Zeca Afonso é que sabia, e estava em todas. Não sei se apreciava as
touradas com os touros propriamente ditos, viveria ele mais centrado nos
toureios entre os homens e em favorecê-los com as canções do seu próprio
combate, sensível que era antes à dor dos heróis humanos da sua fábula magoada,
que fez época e ainda há hoje muito quem faça finca-pé nesses, para todos os
efeitos, um apoio ascensional no poder democrático vigente. Pacheco Pereira, homem dos mesmos
circos ideológicos em que lidou o nosso Zeca, não apoia as touradas propriamente
ditas, dono que é de um reportório pessoal de grande estilo literário e ético. Eu
também não apoio, por mariquice que seja, mas não deixo de admirar as poses
elegantes dos toureiros e de recordar os que foram moda nos meus tempos
juvenis, Manuel dos Santos e Diamantino Viseu, tão celebrados. Por isso mesmo, mais uma vez vem à
baila o assunto, torneado pelo pensamento elegante de um humanista, aplaudido
ou não pelos seus comentadores. E o nosso Zeca por efeitos de saudosismo e
harmonia cantante, de que andamos necessitados nesta nossa rotura de vias -
rodoviárias, ferroviárias - e de vidas que se escoam no pesadelo… Animemos a
malta:
O Que Faz Falta
Quando a
corja topa da janela
O que faz falta
Quando o pão que comes sabe a merda
O que faz falta
O que faz falta é avisar a malta
O que faz falta
O que faz falta é avisar a malta
O que faz falta
O que faz falta
Quando o pão que comes sabe a merda
O que faz falta
O que faz falta é avisar a malta
O que faz falta
O que faz falta é avisar a malta
O que faz falta
Quando nunca
a noite foi dormida
O que faz falta
Quando a raiva nunca foi vencida
O que faz falta
O que faz falta
Quando a raiva nunca foi vencida
O que faz falta
O que faz
falta é animar a malta
O que faz falta
O que faz falta é acordar a malta
O que faz falta
O que faz falta
O que faz falta é acordar a malta
O que faz falta
Quando nunca
a infância teve infância
O que faz falta
Quando sabes que vai haver dança
O que faz falta
O que faz falta é animar a malta
O que faz falta
O que faz falta é empurrar a malta
O que faz falta
O que faz falta
Quando sabes que vai haver dança
O que faz falta
O que faz falta é animar a malta
O que faz falta
O que faz falta é empurrar a malta
O que faz falta
Quando um cão
te morde uma canela
O que faz falta
Quando a esquina há sempre uma cabeça
O que faz falta
O que faz falta é animar a malta
O que faz falta
O que faz falta é empurrar a malta
O que faz falta
O que faz falta
Quando a esquina há sempre uma cabeça
O que faz falta
O que faz falta é animar a malta
O que faz falta
O que faz falta é empurrar a malta
O que faz falta
Quando um
homem dorme na valeta
O que faz falta
Quando dizem que isto é tudo treta
O que faz falta
O que faz falta é agitar a malta
O que faz falta
O que faz falta é libertar a malta
O que faz falta
O que faz falta
Quando dizem que isto é tudo treta
O que faz falta
O que faz falta é agitar a malta
O que faz falta
O que faz falta é libertar a malta
O que faz falta
Se o patrão
não vai com duas loas
O que faz falta
Se o fascista conspira na sombra
O que faz falta
O que faz falta é avisar a malta
O que faz falta
O que faz falta é dar poder à malta
O que faz falta
O que faz falta
Se o fascista conspira na sombra
O que faz falta
O que faz falta é avisar a malta
O que faz falta
O que faz falta é dar poder à malta
O que faz falta
OPINIÃO
Os que “amam” muito os touros e os torturam e matam
Acabar com as touradas, com a tortura
dos touros para satisfação sádica das massas, é um passo no bom sentido.
JOSÉ PACHECO PEREIRA PÚBLICO, 17 de Novembro de 2018
A ideia de que ser a favor ou contra
as touradas é uma questão de liberdade
de expressão é um absurdo. Ser a favor ou contra as touradas é uma questão de civilização e, por muito que a palavra esteja gasta,
nós sabemos muito bem o que é. É o mundo frágil que nos faz viver melhor, mais
tempo, com menos violência do que no passado. É completamente frágil e
contraditório, muitas vezes anda para trás e poucas vezes anda para a frente,
mas representa o melhor da vida possível, feito por um olhar humanista sobre as
coisas, que inclui condenar, limitar, punir a violência.
