quarta-feira, 21 de novembro de 2018

O que faz falta é animar a malta

Zeca Afonso é que sabia, e estava em todas. Não sei se apreciava as touradas com os touros propriamente ditos, viveria ele mais centrado nos toureios entre os homens e em favorecê-los com as canções do seu próprio combate, sensível que era antes à dor dos heróis humanos da sua fábula magoada, que fez época e ainda há hoje muito quem faça finca-pé nesses, para todos os efeitos, um apoio ascensional no poder democrático vigente. Pacheco Pereira, homem dos mesmos circos ideológicos em que lidou o nosso Zeca, não apoia as touradas propriamente ditas, dono que é de um reportório pessoal de grande estilo literário e ético. Eu também não apoio, por mariquice que seja, mas não deixo de admirar as poses elegantes dos toureiros e de recordar os que foram moda nos meus tempos juvenis, Manuel dos Santos e Diamantino Viseu, tão celebrados. Por isso mesmo, mais uma vez vem à baila o assunto, torneado pelo pensamento elegante de um humanista, aplaudido ou não pelos seus comentadores. E o nosso Zeca por efeitos de saudosismo e harmonia cantante, de que andamos necessitados nesta nossa rotura de vias - rodoviárias, ferroviárias - e de vidas que se escoam no pesadelo… Animemos a malta:
O Que Faz Falta
Quando a corja topa da janela
O que faz falta
Quando o pão que comes sabe a merda
O que faz falta
O que faz falta é avisar a malta
O que faz falta
O que faz falta é avisar a malta
O que faz falta
Quando nunca a noite foi dormida
O que faz falta
Quando a raiva nunca foi vencida
O que faz falta
O que faz falta é animar a malta
O que faz falta
O que faz falta é acordar a malta
O que faz falta
Quando nunca a infância teve infância
O que faz falta
Quando sabes que vai haver dança
O que faz falta
O que faz falta é animar a malta
O que faz falta
O que faz falta é empurrar a malta
O que faz falta
Quando um cão te morde uma canela
O que faz falta
Quando a esquina há sempre uma cabeça
O que faz falta
O que faz falta é animar a malta
O que faz falta
O que faz falta é empurrar a malta
O que faz falta
Quando um homem dorme na valeta
O que faz falta
Quando dizem que isto é tudo treta
O que faz falta
O que faz falta é agitar a malta
O que faz falta
O que faz falta é libertar a malta
O que faz falta
Se o patrão não vai com duas loas
O que faz falta
Se o fascista conspira na sombra
O que faz falta
O que faz falta é avisar a malta
O que faz falta
O que faz falta é dar poder à malta
O que faz falta
OPINIÃO
Os que “amam” muito os touros e os torturam e matam
Acabar com as touradas, com a tortura dos touros para satisfação sádica das massas, é um passo no bom sentido.
JOSÉ PACHECO PEREIRA               PÚBLICO,  17 de Novembro de 2018
A ideia de que ser a favor ou contra as touradas é uma questão de liberdade de expressão é um absurdo. Ser a favor ou contra as touradas é uma questão de civilização e, por muito que a palavra esteja gasta, nós sabemos muito bem o que é. É o mundo frágil que nos faz viver melhor, mais tempo, com menos violência do que no passado. É completamente frágil e contraditório, muitas vezes anda para trás e poucas vezes anda para a frente, mas representa o melhor da vida possível, feito por um olhar humanista sobre as coisas, que inclui condenar, limitar, punir a violência.
É o mundo em que há direitos humanos, em que os homens e as mulheres são iguais, é o mundo em que as mulheres e as crianças são protegidas da violência doméstica, é o mundo em que o direito de viver de forma livre o sexo é garantido, é o mundo em que a tortura, a pena de morte, o genocídio são condenados, é o mundo em que há liberdade religiosa, de opinião, política, etc., etc. Sim, é verdade que é também o mundo em que tudo isto não existe, mas escolham. Pode não ser o mundo que temos, mas é o mundo que desejamos.
