Um texto de Jorge Mourinha sobre um filme
(documentário) - The Waldheim Waltz – de Ruth Beckermann, com o ex-secretário geral das Nações Unidas – Kurt Waldheim – como protagonista,
aquando da sua eleição para presidente da Áustria, em 1986, apesar dos rumores
sobre a sua participação, por ele negada, nos crimes nazis da 2ª Guerra.
Waldheim morreu em 2007 – e o filme, de 2018, pôde ser apresentado,
apesar da relutância germânica em aceitar dados geradores de repúdio e controvérsia.
Na sequência das acusações colhidas em Ruth
Beckermann, todo o texto é estranhamente duro para com a sociedade
austríaca, como se verifica no seguinte passo, de conteúdo bem subjectivo no seu
radicalismo: “Os austríacos são muito bons no jogo social:
à superfície são educados, gentis, subservientes, o que for necessário, mas
muito negros lá por dentro, cruéis para com as pessoas. Parecem ser boas
pessoas, mas não são!”
Da Áustria, além das valsas e do Danúbio e de tanta beleza que o
compositor António Vitorino de Almeida
tantas vezes exibiu em programas na RTP, quer musicais, quer históricos ou
fotográficos, tínhamos a grata recordação de um filme americano sobre pessoas bonitas
e bonitas canções, numa bonita história de amor, filme que para sempre evocaria
a edelweiss da saudade pátria e do repúdio pelo invasor nazi. “The Sound of Music”, (“Música no Coração”, se chamou por cá),
um filme de tempos passados que não sei se será do gosto dos jovens de hoje.
Pela narração do texto que segue, o documentário de Ruth Beckermann aponta antes para uma
viragem, na reacção a uma realidade torpe, o apelo a uma juventude não mais
piegas mas participando no desvendar desse mundo despoticamente perverso, num
sentido de denúncia, sim, mas quem sabe se mais irracional ainda, tais os
desmandos que uma liberdade ilimitada, numa Terra cada vez mais desamparada de
princípios, pode sufragar.
E a propósito da sucessiva violência e denúncia, para onde nos
precipitamos, o texto de João Miguel Tavares sobre o caso de
Serralves, é bem exemplo do nosso contributo para o desfazer do apego a
melodias de um filme antigo, que pareceria imortal, se a rapidez da era em que
vivemos não relativizasse e pusesse em causa tudo o que seduzia dantes em
termos de estética e de moral. Por enquanto, todavia, ainda vozes como a de JMT e de JPP reveladoras de equilíbrio, poderão surtir algum efeito
“didáctico” sobre os espíritos que o ódio – e as drogas - não danificam.
I - Cultura-Ípsilon DOCLISBOA
Ruth Beckermann: “Éramos novos,
sabíamos que as coisas tinham de mudar”
Em abertura do Doclisboa, a austríaca
Ruth Beckermann apresenta The Waldheim Waltz, um filme sobre uma campanha
eleitoral de 1986 que traz lições para o mundo de hoje.
CINEMA
Estamos em 1985. Kurt Waldheim
(1918-2007), ex-secretário-geral
das Nações Unidas, apresenta-se pela segunda vez a concurso nas eleições presidenciais
austríacas. A revista Profil
publica um artigo onde aponta uma série de omissões na
autobiografia do diplomata relativas ao período da Segunda Guerra Mundial;
embora Waldheim mantenha ter sido desmobilizado por razões médicas em 1942, o
seu próprio cadastro militar aponta que serviu no exército alemão numa unidade
envolvida em atrocidades cometidas na Jugoslávia e na Grécia. Até à sua
eleição, em Junho de 1986, Waldheim mantém o seu desconhecimento e recusa
ser culpabilizado pelos crimes de guerra cometidos, e considera a revelação
desses segredos como uma campanha orquestrada de calúnias. Eleito
presidente, é considerado persona non grata pelos
EUA e por praticamente todo o Ocidente. Após o fim do seu mandato, em 1992, não
se recandidatou.
“As pessoas estão a compará-lo ao juiz americano Brett Kavanaugh,
porque ele também não se lembra de nada,” diz Ruth Beckermann (n. 1952) ao
telefone de Viena. “Fazer as pessoas acreditar, durante tantos anos, numa
história que depois se vem a provar ter sido outra...”