É o mundo em que há direitos humanos, em que os homens e as mulheres são iguais, é o
mundo em que as mulheres e as crianças são protegidas da violência doméstica, é
o mundo em que o direito de viver de forma livre o sexo é garantido, é o mundo
em que a tortura, a pena de morte, o genocídio são condenados, é o mundo em que
há liberdade religiosa, de opinião, política, etc., etc. Sim, é verdade que
é também o mundo em que tudo isto não existe, mas escolham. Pode não ser o
mundo que temos, mas é o mundo que desejamos.
Os
animais não podem ter “direitos” equiparados aos direitos humanos, mas faz
parte de uma sociedade humana que valorize a ética e combata todas
as formas de violência olhar para os animais com
um sentimento de especial proximidade que está para além da domesticidade. Os movimentos a favor dos animais, ou
melhor, os movimentos contra a crueldade com os animais, fazem parte da
tradição humanista dos séculos XIX e XX. A ideia central era que o modo
como tratamos os animais era um sinal de como tratávamos os homens, a crueldade
contra os animais era um sinal de uma violência institucionalizada que não se
limitava aos animais, mas se estendia aos homens, mulheres e crianças.
Não me estou a referir a nenhuma das
variantes radicais modernas dos direitos dos animais que fazem parte da moda
dos nossos dias. Não é isso, não tem que
ver com aviários, nem com matadouros, nem com as mil e uma formas de
industrialização da produção de alimentos, algumas das quais ganhavam em ser
menos cruéis. Nem com a caça. A caça tem um valor económico, e
tem um papel no controlo das espécies, e é cada vez mais moldada pela lei de
modo a que o seu carácter lúdico seja subordinado a estas necessidades.
Tem
que ver com as touradas. Podem dar as voltas que quiserem, mas as touradas são a exibição pública da
tortura de um animal, que é esfaqueado para enfraquecer e depois, no caso das
touradas de morte — que todos os defensores das touradas desejavam poder ter
sem limitações —, ser morto. As touradas vivem do sangue, da dilaceração da
carne, do cansaço até ao limite e da morte. Podem ter todos os rituais
possíveis, ter toda a “arte” de saracotear à volta de um bicho, mas as touradas
não são uma arte, são a exibição circense de um combate desigual entre homens e
animais, cuja essência é a sua tortura para gáudio colectivo.
Não é um combate de iguais. Na
verdade, os combates de cães e de galos — proibidos não se sabe porquê à
luz da permissão das touradas — são muito mais um combate entre iguais do
que o homem de faca e o touro sem armas a não ser os chifres, que muitas vezes
são embolados. Mas é o sangue e a morte que fazem o espectáculo e, ao serem um
espectáculo, são um sinal de barbárie.
O
argumento da tradição também não é argumento. Se há coisas que a tradição
encobre é um vasto conjunto de práticas que felizmente hoje são consideradas
inaceitáveis, desde a violência doméstica à discriminação dos homossexuais, à
excisão feminina, à pena de morte, à legitimação da tortura. Se aceitamos que a
“tradição” por si só legitima a violência e crueldade, então podemos voltar ao
“cá em casa manda ela e quem manda nela sou eu” e toca de lhe bater.
Os argumentos dos defensores das
touradas são a versão portuguesa dos argumentos da National
Rifle Association nos EUA, que também se identifica como uma
“associação de direitos civis” e usa o argumento da tradição para justificar
uma sociedade banhada de armas e em que a violência dos massacres é sempre
culpa de outra coisa que não sejam as armas.
As histórias ridículas de como os defensores das touradas “amam os touros”
(sic), de como prezam a valentia dos animais, de como o “touro bravo” enobrece
os campos do Ribatejo, para depois ser trazido à arena de tortura e morte como
se esse fosse o seu destino teleológico, a cultura machista da “coragem”
perante os mais fracos (o touro é o mais fraco dentro da praça), devem pouco a
pouco envelhecer no passado. É isso mesmo que chamamos civilização. O
mundo em que vivemos é duro, desigual, injusto, violento. Quem saiba história
sabe que não há maneira de o tornar limpinho, higiénico, pacífico, nem em
séculos, quanto mais numa geração. Mas acabar com as touradas, com a tortura
dos touros para satisfação sádica das massas, é um passo no bom sentido. Porque
senão vivemos na pior das hipocrisias em que matar ou tratar mal um cão e um
gato pode levar à prisão — e bem —, mas em que no meio de cidades e vilas
de uma parte do país podemos aplaudir a tortura, o sangue e a morte.
