas à caça”.
III - Excerto da resposta epistolar de António Costa a Manuel Alegre
PÚBLICO, 11/10/2018
Como homem da Liberdade tem também de respeitar os cidadãos que, como eu, rejeitam a tourada como manifestação pública de uma cultura de violência ou de desfrute do sofrimento animal. 
Será assim ilegítimo, totalitário, violentador da liberdade a não atribuição de benefício fiscal à tourada? O que seria então se lhe fosse dado um tratamento fiscal agravado, como acontece com o tabaco ou o álcool?
Bem sei que o novo politicamente correcto é ser politicamente "incorrecto"... Mas então prefiro manter a tradição e defender o que acho certo, no respeito pela liberdade dos outros defenderem e praticarem o contrário.
IV – OPINIÃO: Poupança entre bruxas e touros
A actual taxa da poupança atingiu mínimos históricos, estando actualmente em 4,4% do rendimento disponível.
ANTÓNIO BAGÃO FÉLIX
PÚBLICO, 9 de Novembro de 2018
Em todos os dias há sempre um dia mundial, internacional ou nacional de qualquer coisa. A procura já excede a oferta dos 365 dias. A proliferação destes dias celebratórios tem até o mesmo efeito da inflação em relação à moeda: de tanto excesso, desvaloriza-se o valor e a forma superioriza-se ao conteúdo.
Vem isto a propósito do Dia Mundial da Poupança – não sei se em vias de extinção, não o dia, mas a poupança – que ocorre em 31 de Outubro. O curioso é que, de há anos a esta parte, este dia coincide com o Dia das Bruxas, mais conhecido pelo termo inglês Halloween, importado da tradição americana e britânica e, por sua vez, herdado dos druidas celtas.
Halloween vai ganhando mais notoriedade e expressão, sobretudo nas camadas jovens da população. A sociedade de consumo agradece mais esta oportunidade a juntar à série infindável de dias disto ou daquilo que sempre movimentam bens, serviços e dinheiro. As cucurbitáceas abóboras sentir-se-ão socialmente promovidas, olhando, com algum desdém, para as flores (inchadas no preçário) que se depositam, no Dia dos Finados, junto dos que já partiram.
Em suma, convergem no dia 31 de Outubro o tímido elogio da poupança e o avassalador corrupio do consumo. A primeira que anda pelas ruas da amargura, o segundo que se estabeleceu urbi et orbi, mesmo que, para tal, se apele ao endividamento que mais não é que poupança negativa. Como na senha do Halloween, o dilema da actualidade é, alegoricamente, “doce ou travessura”...
O assunto da poupança – que nesta coluna já tratei – é um dos mais decisivos para o nosso futuro e para uma saudável equidade intergeracional, mas que, tal qual a demografia, é negligenciado pelas autoridades políticas e secundarizado pelos media.
O certo é que a actual taxa da poupança atingiu mínimos históricos, estando actualmente em 4,4% do rendimento disponível. Este valor é menos de metade da taxa média na União Europeia (12,1%), já de si significativamente diminuta. A nossa taxa que, outrora, já atingiu valores bem superiores a 20%, tem vindo a cair ano após ano. Era de 11% em 2009, e nos últimos três anos desceu de 5,3% para 5,1% e agora 4,4%, ainda que, em parte, resulte da fase de recuperação de decisões adiadas quanto à aquisição de bens duradouros, como automóveis e electrodomésticos.
Vários factores têm contribuído para esta preocupante tendência. Refiro-me, em primeiro lugar, à escassa educação para a poupança, que tende mesmo a ser irrelevante nas gerações mais novas, bem como à débil cultura previdencial, particularmente preocupante num tempo em que as expectativas quanto à evolução da Segurança Social e do seu sistema de pensões são mais baixas.
