O progresso foi sempre
acompanhado de natural vaidade dos seus beneficiários, a burguesia, proveniente
do “Terceiro Estado”, que dele beneficiou, rodeando o seu bem-estar de riqueza material,
vistosa e exibicionista, que já no tempo do Cancioneiro
Geral de Garcia de Resende se apontava, como o fez Duarte da Gama nas “Trovas às
desordens que agora se costumam em Portugal”, desordens de vaidade resultantes dos
Descobrimentos Marítimos.
1-“Não sei quem possa viver
Neste reino já contente,
Pois a desordem, na gente
Não quer deixar de crescer;
A qual vai tão sem medida
Que se não pode sofrer:
Não há aí quem possa ter
Boa vida.
2-
Uns vejo casas fazer
E falar por entre-solos (= a
ocultas, ruminando os seus projectos de grandeza?)
Que creio que têm mais
dolos (= apoquentações)
Do que eu tenho de comer;
Outros, guarda-roupa, quartos
Também vejo nomear,
Que já deviam d’estar
Disso fartos.
3-
Outros vejo ter cadeiras
De justo e de cruzado
E chamarem-lhes de estado:
Não entendo tais maneiras.
Outros vendem a herdade
Por comprar tapeçaria,
Dos quais eu ser não queria
Na verdade
…………………………………………
Hoje, nesta nossa sociedade democratizada, aspirando a um falso ideal de
igualdade social, o pedantismo da geração dos novos-ricos centra-se mais numa "intelectualidade" de cariz liberal, na defesa dos direitos de todos os marginalizados e na
provocação contra toda a sensatez a que supostamente a racionalidade humana deveria
aspirar.
É contra esses “novos-ricos”
da falsa bondade como ponto de partida para a sua provocação destruidora de
todo o bom senso, que trata a extraordinária crónica de Alberto Gonçalves. Novo-riquismo que não se observa apenas cá
dentro. Ainda bem que Alberto Gonçalves
viajou lá por fora, e não se limitou, desta vez, a “Santarém”, como fez Garrett
e o contou simpaticamente mas também argutamente, nas suas viagens por cá. Apercebemo-nos de que lá por
fora as anomalias pedantes ainda são maiores, pelo menos nos espaços do Novo
Mundo por onde AG andou. Mas são um bom exemplo de normas a seguir pelos
novos-ricos do nosso, como, ferozmente racional, prevê o inteligente articulista.
Mesmo que muitas mulheres, gays
ou pretos não concordem, nas sociedades patriarcais e machistas toda a gente é
vítima. Toda a gente menos os homens, brancos, broncos e heterossexuais, que
são culpados.
Em finais de Outubro, antes de apanhar um voo no aeroporto de San
Diego, precisei de usar os lavabos. Na antiguidade, esta era uma actividade
linear: uma pessoa entrava no compartimento dedicado ao seu sexo, fazia o que
tinha a fazer e estava despachada. Felizmente, tais simplismos tendem a acabar.
Em San Diego havia três compartimentos, um para senhoras, um para cavalheiros e
um terceiro dedicado, passo a citar, a “todos os géneros”. E acrescentava o
cartaz: “Qualquer um pode usar esta casa de banho, independentemente da
identidade ou expressão de género”. O cartaz era ilustrado com quatro bonecos,
o primeiro trazia saia, o segundo trazia calças (ou exibia-se nu, o grafismo
não primava pela clareza), o terceiro trazia saia apenas numa perna e o quarto
parecia uma criança, embora pudesse ser um anão. De repente, a actividade em
questão perdeu a antiga espontaneidade e transformou-se numa escolha
complicada. Sendo homem, devia usar a zona dos homens ou a de “todos os
géneros”? E a zona “todos os géneros”, aperfeiçoamento da ancestral “unissexo”,
não anula as restantes, cujo espaço podia ser aproveitado para um novo
Starbucks? E as crianças, não têm sexo (vade retro)? Encontrava-me nestas
divagações quando a natureza, essa construção social, me recordou dos motivos
que me levaram ali. Segui a opção conservadora, mas, radiante com os avanços
civilizacionais, fiquei a meia-hora seguinte a contemplar, ao longe, a porta
dos lavabos “inclusivos”, esperando deparar com uma fila de “cross-dressers”,
mulheres barbudas, funcionários do fisco, fãs dos Queen e anões. Num aeroporto internacional repleto, não
entrou lá ninguém. Mera coincidência. No mundo desenvolvido, em breve qualquer
lavabo público terá uma sala para cada letra do acrónimo LGBTQI%ORN#F*AP+.