COMENTÁRIOS:
Miguel João Queirós, Porto: Nunca entendi porque é que sem tourada não há touro bravo. Então os
bichos (toiro e toira) não andam lá pela lezíria, cheios de braveza, como Deus
manda? Ou só ficam bravos na arena, depois de dar de caras com a malta da
Prótoiro?
Ricardo Lemos: Como diria Marguerite
Yourcenar, cito, "o homem mais
opaco também tem frestas". O Dr. Pacheco Pereira argumenta
mediocremente, neste caso, (noutros também). Vale-se da sua aura de
intelectual para repetir as mesmas patetices urbanas dos que têm um cão preso
durante anos num apartamento...é pena. Deveria referir (porque o sabe) que
aquilo que critica está muito aquém dos crimes cometidos, por exemplo, pelas
práticas políticas redentoras que defendeu durante uma parte da sua vida com
alguns milhões de seres humanos chacinados e sobre a qual ( parte da sua vida)
nunca lhe vimos ou ouvimos um acto de contrição tão veemente quanto a crítica
iluminada das "touradas" agora feita… Coisas da vida… Havia que
escrever algo.
Joao Silva Dias. 19.11.2018 Deixem-se de
hipocrisias, o que acham que acontece num matadouro? Quantos milhares de
animais são abatidos todos os dias? Não há paciência para estes pseudo
intelectuais ofendidos de moralzinha de politicamente correcto. E quem vai
preservar uma especie como o Touro Bravo???!!!! Vao ser os do BE da Lapa? Vao
ter um no quintal? E quem vai dar emprego aos que sobrevivem da Industria da
Tourada? Santa paciencia para Portugal.
Nuno Marco19/11/ 2018: Com os touros é
assim: há os que amam os touros e os matam e os que amam tanto os touros que
querem que eles desapareçam para não serem mortos. O sofrimento e a morte fazem
parte da relação dos animais entre si e dos homens com os animais. O leão come
a gazela e só assim pode existir. O homem comeu a gazela e só assim pôde sair
de África porque lhe deu as proteínas necessárias para a migração.
Temp Uno, lisboa 19.11.2018
"Sofrimento animal"? Vi
muitos filmes e concertos mas nunca me tinha interessado nem visto tourada até
que, há meses, fui ver duas: por causa da polémica recente sobre touradas,
queria saber do que falavam. Do que vi,
não acredito na tese do sofrimento animal. Logo que largado, o touro passa a
vida a correr atrás dos cavalos. E só recebe farpas se investir contra o
cavalo. Se não investir, não é farpado. Chega a ter meia-dúzia de farpas
espetadas mas só quando o cavalo finta para escapar ao ataque do touro. A pele
fica avermelhada mas sangue não sai em jorro. No fim, chega a ser difícil
faze-lo sair e têm de lá meter vacas para o convencer. Portanto, embora arena
não seja lezíria, toureio também não é tortura. Violência na arena não é pior
do que em matadouros. Diferença é estar visível.
Gustavo
Garcia, Copy - Paste de comentários? Triste... Ainda por cima para repetir
falsidades. Um touro só investe se provocado. E não é raro o touro ter que ser
arrastado para fora da arena, de exausto e meio morto que está. Se as que foi
ver foram assim, são a excepção, não a regra.
Gustavo Garcia, 19.11.2018: Excelente
texto. Muito bem escrito e muito detalhadinho para que se perceba bem. Mas é
evidente que nem assim, explicado devagarinho e de forma simples, os defensores
das touradas entendem. Enfim... Penso que será um combate ganho daqui por uns
anos. Cada vez são menos os apoiantes das touradas e espera-se que se extingam
gradualmente, fruto da evolução e civilização, lá está. Parabéns, Pacheco
Pereira.