Os animais não podem ter “direitos” equiparados aos direitos humanos, mas faz parte de uma sociedade humana que valorize a ética e combata todas as formas de violência olhar para os animais com um sentimento de especial proximidade que está para além da domesticidade. Os movimentos a favor dos animais, ou melhor, os movimentos contra a crueldade com os animais, fazem parte da tradição humanista dos séculos XIX e XX. A ideia central era que o modo como tratamos os animais era um sinal de como tratávamos os homens, a crueldade contra os animais era um sinal de uma violência institucionalizada que não se limitava aos animais, mas se estendia aos homens, mulheres e crianças.
Não me estou a referir a nenhuma das variantes radicais modernas dos direitos dos animais que fazem parte da moda dos nossos dias. Não é isso, não tem que ver com aviários, nem com matadouros, nem com as mil e uma formas de industrialização da produção de alimentos, algumas das quais ganhavam em ser menos cruéis. Nem com a caça. A caça tem um valor económico, e tem um papel no controlo das espécies, e é cada vez mais moldada pela lei de modo a que o seu carácter lúdico seja subordinado a estas necessidades.
Tem que ver com as touradas. Podem dar as voltas que quiserem, mas as touradas são a exibição pública da tortura de um animal, que é esfaqueado para enfraquecer e depois, no caso das touradas de morte — que todos os defensores das touradas desejavam poder ter sem limitações —, ser morto. As touradas vivem do sangue, da dilaceração da carne, do cansaço até ao limite e da morte. Podem ter todos os rituais possíveis, ter toda a “arte” de saracotear à volta de um bicho, mas as touradas não são uma arte, são a exibição circense de um combate desigual entre homens e animais, cuja essência é a sua tortura para gáudio colectivo.
Não é um combate de iguais. Na verdade, os combates de cães e de galos — proibidos não se sabe porquê à luz da permissão das touradas — são muito mais um combate entre iguais do que o homem de faca e o touro sem armas a não ser os chifres, que muitas vezes são embolados. Mas é o sangue e a morte que fazem o espectáculo e, ao serem um espectáculo, são um sinal de barbárie.
O argumento da tradição também não é argumento. Se há coisas que a tradição encobre é um vasto conjunto de práticas que felizmente hoje são consideradas inaceitáveis, desde a violência doméstica à discriminação dos homossexuais, à excisão feminina, à pena de morte, à legitimação da tortura. Se aceitamos que a “tradição” por si só legitima a violência e crueldade, então podemos voltar ao “cá em casa manda ela e quem manda nela sou eu” e toca de lhe bater.
Os argumentos dos defensores das touradas são a versão portuguesa dos argumentos da National Rifle Association nos EUA, que também se identifica como uma “associação de direitos civise usa o argumento da tradição para justificar uma sociedade banhada de armas e em que a violência dos massacres é sempre culpa de outra coisa que não sejam as armas.
As histórias ridículas de como os defensores das touradas “amam os touros” (sic), de como prezam a valentia dos animais, de como o “touro bravo” enobrece os campos do Ribatejo, para depois ser trazido à arena de tortura e morte como se esse fosse o seu destino teleológico, a cultura machista da “coragem” perante os mais fracos (o touro é o mais fraco dentro da praça), devem pouco a pouco envelhecer no passado. É isso mesmo que chamamos civilização. O mundo em que vivemos é duro, desigual, injusto, violento. Quem saiba história sabe que não há maneira de o tornar limpinho, higiénico, pacífico, nem em séculos, quanto mais numa geração. Mas acabar com as touradas, com a tortura dos touros para satisfação sádica das massas, é um passo no bom sentido. Porque senão vivemos na pior das hipocrisias em que matar ou tratar mal um cão e um gato pode levar à prisão — e bem —, mas em que no meio de cidades e vilas de uma parte do país podemos aplaudir a tortura, o sangue e a morte.