Também a política de expansão monetária protagonizada pelo Banco Central Europeu, que tem induzido uma ideia de “dinheiro fácil”, está a estrangular o aforro das famílias que praticamente tem uma remuneração igual ou próxima de zero, seja no sistema bancário, seja agora mais acentuadamente em produtos de poupança disponibilizados pelo Tesouro (que somam já 15% do total da dívida pública). A taxa média de juro para depósitos de um ano é, actualmente, de 0,1%, antes de impostos!
Como afirmou o SE do Tesouro Mourinho Félix, “uma baixa taxa de poupança deixa as famílias mais vulneráveis para os chamados ´dias chuvosos´, seja por uma redução dos rendimentos, como se verifica em situações de desemprego, doença ou na idade da reforma, seja por um aumento das suas despesas”.
Acontece, porém, que o próprio Estado tem contribuído para desvalorizar o valor económico, social e familiar do aforro. Basta verificar o agravamento em 40% (oito pontos percentuais) da taxa liberatória do IRS sobre depósitos e obrigações que era de 20% há dez anos, mas que foi sujeita a quatro aumentos (para 21,5%, depois para 25%, a seguir para 26,5%, fixando-se em 28%), sem que tenha havido uma contestação política e cívica à altura, como acontece com aspectos orçamentais bem menos determinantes.
Acresce que com taxas de remuneração da poupança bem inferiores à taxa de inflação, o IRS acaba por, em termos reais, atingir o próprio capital, assim se transformando parcialmente um imposto sobre o rendimento num tributo sobre o próprio património.
Como pude ler num excelente trabalho na revista da Deco Proteste Investe, trata-se de uma tributação que é a mais alta na Europa e que incide cegamente sobre as poupanças, independentemente do seu valor e da sua natureza. Bem superior à taxa na vizinha Espanha (19%) e sem paralelo com a tributação belga que isenta de imposto os juros das poupanças até um valor anual de 960 euros.
Perante um OE 2019 que praticamente ignora a poupança, bom seria que este tema fosse recuperado na discussão na especialidade, devidamente escrutinado e votado de modo a reduzir este brutal contra-incentivo ao aforro, em vez de assanhadas “iniciativas civilizacionais”, com tourada ou sem ela, do solitário PAN e de certa esquerda (mas não toda), armados em polícias talibã de gostos e costumes. Ou será que quem poupa nem um touro vale?
IPSIS VERBIS
CITAÇÃO: “Não criarás prosperidade se desestimulares a poupança” (Abraham Lincoln, 1809-65)
METÁFORA: Fez um discurso muito poupado. Estava sempre a dizer idem aspas
PARANOMÁSIA: Aquela pança precisa de poupança na papança
CATACRESE: Pé-de-meia
OXÍMORO: Amendoins valiosos

SCIENTIA AMABILIS
Cactos e suculentas
Por falar em poupança, escolho hoje para esta secção botânica plantas que fazem da reserva alimentar o seu modo de vida. Refiro-me às cactáceas e às suculentas. Todo o cacto é uma planta suculenta, mas nem toda a suculenta é um cacto. A sua principal distinção à vista desarmada consiste nos pequenos círculos salientes de onde nascem rebentos, espinhos, pêlos e flores que os cactos possuem e as outras suculentas não têm. Ambas têm uma notável capacidade de sobrevivência e de reprodução em ambiente de carência acentuada de água e humidade e de temperaturas diurnas bastante elevadas. Para tal, armazenam água sobretudo nas raízes e caule. Além disso, possuem uma textura espessa e algo cerosa, pelo que perdem pouca água e mantêm-se hidratadas por mais tempo. Muitos cactos exibem, ainda que com curta duração, expressivas e cromáticas flores. Os espinhos também os protegem da acção dos animais. Na foto, um dos mais vulgares e populares cactos Opuntia ficus-indica (figueira-da-Índia ou piteira), sobretudo no Algarve e Alentejo, e cujo fruto – depois de retirados os espinhos – é comestível.


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