A introdução acima serve dois propósitos: a) sugerir que sou um tipo viajado; b) lamentar que, no mundo atrasado, leia-se em Portugal, rebente um
pequeno escândalo após um deputado do BE ousar adicionar o “camarados” ao
“camaradas” e, de seguida, assinar um artigo no “Público” a justificar a
afronta. Ou seja, no que toca a abolir o pérfido “binarismo de
género”, por aqui ainda vamos no estado embrionário. Por aqui, ainda se
procura “afirmar” as mulheres (as “camarados”) contra o que o deputado Pedro
Filipe Soares define, e bem, por “modelo
patriarcal e machista de sociedade” (os “camaradas”). Sobre as
inúmeras identidades e os inúmeros géneros que faltam, nem uma palavra.
E há palavras a dar com um pau (na cabeça dos reaccionários). No
inglês, os “activistas” heróicos e semi-alfabetizados que fintaram “history”
com “herstory”, agora lutam para substituir os pronomes masculinos e femininos
(he, him, she, her, etc.) por pronomes não discriminatórios como “ze”, “hir”,
“xe”, “xem”, “xir”, “hy”, “hym”, “hys”, etc. Além da destruição da gramática,
que é fascista, isto facilita imenso o convívio, embora o ideal fosse a/o pessoa/o
decidir o pronome que lhe convém (para mim, eu arriscaria um “t?ç”). Claro que a ausência de distinção de género
nos substantivos ingleses favorece o avanço dos anglo-saxónicos na matéria. No
português, deparamo-nos com a necessidade de alterar, pela lei e pela marreta,
milhares de vocábulos de modo a torná-los “inclusivos” (“camarada/camarado” –
ou camarady?, “leninista/leninisto” – ou leninist©?, “chalupa/chalupo” – ou
chalupx?). Na língua e em tudo, a “inclusão” é um conceito essencial.
Porquê? Ora essa: porque
somos todos iguais, e é ofensivo não respeitar a igualdade. Então porque é
que as políticas “identitárias” dividem a população em dezenas de “minorias” e
grupos? Porque a divisão em classes não funcionou e porque somos todos
diferentes, e é ofensivo não respeitar a diferença. A “ofensa”, que advém do
“abuso” e provoca o “sofrimento”, é outro conceito basilar. Promover uma mulher
a chefe sem a chamar de “chefa” é um abuso, que ofende a senhora, fá-la sofrer
e, em poucos dias, conduz invariavelmente ao suicídio. E idêntica tragédia
acontece com o/a moço/a de género fluído que não dispõe de uma casa de banho
fluida, ou com o candidato preto, perdão, negro, perdão, afro-algures a quem
não são oferecidas quotas de acesso à universidade a título de reparação da
escravatura: abuso, ofensa, sofrimento, pulsos cortados. Mesmo que muitas
mulheres, gays ou pretos não concordem, os seus auto-designados porta-vozes não
permitem dúvidas: nas sociedades
“patriarcais e machistas”, toda a gente é vítima. Toda a gente, excepto
os homens, brancos e broncos e heterossexuais, que são culpados.
No fim de contas, custa alguma
coisa estrafegar a língua e os costumes por decreto para implementar a cartilha
moral do activismo “identitário”? Salvo pela subjugação a fanáticos, não custa
nada. Conforme lembram os sacerdotes da causa, basta um bocadinho de
tolerância, empatia, gentileza – e é por isso que os sacerdotes odeiam de morte
os infiéis. Sejamos tolerantes: odiemos com eles. É facílimo, já que não requer
inteligência, rigor, conhecimentos especiais ou a mínima noção da realidade e
do ridículo. Avante, camaradas e camarados, o progresso espera-nos. E a
progressa também.
COMENTÁRIOS:
Alberto Pereira: Vivemos uma época em que a ditadura dos intelectuais do politicamente
correcto é "normalofóbica". Tem horror ao que é normal. Até quando as
pessoas normais vão aturar isto? Depois não se queixem...
ProtoTypical ProtoTypical: Brilhante,
como sempre, a expor as pantominices, as aldrabices e as intrujices daquilo a
que se convencionou chamar "Progresso". E obrigado pelo sentido de
humor - é sempre um regalo.
Professor Pardal: A chamada "ideologia do género"
deve ser a maior idiotice de todos os tempos e o seu ensino nas escolas, em
jeito de doutrina, na fase em que as crianças são mais vulneráveis a
influências, se não é crime anda lá muito perto. Dêem as voltas que derem,
citem os estudos que quiserem mas as bases científicas para isso são zero. Por
mais que desejem a Biologia ainda não é Ideologia. Embora muitos a queiram
perverter nisso.
O objectivo é o de sempre.
Dividir para reinar. E de cada vez que se acrescenta mais uma letrinha ao
acrónimo LGBTPQP+ cria-se mais uma clientela. Para ser muito claro. Que cada um
faça aquilo que bem lhe aprouver, sempre defenderei essa liberdade. Mas nunca
admitirei que usem a escola como instrumento de doutrinação ideológica.
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