José Pedro Prosperi, 19.11.2018: Matar um animal para promover emoções primárias de satisfação a um
grupo de pessoas é uma actividade vil. É irrelevante se quem assiste ao espectáculo é um espírito néscio,
mediano ou intelectual, bruto ou educado, pobre ou rico e, para estar em linha
com a actualidade, se é homem ou mulher, homossexual, heterossexual, bissexual,
lésbica, assexual ou pansexual. Trata-se tão somente de uma questão de
consciência e não de civilização, cultura ou sequer de liberdade de
expressão,... ou se a tem ou não se a tem. Se não se a tem, não se
alcança o erro em que incorre. O argumento dos insectos e do frango,
comummente empregue pelos fãs tauromáquicos, é rídiculo e enfermo no propósito.
Os insectos matam-se, esmagam-se,
exterminam-se ou o que for, não para gáudio mas para evitar que piquem e
progaguem toda a sorte de doenças. O frango integra os hábitos alimentares
humanos. Se é morto de uma forma violenta, tal obedece ao procedimento em
moldes industriais concebido e não a um propósito de agradar a quem executa.
Em nenhum dos casos há comparação. Não se trata da dor infligida ao animal,
no caso vertente touro, mas sim da dor para satisfação de quem assiste. É
esta a linha que separa cada situação. Sensações de bem-estar emocional não
podem encontrar correspondência no sofrimento de animais sob pena de quem assim
sentir ser uma enorme besta. As coisas são como são e estão feitas para ser
assim. Há quem entenda e há quem não alcance. Não é uma dificuldade que se
supere com aprendizagem, é um defeito no ADN.
fat-ferreira, 19.11.2018: E se o touro
não sofresse? Já concordaria com as touradas?
José Pedro Prosperi, 19.11.2018: O touro tem que sofrer para haver espectáculo, doutra forma não se
cativa os espectadores. Dito isto, se o touro não sofresse, ninguém quereria
ver e a questão que coloca nem veria a luz do dia. Quanto a
concordar...considera que me dá prazer assistir à morte dum animal mesmo que
este não sofra? Pergunto antes...que interesse mórbido me poderia mover para
assistir à morte dum animal?
fat-ferreira, 19.11.2018 Em Portugal não
se matam touros nas touradas.
José Pedro Prosperi, 19.11.2018: É, nas touradas em Portugal só se obtém prazer parcial com o flagelar
da carne do touro.
fat-ferreira,
19.11.2018: Acabe-se com as
bandarilhas e continue-se com as pegas, sem fazer sofrer o animal. Qual seria o
problema? O radicalismo das posições dos anti-touradas é que é preocupante.
José Pedro Prosperi: Em minha defesa, quanto ao radicalismo de
posições, digo que pouco me importa se se realizam espectáculos tauromáquicos
ou não. Quem gostar de assistir que lá vá. Não me compete impedir tal, nem em
tal tenciono participar. Apenas manifestei opinião acerca da acção e dos
intervenientes. Por outras palavras, cada um viva com a sua escolha.
albergaselizete, 18.11.2018: Concordo com
JPP. A civilização é um percurso evolutivo que terá de passar pela paz e
virtude. Quando nos elevamos mentalmente a civilização vai subindo para outros
patamares.
Célio Carreira, 18.11.2018: Manuel
Alegre diz que a tourada é uma questão de liberdade, não de civilização, e acha
que a ministra da Cultura não deve definir o que é ou não civilização. Desta
vez o poeta da Trova do Vento que Passa não tem razão, como não a teve noutras.
Para ele, se umas poucas pessoas gostarem de uma actividade, a mesma constitui
cultura. Descontando a dureza da
comparação, o facto de algumas pessoas (certamente em maior número do que as
que apreciam touradas) gostarem de abusar de crianças não pode por si só
pressupor cultura. O conceito de tradição também é discutível, até
porque existiram algumas no passado que foram entretanto extintas, como é o caso
das lutas entre animais. O circo romano também teve muitos admiradores e era
uma tradição naqueles tempos, mas hoje seria considerado bárbaro-
Faltou uma palavra para Pacheco Pereira,
autor do artigo que estamos a comentar. Não apoiando incondicionalmente todas
as suas posições (assim como não apoio incondicionalmente as posições de
ninguém), desta vez estou de acordo com
ele, porque vai ao foco da questão, relativizando questões similares por
as mesmas não assumirem a importância nem a profundidade daquela que estamos a
comentar. Digamos que preenchem alguma da distância que vai das touradas à
delicada questão do "abate" de moscas, melgas e baratas que um
ilustre comentarista aqui trouxe.
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