As razões são várias, desse
aforismo da criação de Pessoa, no seu heterónimo Álvaro de Campos, num excurso que não resisto a transcrever do
poema “Cruzou por mim” sobre um tal
mendigo numa rua da Baixa a quem ele despejou uns trocos, pretexto para uma
introversão arrasadora do seu estado de alma de derrotismo sem trégua.
Não: tudo menos ter razão!
Tudo
menos importar-me com a humanidade!
Tudo
menos ceder ao humanitarismo!
De
que serve uma sensação se há uma razão exterior para ela?
Sim, um poema extraordinário,
que atesta uma situação de carência eterna, quer do foro psicológico, quer do
foro físico, social ou moral.
O primeiro texto, de Carlos
Afonso, médico psiquiatra, refere
os problemas económicos, causados pela depreciação do indivíduo humano
português, em vários níveis da sua actuação, entre os quais o de trabalhador. O
texto é bem esclarecedor, assim como o dos vários comentários de apoio a uma situação
constante e irreversível, pois que nos está no sangue e no fado. Um dos
comentadores – Ricardo Barnes - refere
a diferença entre o nosso modo de actuação laboral e o dos ingleses, estes
exigindo dados de idade e competência, nós, de preferência, dados de
identificação revisteira para efeitos de mercado de trabalho. De facto, há
muitas razões para este estado depressivo e todos o sabem mas fingem não ver,
neste país de lamúria e tacanhez, avivado pela esperteza saloia e a cada vez
maior inapetência para o trabalho e apetência para a arruaça, que começa nas escolas e
acaba nas greves devastadoras.
Quanto à frase de Guy de
Maupassant, escritor realista do século XIX, sobre o arrivismo social de
tantos seres desejosos de sobressair socialmente, na França capitalista desse
tempo, escolheu-a Salles da Fonseca, pela
sua universalidade, num propósito irónico para retratar o arrivismo social de
tantos nossos, que enchem as cadeiras da Assembleia, na sua maioria, em irrisória
ficção de governação, numa democracia de ruído e blasfêmia.
As
angústias do trabalho depois dos 50 anos
OBSERVADOR, 2/11/2018
Converte-se a vida humana numa
peça industrial descartável, cujo prazo de validade se encurta sucessivamente,
atirando-se as pessoas para o ferro velho, como se se tratasse de lixo não
reciclável.
Para aqueles com mais de 50 anos que (ainda) trabalham, o país está
dividido em dois pólos que reflectem estados de espírito distintos. Quem
trabalha no sector privado vive atormentado com o fantasma das reestruturações
das empresas (leia-se despedimentos), cada vez mais frequentes e imprevisíveis.
Por sua vez, aqueles que trabalham no sector público vivem impacientes com a
contagem do tempo para alcançarem a reforma. Se no primeiro caso prevalece o
medo e a insegurança, no segundo predomina a ansiedade e o desejo de descanso.
De qualquer modo, ambas situações são negativas para o país porque têm um
efeito desmoralizador e afetam gravemente a produtividade.
Esta situação torna-se ainda mais
grave quando um dos nossos maiores problemas está relacionado precisamente com
a baixa produtividade. Neste contexto, o ambiente psicológico em
que se trabalha é muito importante. Infelizmente, quer no sector
público quer no privado, o ambiente laboral está cada vez pior. Hoje em dia uma
pessoa com mais de 50 anos, que seja despedida, sabe de antemão que será muito
difícil voltar a conseguir encontrar emprego, pois as empresas valorizam
cada vez menos a experiência profissional e a maturidade, preferindo contratar
jovens com salários mais baixos. Os funcionários públicos, que
tiveram as carreiras congeladas durante largos anos, sem qualquer diferenciação
salarial pelo mérito e esforço pessoal, vão fazendo uma peregrinação
profissional dolorosa pelas instituições públicas, na expectativa de alcançarem
a sua pequena fatia de justiça laboral: a reforma.
