… que a nossa cultura – que
não é tão pobre assim, em manifestações sui
generis, nos vários campos culturais - fosse demonstrada em seriedade e
compostura, cá dentro, uma cultura vivida de facto, resultante de eficiência
nos desempenhos populacionais nos vários níveis de actuação, e isso proviesse
dum real desempenho, segundo políticas que impusessem ordem e regras de
compostura a seguir, mas que as seguissem também os mandatários das tais
políticas. É bom que tenhamos bons desempenhos lá fora, como os que refere Maria
João Avillez na sua crónica de hoje, mas era desejável que aqui
acontecesse isso igualmente e fosse reconhecido, sem mesquinhez nem o costumeiro
nepotismo.
Quem torto nasce, todavia … O
povo foi sempre entre nós, marginalizado, entre outros aspectos da sua pobreza,
no nível cultural, mas também nem clero nem nobreza deram grandes exemplos
formativos, ao longo dos séculos, salvo as excepções da regra, o ensino imposto
pelo primeiro, fechado à modernização cultural dos outros povos, o quadro da Severa pintado por Malhoa, bem expressivo dos bas-fonds em que se flanava a nobreza
parasitária e dengosa, na sua generalidade. Creio que nunca chegaremos a essas alturas
culturais dos outros povos, que se observam hoje, quando confrontamos a
linguagem desses e dos nossos, por exemplo, até mesmo apenas através dos espaços
televisivos, nossos ou alheios, que interessam aos que, como nós, não viajam e limitam
os seus recreios intelectuais a leituras ou a programas televisivos que lhes
vão transmitindo essas informações de paralelo, ou outras mais formativas, que
apetecem, e que, sobretudo o nosso 2º Canal, por vezes também transmite, com
mais seriedade e sem tanto exibicionismo de riso ou afectividade ou intrusão nas
vidas pessoais dos coitadinhos, pese embora a tendência do nosso carisma
psicológico de exuberância afectiva, simpática por tradição.
“Cultura vivida”, lá fora mas
também cá dentro, dando exemplo do que somos capazes, sempre, em termos
positivos, de preferência.
Cultura vivida /premium
OBSERVADOR,
22/11/2018
A primeira nota tem uma matriz estatal mas logo voou para o melhor que
a cultura portuguesa tem graças a Manuela Júdice. A segunda lembra o fulgor
criativo de um grande artista plástico, Jorge Martins
1. A palavra “cultura”está doente.
É mal usada. É abusada. Parece por vezes propriedade privada de alguns, num
circuito rarefeito de capelinhas, tribos, castas, famílias (donos?). Brandida
como um“direito”, uma “obrigação de apoio estatal”, um descarnado “contrato”,
impede o cuidado com que questões que mereceriam uma séria atenção dos poderes
se vão esfarelando ou reduzindo a estéril gritaria. Desde uma
fiscalidade inadequada (e logo injusta por não ter em conta o lado aleatório da
vida artística, as flutuações do mercado, a irregularidade das condições de
trabalho, etc.) à actual Lei do Mecenato
pouco incentivadora, passando pela “atenção” quase só eleitoral que os governos
prestam à “cultura”, usando-a em proveito próprio, o quadro não é feliz:
não serve a uns e envergonha os outros.
2. Não serve desde logo a relevância que a palavra — ou melhor, o seu
significado — deveria representar Palavra
“mágica” chamou-lhe há dias o filósofo José Gil num jornal. Tem
razão, tanto cabe num mesmo sopro: génio, criação, beleza, arte, história,
mistério, sensibilidade, gosto, júbilo. Arrebatamento. Antecipar o prazer
curioso e vibrante de entrar num museu, a surpresa diante de uma obra de
arquitectura ou o deleite de ouvir Bach será muito provavelmente tido como
demasiado prosaico pelos manuseadores oficiais da “cultura” face ao modo como a
definem, exigem ou praticam. Para
poucos será um ganho, ainda menos um dom.
Na linguagem corrente do nosso singular eco-sistema social será um “direito”, ponto final. (E
continuará a ser, enquanto o uso da extraordinária balança que pesa direitos e
deveres, não for retirada do mercado nacional.) A quem ocorre por exemplo
que uma cidadania séria pressupõe “deveres” para com um património cultural
colectivo? Algumas horas de voluntariado num museu, numa biblioteca, ou gastas
a agilizar determinadas tarefas culturais, são gestos ainda vistos como
responsabilidades exclusivas do Estado. Não são, mas era preciso que a tal
balança caísse em desuso de vez (nada o indica).
3. O tema ocorreu-me por recentemente, num encadeado de felizes acasos a
que a minha profissão me conduziu, ter testemunhado exemplos de cultura (sem
aspas) cuja relevância nacional pode envaidecer o país. E mais: não passaram pela peneira dos
“direitos”, não provêm de “capelas”, não foram “exigidos”, dispensaram o ruído,
não conheceram a controvérsia ociosa. Aconteceram simplesmente, mas o seu
brilho merece notícia. A primeira delas, assinada no feminino, tem uma
matriz estatal mas muito depressa voou mais alto. Voou para o melhor que a
cultura portuguesa tem e que a cultura portuguesa dá, mercê do saber fazer de
uma mulher voluntariosa; a segunda notícia relembra o fulgor criativo de um
grande, grande, artista plástico. Se ouvirem falar por estes dias de Manuela Júdice ou de Jorge Martins, lembrar-se-ão destas
notas.