The Waldheim Waltz, o filme que a veterana
documentarista e artista austríaca dedica ao caso, deixa bem
claro que os documentos sempre existiram, só que ninguém mostrou interesse
neles. “Não
é por acaso que Freud criou a sua teoria da personalidade, do id, do ego e do
super-ego, em Viena,” explica. “Os
austríacos são muito bons no jogo social: à superfície são educados, gentis,
subservientes, o que for necessário, mas muito negros lá por dentro, cruéis
para com as pessoas. Parecem ser boas pessoas, mas não são!”
The Waldheim Waltz faz esta quinta-feira a abertura
do Doclisboa (Culturgest,
21h30), depois de ter ganho o prémio de
melhor documentário em Fevereiro último no festival de Berlim,
enquanto faz uma carreira global extraordinária. Não
é por acaso: o modo como Waldheim e a sua equipa procuraram desviar as atenções
das acusações feitas, questionando os motivos e a idoneidade de quem as fez e
passando ao lado dos factos, ecoa inevitavelmente nas tácticas de distracção e
manipulação mediática usadas hoje pelos populistas de direita. “Mas eu não
podia prevê-lo quando comecei a trabalhar no projecto,” afirma Beckermann.
“Comecei em 2013, depois interrompi para fazer um outro filme, e retomei em
2016, mas antes de Trump. Claro que, quando terminei a montagem, Trump já
estava no poder, e tínhamos um novo governo de direita na Áustria, e na
Alemanha os partidos de direita estavam a subir… e infelizmente o filme
tornou-se relevante.”
Mas The Waldheim Waltz não
é apenas um filme sobre um momento histórico que ressoa nos nossos dias. É, acima de tudo, um olhar pessoal sobre
esse período. Inteiramente criado a partir de imagens de arquivo (“desde
o princípio que era perfeitamente claro para mim que apenas usaria imagens de
época”), é também uma memória da própria intervenção cívica de Ruth
Beckermann durante a campanha eleitoral de 1985/86 (“É a minha perspectiva, a minha voz, a minha análise. É a minha visão do
caso, e o espectador pode concordar ou não”). Por entre os arquivos
noticiosos de época intercalam-se imagens filmadas pela realizadora durante as
manifestações desse período – quase todas julgadas perdidas – e até a sua
presença num protesto durante uma conferência de imprensa de ex-militares em defesa
de Waldheim.
“O caso Waldheim foi um ponto
de viragem para a Áustria no geral, e para mim, pessoalmente, foi muito
importante,” explica Beckermann. “Eu
sentia-me muito desconfortável e isolada no meu país, uma miúda judia num país
com tanto anti-semitismo e tanta recusa em enfrentar o passado. A 'explosão' de
1986 foi um período difícil, mas ao mesmo tempo foi bom, porque pela primeira
vez as pessoas começaram a falar das verdadeiras vítimas dos nazis: os judeus,
os ciganos, os homossexuais… E ao mesmo tempo, quando nos manifestamos contra
alguma coisa, encontramos outras pessoas, organizamos protestos, fazemos
amigos. Foi através desta experiência que me envolvi na história e na política
austríaca.” Uma consciencialização que, diz a realizadora, era geracional.
“Éramos novos, sabíamos que as coisas tinham de mudar, que tínhamos de limpar a
porcaria toda que nos tinha sido deixada. Estávamos moralmente furiosos, mas
não éramos amargos como as pessoas são hoje. Era altura de mudar.”
E as coisas mudaram realmente? Sente-se um sorriso de
contentamento na voz de Ruth Beckermann. “Sim, mudaram,” responde. “A longo
prazo, claro. Ninguém hoje diria publicamente que a Áustria foi a primeira
vítima dos nazis alemães como se disse na altura. A história ensinada nos
liceus mudou durante os anos seguintes, foram precisos cinco anos para o
primeiro-ministro austríaco assumir no Parlamento a culpa da Áustria. Levou
tempo, sim, mas as coisas mudaram.” E no entanto, hoje… “Sim, o pêndulo caiu para o outro lado. Hoje
as pessoas têm medo, têm amargura, e os governos populistas e os partidos de
direita exploram esses sentimentos de medo.”