Estes dois cenários reais são
profundamente doentios e nocivos. Revelam um país derrotado, de braços caídos,
e sem ânimo. O país não progride economicamente, nem tão-pouco se transforma
num bom lugar para se viver com este ambiente social que só traz consigo
doenças psiquiátricas; isto poderá explicar, pelo menos em parte, por que
motivo o consumo de psicofármacos continua a aumentar entre nós.
Não é bom para a saúde mental de
uma pessoa, após o infortúnio
de ter caído nas malhas do despedimento, ser praticamente impedida, pelo
critério da idade, de voltar a ter um papel útil e produtivo na sociedade. Esta
situação para além de configurar uma humilhação, traz consigo enormes problemas
financeiros e familiares.
Não é bom para a saúde mental de
um país ter um exército de
funcionários públicos vencidos, sem ânimo, desconsiderados e sem conseguirem
produzir mais por falta de condições ou por ausência de estímulos. O ambiente
na função pública é estranho e sombrio. Cresce o número de funcionários
públicos que, numa ruminação obsessiva, procedem à contagem decrescente dos
dias que faltam para a reforma, aguardando o término da sua sentença.
Não é bom para a saúde mental dos
nossos jovens, viverem num
ambiente familiar em que os pais estão deprimidos, ansiosos, angustiados com o
futuro, sem esperança e impotentes pela instabilidade no trabalho. Viver com
pais infelizes e frustrados configura um ambiente corrosivo, podendo conduzir a
um maior insucesso escolar e a um enfraquecimento da célula familiar que é a
base da sociedade.
Se hoje é difícil alguém com mais de 50 anos encontrar uma vaga no
mercado de trabalho, é provável que em breve esta situação se agrave, e passe
também a afectar aqueles que têm mais de 40 anos. Está em curso um processo de desumanização do trabalho, e os limites
para se classificar uma pessoa como “profissionalmente inútil” alargam-se cada
vez mais. Converte-se, deste modo, a
vida humana numa peça industrial descartável, cujo prazo de validade se encurta
sucessivamente, atirando-se as pessoas para o ferro velho, como se se tratassem
de lixo não reciclável.
Lamentavelmente, se nada for feito, este é um problema que mais cedo
ou mais tarde irá atingir quase todos. Esta inevitabilidade confronta-nos não
apenas com os perigos de uma doença mental, mas acima de tudo com a tragédia de
uma doença moral coletiva. Cabe à sociedade oferecer condições, não apenas
físicas, mas também psicológicas, que possam garantir a dignidade do homem e a
sua realização através do trabalho, mesmo depois dos 50 anos.
Médico psiquiatra
II - COMENTÁRIOS:
Filipe F: A
questão é pertinente e interessante.Mas sejamos realistas, porque é que uma
empresa haveria de preferir manter um profissional mais caro, potencialmente
mais problemático (à experiência acrescida também se somam as manhas e técnicas
de evitar as situações difíceis e protelar decisões) e menos apto para
acompanhar os desenvolvimentos técnicos e dos mercados ?
E será
que os mais de cinquenta estão dispostos para baixar a sua remuneração ? Porque
é que o salário não pode descer ? Talvez se isto fosse possível, em muitos
casos, as empresas não descartassem os colaboradores mais velhos.
Antonio Ferreira: Artigo interessante
que subscrevo pois estou nessa faixa de idade, claro que não há políticos
interessados no assunto. Se olharmos para a politica dos últimos anos de
ordenados baixos é óbvio que as empresas querem substituir trabalhadores mais experientes,
pelo tal mais caros, por trabalhadores mais baratos de idade mais baixa e que
por regra são contratados a empresas de trabalho temporário, que não cumprem
qualquer lei laboral e tem carta branca das autoridades.
Os
governos e os partidos em geral querem que as pessoas se reformem cada vez mais
tarde, mas não tomam medidas para criar condições para que isso aconteça.
O tema
do preconceito e da discriminação pela idade parece que não
dá votos!
