segunda-feira, 5 de novembro de 2018

«De que serve uma sensação se há uma razão exterior para ela?»



As razões são várias, desse aforismo da criação de Pessoa, no seu heterónimo Álvaro de Campos, num excurso que não resisto a transcrever do poema “Cruzou por mim” sobre um tal mendigo numa rua da Baixa a quem ele despejou uns trocos, pretexto para uma introversão arrasadora do seu estado de alma de derrotismo sem trégua.
Não: tudo menos ter razão!
Tudo menos importar-me com a humanidade!
Tudo menos ceder ao humanitarismo!
De que serve uma sensação se há uma razão exterior para ela?
Sim, um poema extraordinário, que atesta uma situação de carência eterna, quer do foro psicológico, quer do foro físico, social ou moral.
O primeiro texto, de Carlos Afonso, médico psiquiatra, refere os problemas económicos, causados pela depreciação do indivíduo humano português, em vários níveis da sua actuação, entre os quais o de trabalhador. O texto é bem esclarecedor, assim como o dos vários comentários de apoio a uma situação constante e irreversível, pois que nos está no sangue e no fado. Um dos comentadores – Ricardo Barnes - refere a diferença entre o nosso modo de actuação laboral e o dos ingleses, estes exigindo dados de idade e competência, nós, de preferência, dados de identificação revisteira para efeitos de mercado de trabalho. De facto, há muitas razões para este estado depressivo e todos o sabem mas fingem não ver, neste país de lamúria e tacanhez, avivado pela esperteza saloia e a cada vez maior inapetência para o trabalho e apetência para a arruaça, que começa nas escolas e acaba nas greves devastadoras.
Quanto à frase de Guy de Maupassant, escritor realista do século XIX, sobre o arrivismo social de tantos seres desejosos de sobressair socialmente, na França capitalista desse tempo, escolheu-a Salles da Fonseca, pela sua universalidade, num propósito irónico para retratar o arrivismo social de tantos nossos, que enchem as cadeiras da Assembleia, na sua maioria, em irrisória ficção de governação, numa democracia de ruído e blasfêmia.
As angústias do trabalho depois dos 50 anos
PEDRO AFONSO
OBSERVADOR, 2/11/2018
Converte-se a vida humana numa peça industrial descartável, cujo prazo de validade se encurta sucessivamente, atirando-se as pessoas para o ferro velho, como se se tratasse de lixo não reciclável.
Para aqueles com mais de 50 anos que (ainda) trabalham, o país está dividido em dois pólos que reflectem estados de espírito distintos. Quem trabalha no sector privado vive atormentado com o fantasma das reestruturações das empresas (leia-se despedimentos), cada vez mais frequentes e imprevisíveis. Por sua vez, aqueles que trabalham no sector público vivem impacientes com a contagem do tempo para alcançarem a reforma. Se no primeiro caso prevalece o medo e a insegurança, no segundo predomina a ansiedade e o desejo de descanso. De qualquer modo, ambas situações são negativas para o país porque têm um efeito desmoralizador e afetam gravemente a produtividade.
Esta situação torna-se ainda mais grave quando um dos nossos maiores problemas está relacionado precisamente com a baixa produtividade. Neste contexto, o ambiente psicológico em que se trabalha é muito importante.   Infelizmente, quer no sector público quer no privado, o ambiente laboral está cada vez pior. Hoje em dia uma pessoa com mais de 50 anos, que seja despedida, sabe de antemão que será muito difícil voltar a conseguir encontrar emprego, pois as empresas valorizam cada vez menos a experiência profissional e a maturidade, preferindo contratar jovens com salários mais baixos. Os funcionários públicos, que tiveram as carreiras congeladas durante largos anos, sem qualquer diferenciação salarial pelo mérito e esforço pessoal, vão fazendo uma peregrinação profissional dolorosa pelas instituições públicas, na expectativa de alcançarem a sua pequena fatia de justiça laboral: a reforma.