O que pode, então, The
Waldheim Waltz dar ao público? Ruth Beckermann não usa
a palavra “esperança”, mas é disso que fala na sua resposta. “Pode
dar duas coisas”, explica. “Uma, levar
as pessoas a reconhecer o mecanismo do populismo de direita, que é o mesmo de
sempre: criar um 'outro' hostil – na altura o anti-semitismo, hoje os
estrangeiros, os muçulmanos – para levar a maioria a unir-se contra um bode
expiatório. A outra deixa-me muito feliz: desde que o filme estreou na
Áustria que um público jovem o vai ver. Depois, nas discussões a seguir
às sessões, eles mostram-se contentes por perceberem que, mesmo sendo poucos –
e nós éramos poucos quando começámos com as manifestações –, é possível fazer
algo. Porque eles também querem fazer algo, protestar contra o estado das
coisas. E é possível.” Ri-se. “Por isso é que fazem perguntas muito
pragmáticas: como é que entraram nas conferências de imprensa? Onde é que foram
buscar o dinheiro? Sem pensar nisso, fiz
um filme que é um manual sobre como protestar!”
II - Pilas, censura e hipocrisia
Em Serralves, explícito, só
mesmo o sexo. Tudo o resto permanece tristemente escondido.
JOÃO MIGUEL TAVARES PÚBLICO, 18 de
Outubro de 2018
Os jornais que acompanharam a
audição parlamentar sobre o caso Serralves garantiam, na quarta-feira, que,
após três horas e meia de depoimentos, não era possível chegar a grandes
conclusões, já que as versões eram contraditórias. Eu
concordo que as versões eram contraditórias, mas parece-me óbvio que é possível
chegar a algumas conclusões. E a principal conclusão do que se passou com a
exposição de Robert Mapplethorpe é esta: em
diferentes momentos, as duas partes – director e administração – fizeram
asneira, e a polémica deriva do facto de nenhuma delas admitir as asneiras que
fez. É pena, porque se houvesse menos hipocrisia e mais sinceridade, haveria
aqui uma boa discussão para ter.
À sombra dos magníficos falos
de Mapplethorpe, que continuam a
perturbar almas 40 anos depois (alguma coisa bem feita o homem fez), eu
gostaria muito de assistir a um debate sério sobre os limites da liberdade de
um curador (há?, não há?), e sobre quais são as áreas de âmbito artístico em
que uma administração pode intervir (pode?, não pode?). Infelizmente, andamos
em vez disso a discutir verdades e mentiras, porque apesar de tanta virilidade
à mostra, neste caso ninguém conseguiu comportar-se como um homenzinho.
João Ribas
sempre foi ínvio nas suas explicações para a demissão e para as
acusações de censura, supostamente por ter um contrato de confidencialidade; a
administração de Serralves embrulhou-se na história da sinalética e nunca
esclareceu o pedido de retirada de dois quadros, nem quando o fez (duas horas
antes da abertura da exposição, acusa Ribas), preferindo
entreter-se com a hermenêutica da palavra “censura”. Aliás, um
bom exemplo de como não dizer nada tendo oportunidade para explicar tudo é o
artigo que o administrador de Serralves José Pacheco Pereira assinou neste
jornal a 29 de Setembro – “A arrogância das cliques culturais”
–, onde há indignação a mais e factos a menos.
E os factos mais relevantes são
estes: 1) João Ribas deu uma entrevista ao PÚBLICO antes
da abertura da exposição de Mapplethorpe onde garantiu que não haveria salas
reservadas, pois “um museu não pode condicionar, separar ou delimitar o acesso
às obras” – o que fez entornar o caldo com a administração, que sempre deu como
adquirido a separação das fotos com pila a mais; 2) alguém da administração exigiu, pouco antes da
inauguração, a retirada do local já estabelecido das obras Larry (contém
pila murcha) e Dennis Speight (contém espantosa pila
erecta), gesto esse que Ribas considerou censório – coisa que a administração
recusa, por não ter exigido que as fotos saíssem da exposição, mas somente do
sítio onde se encontravam.
Note-se que estes factos que
dou como estabelecidos resultam de um processo dedutivo, porque nenhuma das
partes teve a dignidade de apresentar uma cronologia dos seus erros, ou, pelo
menos, das suas faltas de senso. Devo dizer que a entrevista de Ribas me
parece incompreensível, tal como o pedido da administração de retiradas das
obras me parece inaceitável. Mas o
que me parece pior em tudo isto é mesmo a cultura de opacidade das instituições
portuguesas, onde toda a gente parece ter pavor daquela coisa a que costumamos
chamar “a verdade”. Entre ditos, não-ditos e interditos, este processo só
provou que se podem pendurar as pilas erectas de Mapplethorpe nas paredes de
Serralves mas que ninguém aprende nada com a sua crueza ostensiva. Por ali,
explícito, só mesmo o sexo. Tudo o resto permanece tristemente escondido.
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