COMENTÁRIOS:
Miguel João Queirós, Porto: Nunca entendi porque é que sem tourada não há touro bravo. Então os bichos (toiro e toira) não andam lá pela lezíria, cheios de braveza, como Deus manda? Ou só ficam bravos na arena, depois de dar de caras com a malta da Prótoiro?
Ricardo Lemos: Como diria Marguerite Yourcenar, cito, "o homem mais opaco também tem frestas". O Dr. Pacheco Pereira argumenta mediocremente, neste caso, (noutros também). Vale-se da sua aura de intelectual para repetir as mesmas patetices urbanas dos que têm um cão preso durante anos num apartamento...é pena. Deveria referir (porque o sabe) que aquilo que critica está muito aquém dos crimes cometidos, por exemplo, pelas práticas políticas redentoras que defendeu durante uma parte da sua vida com alguns milhões de seres humanos chacinados e sobre a qual ( parte da sua vida) nunca lhe vimos ou ouvimos um acto de contrição tão veemente quanto a crítica iluminada das "touradas" agora feita… Coisas da vida… Havia que escrever algo.
Joao Silva Dias. 19.11.2018 Deixem-se de hipocrisias, o que acham que acontece num matadouro? Quantos milhares de animais são abatidos todos os dias? Não há paciência para estes pseudo intelectuais ofendidos de moralzinha de politicamente correcto. E quem vai preservar uma especie como o Touro Bravo???!!!! Vao ser os do BE da Lapa? Vao ter um no quintal? E quem vai dar emprego aos que sobrevivem da Industria da Tourada? Santa paciencia para Portugal.
Nuno Marco19/11/ 2018: Com os touros é assim: há os que amam os touros e os matam e os que amam tanto os touros que querem que eles desapareçam para não serem mortos. O sofrimento e a morte fazem parte da relação dos animais entre si e dos homens com os animais. O leão come a gazela e só assim pode existir. O homem comeu a gazela e só assim pôde sair de África porque lhe deu as proteínas necessárias para a migração.
Temp Uno, lisboa 19.11.2018 "Sofrimento animal"? Vi muitos filmes e concertos mas nunca me tinha interessado nem visto tourada até que, há meses, fui ver duas: por causa da polémica recente sobre touradas, queria saber do que falavam. Do que vi, não acredito na tese do sofrimento animal. Logo que largado, o touro passa a vida a correr atrás dos cavalos. E só recebe farpas se investir contra o cavalo. Se não investir, não é farpado. Chega a ter meia-dúzia de farpas espetadas mas só quando o cavalo finta para escapar ao ataque do touro. A pele fica avermelhada mas sangue não sai em jorro. No fim, chega a ser difícil faze-lo sair e têm de lá meter vacas para o convencer. Portanto, embora arena não seja lezíria, toureio também não é tortura. Violência na arena não é pior do que em matadouros. Diferença é estar visível.
Gustavo Garcia, Copy - Paste de comentários? Triste... Ainda por cima para repetir falsidades. Um touro só investe se provocado. E não é raro o touro ter que ser arrastado para fora da arena, de exausto e meio morto que está. Se as que foi ver foram assim, são a excepção, não a regra.
Gustavo Garcia,  19.11.2018: Excelente texto. Muito bem escrito e muito detalhadinho para que se perceba bem. Mas é evidente que nem assim, explicado devagarinho e de forma simples, os defensores das touradas entendem. Enfim... Penso que será um combate ganho daqui por uns anos. Cada vez são menos os apoiantes das touradas e espera-se que se extingam gradualmente, fruto da evolução e civilização, lá está. Parabéns, Pacheco Pereira.