Estes dois cenários reais são profundamente doentios e nocivos. Revelam um país derrotado, de braços caídos, e sem ânimo. O país não progride economicamente, nem tão-pouco se transforma num bom lugar para se viver com este ambiente social que só traz consigo doenças psiquiátricas; isto poderá explicar, pelo menos em parte, por que motivo o consumo de psicofármacos continua a aumentar entre nós.
Não é bom para a saúde mental de uma pessoa, após o infortúnio de ter caído nas malhas do despedimento, ser praticamente impedida, pelo critério da idade, de voltar a ter um papel útil e produtivo na sociedade. Esta situação para além de configurar uma humilhação, traz consigo enormes problemas financeiros e familiares.
Não é bom para a saúde mental de um país ter um exército de funcionários públicos vencidos, sem ânimo, desconsiderados e sem conseguirem produzir mais por falta de condições ou por ausência de estímulos. O ambiente na função pública é estranho e sombrio. Cresce o número de funcionários públicos que, numa ruminação obsessiva, procedem à contagem decrescente dos dias que faltam para a reforma, aguardando o término da sua sentença.
Não é bom para a saúde mental dos nossos jovens, viverem num ambiente familiar em que os pais estão deprimidos, ansiosos, angustiados com o futuro, sem esperança e impotentes pela instabilidade no trabalho. Viver com pais infelizes e frustrados configura um ambiente corrosivo, podendo conduzir a um maior insucesso escolar e a um enfraquecimento da célula familiar que é a base da sociedade.
Se hoje é difícil alguém com mais de 50 anos encontrar uma vaga no mercado de trabalho, é provável que em breve esta situação se agrave, e passe também a afectar aqueles que têm mais de 40 anos. Está em curso um processo de desumanização do trabalho, e os limites para se classificar uma pessoa como “profissionalmente inútil” alargam-se cada vez mais. Converte-se, deste modo, a vida humana numa peça industrial descartável, cujo prazo de validade se encurta sucessivamente, atirando-se as pessoas para o ferro velho, como se se tratassem de lixo não reciclável.
Lamentavelmente, se nada for feito, este é um problema que mais cedo ou mais tarde irá atingir quase todos. Esta inevitabilidade confronta-nos não apenas com os perigos de uma doença mental, mas acima de tudo com a tragédia de uma doença moral coletiva. Cabe à sociedade oferecer condições, não apenas físicas, mas também psicológicas, que possam garantir a dignidade do homem e a sua realização através do trabalho, mesmo depois dos 50 anos.
Médico psiquiatra
II - COMENTÁRIOS:
Filipe F: A questão é pertinente e interessante.Mas sejamos realistas, porque é que uma empresa haveria de preferir manter um profissional mais caro, potencialmente mais problemático (à experiência acrescida também se somam as manhas e técnicas de evitar as situações difíceis e protelar decisões) e menos apto para acompanhar os desenvolvimentos técnicos e dos mercados ?
E será que os mais de cinquenta estão dispostos para baixar a sua remuneração ? Porque é que o salário não pode descer ? Talvez se isto fosse possível, em muitos casos, as empresas não descartassem os colaboradores mais velhos.
Antonio Ferreira: Artigo interessante que subscrevo pois estou nessa faixa de idade, claro que não há políticos interessados no assunto. Se olharmos para a politica dos últimos anos de ordenados baixos é óbvio que as empresas querem substituir trabalhadores mais experientes, pelo tal mais caros, por trabalhadores mais baratos de idade mais baixa e que por regra são contratados a empresas de trabalho temporário, que não cumprem qualquer lei laboral e tem carta branca das autoridades.
Os governos e os partidos em geral querem que as pessoas se reformem cada vez mais tarde, mas não tomam medidas para criar condições para que isso aconteça.
O tema do  preconceito e  da discriminação pela idade  parece que não dá votos!