4. Manuela Júdice foi
convidada há cerca de um ano pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros e pelo
então titular da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, para comissariar uma
embaixada cultural portuguesa à Feira do Livro de Guadalajara, onde Portugal é
este ano o país convidado de honra. Feiras há muitas, girando como um
carrossel por países e continentes mas esta
— a segunda maior do mundo e a maior da América Latina — tem pergaminhos e reputação. Merece a
“montra” que o país lá envia. Mas, nesta história, atrevo-me a dizer que se
deve mais a Manuela Júdice que ao Estado, a tutelas ou poderes: deve-se-lhe o
talento e o critério das boas escolhas, a capacidade de decisão, o trabalho e o
pulso (e algum mau feitio, felizmente) no modo com interagiu com a natureza
civilizacional e cultural dos dois países. Manuela planeou, organizou e
(a natureza feminina no seu melhor) executou dentro do prazo e abaixo do
orçamento. Vai pôr o México a ouvir
Portugal, levando consigo uma representação portuguesa de considerável
qualidade académica, científica, literária, artística, musical. Cultura vivida.
Feiras são feiras, dir-me-ão. Luzes efémeras sobre montras avulsas, mas se
algumas sementes portuguesas vierem a brotar em solo mexicano (a defesa da
língua portuguesa, por exemplo). Manuela terá alguma coisa a ver com isso. Não
é apostar pouco.
5. O pintor e as suas circunstâncias têm por vezes arredado, do comum
dos mortais, o espantoso desenhador que Jorge
Martins também é.
Uma dupla qualidade, tela e papel, que tratando-se dele, exibe um grau
superlativo de talento. Algo que em absoluto nos incapacita de escolher entre
dois sopros de inspiração (e ainda bem que nunca conheceremos a obrigação de
tão desnecessário exercício).
Mas agora foi o “desenhador” que voltou. Está aqui mesmo ao lado, em
Badajoz, no Museu Extremeño Iberoamericano de Arte Contemporânea (MEIAC), onde
portugueses e espanhóis voltaram a descobrir que “o desenho é um dos mais poderosos instrumentos de análise do real”,
Jorge Martins dixit. O artista não se limitou a ir às gavetas ou a
deambular pelo atelier à procura de trabalhos: desenhou, redesenhou,
procurou, reviu a matéria, revendo-se a si mesmo, desenhador/pintor. Levou a
sério o desafio (e eis o que é um dos seus mais esclarecedores ex-libris, fazer
tudo a sério, obra e vida, como uma espécie de assinatura.)
“Quando desenho é como se
estivesse a fazer poesia e matemática ao mesmo tempo”, diz ele, desenhando
também certezas intensas sobre si mesmo: “tal como Hamlet numa casca de noz,
com um lápis e um papel posso sentir-me o rei dos espaços infinitos”
Não foram apenas os “espaços infinitos” que lhe sorriram, os deuses
também, ao pôr-lhe no caminho o jovem e credenciado Oscar Alonso Molina, escolhido pelo MEIAC para curador da exposição.
Oscar é de Madrid, foi professor de Estética, agora só faz curadoria — “adoro
ocupar-me da arte dos outros”.
Um extasiado curador: “Há tantos mundos no desenho de Martins
que parece surpreendente que se concentrem num único autor: há desenhos que
quase resultam da dança e da performance, outros que provêm de encontros cultos
com a arte do passado”, dizia-me ele quase num sussuro, observando o
público do museu. Uma mancha de gente que parecia levitar de sala em sala,
olhando do fundo de si mesma, uma e outra vez, os desenhos ali expostos. Oscar
Alonso reviu-os por palavras suas: “A
sua combinação tão fresca, tão desinibida de figuração/abstração,
geometria/gesto, lirismo/expressão, por exemplo, anuncia desde há muitas
décadas o que as jovens gerações assumem hoje com total naturalidade.”
A verdade é que nunca é facilmente explicável o fulgurante impacto
visual do traço de Jorge Martins sobre o papel. Quando se entra na amplidão
branca das três salas do Museu hesita-se entre várias (e subjectivíssimas)
“impressões” e eis o que só os que são capazes de interpelar, são também
capazes de provocar: essa valsa lenta entre o puro espanto, a constatação de
um sopro quase divino sobre a mão do desenhador, o encantatório traço
cinza-negro dessa mão. Outros saberão melhor que eu “interpretar” o ponto de
chegada da mão ao nosso presente estético e ao que ela dá a ver. Por mim,
basta-me a devoção que sempre tive activa face a Jorge Martins.
“O desenho de Jorge Martins
ocupa-se de questões transcendentes sem nunca recorrer ao pedantismo. Tudo
parece muito ‘posto por ordem’, como se as coisas tivessem chegada a esse
estado sem sombra de esforço. Mas quando o espectador olha atentamente as
obras, apercebe-se que estão cheias de sabedoria plástica, de ‘truques’ leves,
de um inacreditável sentido da composição” diz ainda Oscar Alonso, correndo sobre a sua própria rendição a um
desenhador que não conhecia.
Voltado para trás, à saída da exposição, o curador, olhando
distraidamente a plateia de gente com quem se ia cruzando, oferece-me a chave
do que acabáramos de ver: “acho que a
luz, o tempo e a linguagem são os grandes assuntos do desenho de Jorge Martins.
Mas sabe, tudo isto que lhe tenho vindo a dizer me parece secundário… O que
mais me deslumbrou durante estes meses de preparação da exposição de Badajoz
foi a enorme vitalidade do Jorge, a sua qualidade humana. Tenho-o já como um
amigo mas talvez, quem sabe, estarei delirando… El dibujo me ha
emborrachado”?
6. Felizes os acasos profissionais que me conduziram a Cultura tão
vivida.
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