José Pedro Prosperi, 19.11.2018: Matar um animal para promover emoções primárias de satisfação a um grupo de pessoas é uma actividade vil. É irrelevante se quem assiste ao espectáculo é um espírito néscio, mediano ou intelectual, bruto ou educado, pobre ou rico e, para estar em linha com a actualidade, se é homem ou mulher, homossexual, heterossexual, bissexual, lésbica, assexual ou pansexual. Trata-se tão somente de uma questão de consciência e não de civilização, cultura ou sequer de liberdade de expressão,... ou se a tem ou não se a tem. Se não se a tem, não se alcança o erro em que incorre. O argumento dos insectos e do frango, comummente empregue pelos fãs tauromáquicos, é rídiculo e enfermo no propósito. Os insectos matam-se, esmagam-se, exterminam-se ou o que for, não para gáudio mas para evitar que piquem e progaguem toda a sorte de doenças. O frango integra os hábitos alimentares humanos. Se é morto de uma forma violenta, tal obedece ao procedimento em moldes industriais concebido e não a um propósito de agradar a quem executa. Em nenhum dos casos há comparação. Não se trata da dor infligida ao animal, no caso vertente touro, mas sim da dor para satisfação de quem assiste. É esta a linha que separa cada situação. Sensações de bem-estar emocional não podem encontrar correspondência no sofrimento de animais sob pena de quem assim sentir ser uma enorme besta. As coisas são como são e estão feitas para ser assim. Há quem entenda e há quem não alcance. Não é uma dificuldade que se supere com aprendizagem, é um defeito no ADN.
fat-ferreira, 19.11.2018: E se o touro não sofresse? Já concordaria com as touradas?
José Pedro Prosperi, 19.11.2018: O touro tem que sofrer para haver espectáculo, doutra forma não se cativa os espectadores. Dito isto, se o touro não sofresse, ninguém quereria ver e a questão que coloca nem veria a luz do dia. Quanto a concordar...considera que me dá prazer assistir à morte dum animal mesmo que este não sofra? Pergunto antes...que interesse mórbido me poderia mover para assistir à morte dum animal?
fat-ferreira, 19.11.2018 Em Portugal não se matam touros nas touradas.
José Pedro Prosperi, 19.11.2018: É, nas touradas em Portugal só se obtém prazer parcial com o flagelar da carne do touro.
fat-ferreira, 19.11.2018: Acabe-se com as bandarilhas e continue-se com as pegas, sem fazer sofrer o animal. Qual seria o problema? O radicalismo das posições dos anti-touradas é que é preocupante.
José Pedro Prosperi: Em minha defesa, quanto ao radicalismo de posições, digo que pouco me importa se se realizam espectáculos tauromáquicos ou não. Quem gostar de assistir que lá vá. Não me compete impedir tal, nem em tal tenciono participar. Apenas manifestei opinião acerca da acção e dos intervenientes. Por outras palavras, cada um viva com a sua escolha.
albergaselizete, 18.11.2018: Concordo com JPP. A civilização é um percurso evolutivo que terá de passar pela paz e virtude. Quando nos elevamos mentalmente a civilização vai subindo para outros patamares.
Célio Carreira, 18.11.2018: Manuel Alegre diz que a tourada é uma questão de liberdade, não de civilização, e acha que a ministra da Cultura não deve definir o que é ou não civilização. Desta vez o poeta da Trova do Vento que Passa não tem razão, como não a teve noutras. Para ele, se umas poucas pessoas gostarem de uma actividade, a mesma constitui cultura. Descontando a dureza da comparação, o facto de algumas pessoas (certamente em maior número do que as que apreciam touradas) gostarem de abusar de crianças não pode por si só pressupor cultura. O conceito de tradição também é discutível, até porque existiram algumas no passado que foram entretanto extintas, como é o caso das lutas entre animais. O circo romano também teve muitos admiradores e era uma tradição naqueles tempos, mas hoje seria considerado bárbaro-

Faltou uma palavra para Pacheco Pereira, autor do artigo que estamos a comentar. Não apoiando incondicionalmente todas as suas posições (assim como não apoio incondicionalmente as posições de ninguém), desta vez estou de acordo com ele, porque vai ao foco da questão, relativizando questões similares por as mesmas não assumirem a importância nem a profundidade daquela que estamos a comentar. Digamos que preenchem alguma da distância que vai das touradas à delicada questão do "abate" de moscas, melgas e baratas que um ilustre comentarista aqui trouxe.

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