Luciano Barreira: Emprego depois dos 50
talvez seja difícil agora trabalho não falta, depende apenas do que se saiba ou
queira fazer. Na construção civil, neste momento, raro é o trabalhador com
menos de 50 anos. Os mais novos preferem outras vidas mais airosas.
neocome liberais: Espera lá... Mas esse "processo de desumanização
do trabalho" que está em curso não é aquilo que costuma ser
designado por precarização do trabalho e por flexibilidade ou liberalização
laboral? O despedimento livre e a eliminação de uma série de direitos laborais
não são medidas necessárias para melhorar a competitividade e a saúde da nossa
economia e, consequentemente, da vida humana?
A
"doença moral colectiva" de que o Dr. está a falar não é aquilo que é
conhecido como neoliberalismo? O Dr., por acaso, não tem receio de ser
confundido com o parasita do "Nogueira"?
Ricardo Barnes: O tema da idade para o mercado de trabalho deveria
preocupar a classe política e empresas, onde a mentalidade tacanha prevalece e
Portugal, por muito que tente gritar na Europa para ser ouvido não passa de um
irrelevante país no contexto europeu.
Entristece-me como português o que se passa no mercado
de trabalho, nomeadamente na área do recrutamento e potenciado pelas
empresas de recursos humanos que muitas vezes são opacas e por vezes ardilosas.
O próprio nome da maioria das funções referidas em sites de emprego é em
inglês e por vezes com nomes caricatos (exemplo: Coordenador de Facilities,
Facility Manager), o que só deveria ser admissível se e só se não houvesse
tradução directa. Como exemplo, a comparação de um anúncio de emprego em
Portugal e no Reino Unido, onde neste último, a clareza e detalhe da função
relatada, características da pessoa pretendidas, compensação e demais
benefícios oferecidos nada tem em comum, infelizmente, para prejuízo de todos
aqueles que estão em transição no mercado de trabalho nacional. A questão da
idade para efeitos de emprego em Portugal é um tema preocupante e tanto quanto
sei, caso único porque noutros países por onde passei em trabalho,
privilegia-se a idade que se relaciona com o saber e experiência profissional.
O factor idade no séc. XXI já não é sinónimo de falta
de instrução ou formação e por se preterirem os mais experientes talvez
explique parte da fraca produtividade do país.
Sem me alongar, deixo em baixo um exemplo (não trascrevi) de
nota de rodapé de um anúncio de emprego no Reino Unido, país
onde a diversidade é total e até para efeitos de candidatura a emprego não são aceites elementos identificativos tais
como fotografia, data de nascimento ou morada mas apenas o nome, telefone e
e-mail. Aqui, as pessoas são contratadas pelo saber e potencial valia para a
função e empresa e não pela questão da aparência.
Antonio Costa: artigo muito realista, lamentavelmente temos a
sociedade desamparada, perdida nos futebóis e discursos políticos futebolizados
de esquerda - direita, sem rumo, sem estratégia, sem cuidarmos dos nossos
filhos e do seu futuro...
Ricardo Nuno: E o mais extraordinário
é que não se vê nenhum partido político interessado em pegar nesta bandeira e
introduzir nos seus programas eleitorais uma preocupação séria com o trabalho
depois dos 50 anos (ou 45, ou até mais cedo em muitos casos)! Por exemplo, não
me lembro de ouvir algum dirigente partidário a insurgir-se contra os limites
injustificados de idade que todos os dias podemos encontrar nas ofertas de
emprego que vão sendo publicadas, uma discriminação que até poderia e deveria
merecer proibição a nível constitucional.
III -CITAÇÃO
LITERÁRIA
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 04.11.18
O DEPUTADO
«Era
uma espécie de jesuíta republicano e de cogumelo liberal de natureza duvidosa,
como medram tantos [deputados] sobre a estrumeira popular do sufrágio
universal.»
Guy de Maupassant
in «Bel-Ami», Abril Controljornal,
Edipress, Agosto de 2000, pág. 191 e seg
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