Luciano Barreira: Emprego depois dos 50 talvez seja difícil agora trabalho não falta, depende apenas do que se saiba ou queira fazer. Na construção civil, neste momento, raro é o trabalhador com menos de 50 anos. Os mais novos preferem outras vidas mais airosas. 
neocome liberais: Espera lá... Mas esse "processo de desumanização do trabalho"  que está em curso não é aquilo que costuma ser designado por precarização do trabalho e por flexibilidade ou liberalização laboral? O despedimento livre e a eliminação de uma série de direitos laborais não são medidas necessárias para melhorar a competitividade e a saúde da nossa economia e, consequentemente, da vida humana?
A "doença moral colectiva" de que o Dr. está a falar não é aquilo que é conhecido como neoliberalismo? O Dr., por acaso, não tem receio de ser confundido com o parasita do "Nogueira"? 
Ricardo Barnes: O tema da idade para o mercado de trabalho deveria preocupar a classe política e empresas, onde a mentalidade tacanha prevalece e Portugal, por muito que tente gritar na Europa para ser ouvido não passa de um irrelevante país no contexto europeu.  
Entristece-me como português o que se passa no mercado de trabalho, nomeadamente na área do recrutamento e potenciado pelas empresas de recursos humanos que muitas vezes são opacas e por vezes ardilosas. O próprio nome da maioria das funções referidas em sites de emprego é em inglês e por vezes com nomes caricatos (exemplo: Coordenador de Facilities, Facility Manager), o que só deveria ser admissível se e só se não houvesse tradução directa. Como exemplo, a comparação de um anúncio de emprego em Portugal e no Reino Unido, onde neste último, a clareza e detalhe da função relatada, características da pessoa pretendidas, compensação e demais benefícios oferecidos nada tem em comum, infelizmente, para prejuízo de todos aqueles que estão em transição no mercado de trabalho nacional. A questão da idade para efeitos de emprego em Portugal é um tema preocupante e tanto quanto sei, caso único porque noutros países por onde passei em trabalho, privilegia-se a idade que se relaciona com o saber e experiência profissional.
O factor idade no séc. XXI já não é sinónimo de falta de instrução ou formação e por se preterirem os mais experientes talvez explique parte da fraca produtividade do país. 
Sem me alongar, deixo em baixo um exemplo (não trascrevi) de nota de rodapé de um anúncio de emprego no Reino Unido, país onde a diversidade é total e até para efeitos de candidatura a emprego não são aceites elementos identificativos tais como fotografia, data de nascimento ou morada mas apenas o nome, telefone e e-mail. Aqui, as pessoas são contratadas pelo saber e potencial valia para a função e empresa e não pela questão da aparência. 
Antonio Costa: artigo muito realista, lamentavelmente temos a sociedade desamparada, perdida nos futebóis e discursos políticos futebolizados de esquerda - direita, sem rumo, sem estratégia, sem cuidarmos dos nossos filhos e do seu futuro... 
Ricardo Nuno: E o mais extraordinário é que não se vê nenhum partido político interessado em pegar nesta bandeira e introduzir nos seus programas eleitorais uma preocupação séria com o trabalho depois dos 50 anos (ou 45, ou até mais cedo em muitos casos)! Por exemplo, não me lembro de ouvir algum dirigente partidário a insurgir-se contra os limites injustificados de idade que todos os dias podemos encontrar nas ofertas de emprego que vão sendo publicadas, uma discriminação que até poderia e deveria merecer proibição a nível constitucional.
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 04.11.18
O DEPUTADO
«Era uma espécie de jesuíta republicano e de cogumelo liberal de natureza duvidosa, como medram tantos [deputados] sobre a estrumeira popular do sufrágio universal.»
 Guy de Maupassant
in «Bel-Ami», Abril Controljornal, Edipress, Agosto de 2000, pág. 191 e seg

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